A Academia Piauiense de Letras, ao lançar o livro do poeta Hardi Filho, e este não é o primeiro nem será o último, pode considerar-se num dia de gala, de festa. Francisco Hardi Filho, Chico Hardi ou Hardi Filho, este último o nome que usa literariamente, é um dos maiores poetas do seu quadro e um dos grandes poetas do Piauí.

 

À falta de melhor classificação, eu diria que Hardi Filho é um poeta do amor e do tempo, o tempo todo. Poeta tão simples, para todos os tempos. Basta correr os olhos pelos títulos de suas obras: “Cinzas e Orvalhos”, 1964; “Gruta Iluminada”, 1970; “De Desencanto e de Amor”, 1983; “Teoria do Simples”, 1986; “Suicídio do Tempo”, 1991; “Estação 14”, 1997; “Veneno das Horas”, 2000; “O Sonho dos Deuses e os Dias Errantes”, 2001, além deste “Tempo Nuvem” e do inédito, escrito e organizado em conjunto comigo, denominado “Tempo contra Tempo” – para falar somente em sua obra poética, pois Hardi é também um cronista de peso e escreve crítica literária quando bem o quer.

 

Gostaria de começar esta conversa entre nós dois com uma bonita citação, mas não daquelas que se fazem de escritores clássicos antigos. Gostaria de evitar o que é comum. Esta conversa de hoje, poeta Hardi, é continuação da que mantivemos durante o longo período de nossa convivência (aproximadamente 40 anos), sem haver qualquer estremecimento em nossa amizade. Hoje, os presentes estão participando e, por tal razão, até pode parecer mais animada e produtiva, pelo menos é mais aberta e menos intimista. 


A citação que escolhi vem justamente de um artigo de crítica do poeta R. Leontino Filho, nascido cearense como Hardi Filho, quando, em dito artigo, a respeito de outro poeta cearense – Carlos Gildemar Pontes – ele entrelaça os temas poesia, tempo, amor, eternidade.

“A poesia move os seus comboios de desejos e prazeres pelos fios líricos do amor. O mesmo amor que se encerra em cada peito esperançoso. O mesmo amor que desata os nós das paixões. O mesmo amor que apazigua a demência dos adeuses. O mesmo amor que molda na borda dos corpos o fulgor das almas desatadas. O mesmo amor que inscrito no abismo do querer soletra as letras da resignação. O mesmo amor que é desespero e serenidade. O mesmo amor igual e diferente no acaso das fortunas. O amor, o mesmo sobressalente outro que no beiral das estações arrebenta em gestos da mais pura magia. O amor, o diferente caminho vicinal do mesmo, que nas nervuras do tempo enxerta grãos de pólen na magia da poesia”.(Jornal “UNIÃO”, João Pessoa –PB, 31-1-2004).

 

Mas não paremos por aqui. É preciso dizer alguma coisa específica sobre Hardi Filho, funcionário público federal aposentado e jornalista, poeta que nasceu em 1934, no Ceará, mas um perfeito piauiense, teresinense mesmo, visto que há mais de quarenta anos aqui se estabeleceu e fundou família numerosa para os nossos tempos, mas muito digna e muito amiga. Poeta que fez parte comigo, Herculano Moraes e Magalhães da Costa, do Círculo Literário Piauiense - CLIP, nos idos de 60, da UBE-PI, desde sua criação em 1973 e é um dos nossos mais queridos imortais da “Casa de Lucídio Freitas”.

 

Poeta que começou simbolista em seu primeiro livro, mas evoluiu para a poesia moderno, embora pratique acima de tudo o soneto, com todas as suas variações. Nessa forma poética – isto é, fôrma, segundo nomenclatura do Prof. Massaud Moisés – criou coisas realmente novas e dignas de nota. No livro ora apresentado, por exemplo, captei uma rima raríssima daquelas que somente Da Costa e Silva conseguiu encontrar na nossa língua, seguida naturalmente do respectivo enjambement. Vejamo-la na estrofe do soneto “Ouvindo os pais”:

“O pai dizia: “filho, veja o quanto / valem o brio, a inteligência ou a / capacidade. Note como o canto / altivo alegra a vida quando soa!”(pg. 15)”.

 

Poderíamos recitar, durante esta manhã toda, sonetos e mais sonetos de autoria de Hardi Filho, desse e de outros livros, que este auditório iria ouvir e entender com grande fruição, pois são tão correntios como água na fonte, qual se tivessem saído da pena da forma que aqui foram colocados. Ninguém sabe quanto custa a feitura de um soneto perfeito, com chave de ouro, colocando realmente o que o poeta sente naquele instante e não alguma coisa que lhe venha em traição. Exemplo melhor de como Hardi Filho é, – a leitura dos seus sonetos, dos seus poemas outros dizem. Com referência ao tempo, de mostra, vamos ler este “Pensavento”, original até no título:

 

“Seguindo qualquer rumo, sem escolhas, / o vento, seja brisa ou ventania, / pode causar: do balanço das folhas / à momentânea interdição da via... // Invisível, variável, como o vento, / mas dominando o absurdo e o natural / da vida, venta o nosso pensamento / de forma louca ou branda, ao vento igual. // De um jeito ao outro o pensamento voa; / e quando pousa, pousa em corda bamba, / vai lá, vem cá; vai existindo assim / até o dia em que, afinal, entoa / três suspiros fatídicos, descamba / e some no silêncio do sem fim”.(pg.37). 


Construiu o poeta uma bela metáfora com as palavras vento e pensamento, como símbolos que escolheu para sua composição, antes criando a palavra que dá título ao soneto. No que diz respeito à forma, sublinhamos ainda o terceiro verso do primeiro quarteto: “pode causar: do balanço das folhas”, para fazer sobressaltar sua métrica desconcertante em relação à antiga, ou seja, deixando de lado a acentuação da 6ª. e da 8a. e ficando apenas com a 4a. e a 10ª. Outros ritmos podem ocorrer nos seus sonetos como prova da variedade que lhes imprime. Isto é comum em Hardi Filho.

 

O que é melhor? – Perder o conteúdo que se quer para seguir a métrica tradicional, ou criar outra métrica? Pode parecer incômodo, fazer soar diferente nossos ouvidos, mas é assim que se processam as invenções, as criações. Com ousadia. E ainda é mestre do soneto branco, sem rima. Aliás, é mestre em todos os ritmos, em todas as medidas. O que permanece inalienável no soneto são os 14 versos e a regularidade métrica entre eles.

 

Na poesia chamada de medida livre, criada pelo modernismo de 22 entre nós, porque no mundo lá fora já existia, Hardi Filho também comete poemas que nada deixam a desejar. 
“Questão de tempo, e o sonho / pão dos nossos dias, meses, / anos, nos sustentará. // Por mais distante que esteja / aquele sonhado instante / com certeza chegará. / Como a questão é de tempo, / só uma dúvida há: / quando a chegada se der / aqui nos encontrará?” (pg. 85).

Não é preciso ler todo o livro para conhecer o poeta, a força do poeta, o amor do poeta, o tempo do poeta, que é um poeta de todos os tempos. Talvez não seja de muitos temas, porém do aprofundamento deles, nas suas preocupações e até nos seus devaneios como é do seu gosto.

 

Não tenho como continuar só elogiando Hardi Filho, meu irmão e amigo de tanto tempo, pois qualquer elogio ou conceito que eu expendo ele me devolve, na próxima oportunidade. Assim tem sido nossa vida de poetas e de amigos. Alguma vez eu já lhe disse que não precisamos viver trocando confetes, nem mesmo de analisar os poemas um do outro. Somos tão diferentes que não seria possível – mesmo se não fôssemos as criaturas íntegras, honestas e boas que reconhecidamente somos – não seria possível um ter inveja do outro, o outro ter inveja do um.

 

Inegavelmente, somos grandes poetas do Piauí, de hoje, de amanhã e quem sabe por muito tempo, enquanto houve gosto nos leitores para apreciar uma jóia que vem da verdade mais profunda, da consciência mais aguda, e que prima por ser apresentada com todo o rigor da língua e do estilo. Quem deve nos elogiar são os outros, os críticos, os literatos, os professores. Se algum assim não faz, pior para ele. Ou se trata de despeito, inveja ou de ignorância.

 

Eu completaria mais sobre Hardi Filho, não com minhas próprias palavras, mas agora retomando aquelas que saíram da pena do Prof. Leontino Filho, no jornal já mencionado: 
“O poeta, munido de suas armas, faz do gesto de amar eterna viagem”.

E assim, então, me vejo na obrigação de recitar mais um lindo poema de amor, dirigido por Hardi Filho a sua eterna namorada, Adélia. O título: “Definitivo Amor”:

 

“Decerto o mundo já tomou ciência / de algum amor igual: amor que abrasa / o peito humano, raro amor, infinda / paixão que quando não sublima arrasa. // Um meninão em plena adolescência / bateu à porta de modesta casa / na qual morava uma menina linda, / pra quem, há dias, arrastava a asa... // Bem recebido, ele ficou contente. / Muito feliz e louco de emoção / noivou, casou, apaixonadamente. // Eis quanto amava aquele meninão: // cinqüenta anos ele ainda sente / e vive o mesmo amor, mesma paixão”.(pg. 28).

 

Concordo com Michael Palmer, cujo pensamento o poeta coloca no pórtico de “Tempo Nuvem”: “All clocks are clouds”. Sem dúvida, em alguma parte da poesia de Hardi Filho o tempo está fechado, há nuvens com uns laivos de tristeza, que é a marca de todo e qualquer poeta. Se não houvesse o sofrimento, a dúvida, a morte, por que então escrever? Não existiria escritor e o mundo seria incompleto. A completitude do mundo, na teoria do Prof. Hardi, progenitor do poeta, é a de que o mal existe para que o mundo seja perfeito, para que o criador tenha a satisfação de que fez um mundo completo, nada faltando. O uso que fazemos dele, o mundo, é outra coisa. E nós o usamo-lo para o bem. Para que bem maior que sonhar o amor, cantar o amor, viver o amor?

 

Essas são algumas indicações que julguei pertinentes sobre o livro hoje lançado, do poeta Hardi Filho, e penso que seria inútil tentar acrescentar mais, já que os leitores presentes e os distantes vão lê-lo e sentir o gosto de sua poesia na própria fonte. .