Guardiões da vida

66a Turma de Medicina da UFPI

Orador: Antônio Castelo Branco de Deus

             Boa noite!                                                               

            É com uma alegria indescritível que hoje celebramos a conclusão do curso da 66a Turma de Medicina da Universidade Federal do Piauí. Ao longo dos próximos minutos, tentarei ser o porta-voz do sentimento que envolve e emociona a todos nós neste momento. 

Oito de julho de 2011. O dia de hoje dificilmente sairá da memória de cada um desses 28 formandos que hoje encerram a extraordinária jornada percorrida nos últimos seis anos. Esta noite, perante a sociedade, nos tornamos médicos.Mas será que é tão simples assim: dormimos estudantes e acordamos médicos? Claro que não, a nossa história começa muito antes disso…

            Cada um dos colegas que integra esta celebração trilhou um caminho com muitos episódios em comum:

- a coragem em enfrentar o temido vestibular para medicina na UFPI;

- a alegria em conseguir a aprovação e a ingenuidade de achar que ‘a missão estava cumprida’, mesmo após todos dizerem que aquilo era só o primeiro passo;

- a surpresa ao entrar no ciclo básico e perceber que, de fato, estávamos apenas começando a descobrir um mundo até então desconhecido;

- as temidas provas práticas, em que tínhamos poucos segundos para transpor para o papel o imenso conteúdo assimilado nos dias anteriores. Certamente, todos nós recordamos da aflição diante das bancadas: “e agora: músculo piramidal ou músculo obturador externo? Forame Redondo ou forame oval?”;

- a emoção quase infantil ao manipular microscópios, instrumentos cirúrgicos, tubos de ensaio, ou simplesmente de possuir um jaleco com o seu nome bordado;

- as salvadoras fotocópias dos cadernos na véspera das provas;

- a empolgação ao iniciar as aulas práticas com animais;

- a primeira anamnese e o primeiro exame físico;

- o churrascos e confraternizações, os grupos de estudo, os interperíodos;

- o início das ‘consultas’ a parentes e amigos – quem de nós nunca aferiu a pressão arterial de uma tia, opinou sobre a cefaleia de um vizinho ou ainda respondeu àquele amigo que insistia em usar antibióticos na sexta-feira e sempre perguntava: ‘posso ou corta o efeito?;

- os muitos ensinamentos à beira dos leitos;

- o início do internato e a sensação de ser ‘quase-médico’.

            Hoje, deixamos de lado o ‘quase’ e passamos a integrar esta nobre profissão já exercida por homens como Hipócrates, Copérnico, Nostradamus, Leonardo da Vinci, Alexander Fleming, Louis Pasteur, Carlos Chagas, Osvaldo Cruz, Sigmund Freud, Guimarães Rosa, além de ilustres piauienses como Lineu da Costa Araújo e Zenon Rocha.

            Há 2.500 anos, Hipócrates resgatou a medicina dos deuses e a entregou aos homens, tornando-a a primeira ciência a ser ensinada de forma metodológica nas escolas medievais. Ao longo dos séculos, muito se avançou em termos técnicos, porém algumas características do nosso ofício são pétreas. A base de toda a nossa atividade profissional é o seu conteúdo ético.Não basta tornar os jovens mais sábios – isso é apenas ciência. O médico precisa ter caráter, um pouco de conhecimento científico, a técnica a que se propõe e, acima de tudo, sabedoria.

            A chave para uma assistência digna não reside na obstinação terapêutica, mas em colocar-se no lugar do outro. Diante de um enfermo sob os nossos cuidados, pensemos sempre: “E se fosse eu o paciente que está internado por meses longe da família? E se fosse a minha mãe agonizando na solidão de uma enfermaria lotada?”. O verdadeiro médico deve entender a linguagem da dor, da angústia, do medo, da desesperança e do sofrimento. Deve pensar de maneira universal. O poeta inglês John Donne, no século XVII, proferiu uma das mais belas frases sobre a compaixão. Disse ele: “a morte de cada homem me diminui, porque estou comprometido com a humanidade; eis porque nunca pergunto por quem os sinos dobram: eu sei que é por mim”.

            A verdadeira medicina deve visar o bem do doente e não o do médico. Há um remédio tão esquecido por nós atualmente que os laboratórios nunca conseguirão fabricá-lo: é a nossa palavra, a nossa atenção e a nossa paciência para com os semelhantes oprimidos pelo sofrimento.

            Francisco de Castro, grande clínico brasileiro, Membro da Academia Brasileira de Letras e orador primoroso, afirmava com razão que,“em torno do médico, muitas vezes se forma uma atmosfera de culto, porque de seus lábios se derrama sobre a tristeza das almas a doçura das consolações supremas”.É imprescindível resgatar o prestígio que nossa profissão demorou séculos para conquistar e que vem se esvaindo nos últimos anos por conta de uma minoria de profissionais de postura incoerente com a atividade que deveriam exercer.

            É necessário escapar das armadilhas que nos desviam da retidão.Vivemos uma época em que a propaganda médica tornou-se sensacionalista; em que o tintilhar das moedas muitas vezes soa mais alto do que o grito de angústia de um doente. Vivemos a era da robotização aniquilante do fazer médico e do império da medicina do comércio, em que os pacientes são usuários; os médicos, prestadores de serviço; os serviços prestados, pacotes.

            Possuímos a arma científica, cada vez mais poderosa, mas somente com essa arma a utilidade da nossa atuação se reduzirá a termos quase miseráveis. O médico deve atuar também pela via invisível e imponderável da sugestão, de sua palavra, dos seus gestos.

            Para manter o nosso ofício dentro de sua grandeza, é mister melhorar a argila humana com a qual fomos construídos. É necessário promover a fusão de ciência e cultura, técnica e humanismo. Lembremos: o que faz o bom médico não é a ciência, mas sim a cultura.

            Saint-Exúpery disse em uma de suas obras que“todo homem traz dentro de si o menino que foi”. Na medicina, esse pensamento é duplamente verdadeiro. Primeiro, porque a função primordial do médico é a paternal. Senhores, todo paciente que procura um médico torna-se uma criança assustada e temerosa.Sente-se pequeno e frágil.Precisa, de novo, de amparo, voltando ao estado de infância. E, como toda infância é uma purificação, a perda da saúde nos predispõe também a compreender o mistério da vida. A moléstia facilita a reposição de cada coisa em seu lugar.Segundo, porque todo paciente traz consigo uma mensagem.Por exemplo, a percepção dos batimentos do coração, a que foi dado o nome ‘palpitação’, pode ser resultado de uma vida estressada, de um distúrbio na tireoide ou simplesmente ser uma resposta natural a fortes emoções, como a que o orador que agora vos fala está sentindo.É preciso compreender o ser humano, e não somente as suas partes.

            Caros colegas, um fator importante a ser considerado para se obter sucesso na nossa carreira é o entusiasmo por ela!O médico e professor universitário paranaense João Manuel Cardoso Martins sintetizou com simplicidade a satisfação em exercer a medicina, ao afirmar que “nós, médicos, temos uma profissão extraordinária porque todos os dias podemos, a partir de algo ruim, transformá-lo em algo bom”.Simples e verdadeiro.A medicina irá preencher grande parte de nossas vidas de agora em diante, e a única maneira de viver plenamente satisfeito é amar o que fazemos.Estejamos sempre abertos ao aprendizado. Lembremos que a distância entre a ignorância e a arrogância é quase imperceptível e que na consciência de nossas fraquezas reside a nossa força.

            Não cometamos, conosco,a injustiça de não nos emocionarmos com a nossa profissão! Ela é bela e continuará a ser a ciência do próximo. Não nos preocupemos se, por alguns momentos, acharmos que não temos vocação, ou que estamos perdendo, como disse Bandeira,“uma vida inteira que poderia ter sido e não foi”. Irmãos, vocês chegaram até aqui e sentem-se realizados! A vocação será robustecida com o tempo. Encantem-se com a observação direta do homem enfermo, e contemplem imediata e incansavelmente o espetáculo da natureza desviada de sua normalidade.

            Além de agir individualmente, nós, médicos, temos um papel social a cumprir, mais ainda por sermos parte de um estado tão necessitado.Uma breve reflexão sobre o exercício da medicina em um local como o Piauí permite concluir que, paradoxalmente, somos privilegiados: aqui, podemos ser a única forma de proporcionar saúde a algumas famílias que mal conseguem se alimentar; aqui, a nossa vontade em vencer as dificuldades do sistema público de saúde não será simplesmente importante, mas fundamental; aqui, meus amigos, podemos fazer a diferença. Se quisermos.

            Precisamos fazer o certo, apesar da falta de compromisso com a saúde de sucessivos governos e dos limites impostos pelos convênios. Não nos interessam as alianças políticas, os conchavos, os DAS’s.Por mais difícil que seja, deixemos de lado o mundo imoral de gestores corruptos e seus cúmplices, não cedamos a pressões de políticos para ‘dar um jeitinho’ no que precisa ser refeito, não sejamos marionetes da indústria farmacêutica. Repito: é preciso fazer o certo.

            Para aqueles que agora nos escutam e acreditam ser inútil este idealismo, que pensam que isso é próprio da juventude e passará, ofertamo-lhes a nossa esperança, confiantes de que o inconformismo é a mola propulsora das mudanças sociais.

            Essa esperança se cristaliza no sonho de vermos o nosso Hospital Universitário em pleno funcionamento. São vinte anos de espera ao longo dos quais vultosas somas de recursos públicos foram investidos e dilapidados, por falta de vontade política dos que puderam e não priorizaram a instalação de tão importante obra, que viria mitigar o estrangulamento do nosso já agonizante sistema público de saúde.

            É hora de nos despedirmos da nossa universidade, que, embora de instalação recente, completando 40 anos de existência em 2011, tanto progresso proporcionou ao nosso estado, qualificando profissionais para o mercado de trabalho e elevando o nível cultural do Piauí. A UFPI é fruto do trabalho corajoso de muitos piauienses que superaram as dificuldades para sua instalação e mergulharam de corpo e alma na sua consolidação. Tributamos o prestígio hoje desfrutado ao empenho coletivo dos seus dirigentes, docentes, discentes e técnicos administrativos, que entenderam ser esse o caminho para a construção do maior patrimônio cultural e educacional do povo piauiense.

            Dos mestres, guardaremos lições de dedicação, saber e altruísmo. A enriquecedora experiência de compartilhar suas vivências conosco certamente será evocada na labuta cotidiana.

            O nosso poeta tropicalista Torquato Neto nos deu a cartilha da Louvação: “louvando o que bem merece, deixo o que é ruim de lado”. E assim o faremos, guardando e louvando os bons exemplos, como os ensinados por tantos professores, aqui representados pelos nossos homenageados.

            Agradecemos em especial à nossa paraninfa Prof. Isabel Marlúcia Lopes Moreira de Almeida.Para quem ainda não teve o prazer de conhecê-la, eis aqui, senhores, uma médica a se admirar. Sua palavra de ordem é dedicação: à profissão, aos pacientes, ao ensino. A dra. Isabel não cronometra o tempo disponível para cada criança sob seus cuidados, muito menos desiste diante do primeiro empecilho; pelo contrário, se precisar, ela despe-se da função de médica e vira enfermeira, maqueira, eletricista e o que mais for necessário. É de uma garra inesgotável e é isso que se espera de um médico interessado em resolver o problema daqueles que procuram a sua ajuda. Profa. Isabel, a turma 66 lhe reverencia e agradece pelo exemplo que nos dá diariamente.

            É também momento de lembrar da família, amigos, filhos, cônjuges, namoradas e namorados que caminharam conosco. Desculpamo-nos pelas nossas faltas e agradecemos pelo suporte que foram. Quem não lembra daquele dia em que um dos nossos grandes amigos se formou ou casou e fomos os primeiros a ir embora porque tínhamos de estar bem cedo no hospital no dia seguinte? Ou quando nem mesmo pudemos ir porque estávamos de plantão? Por falar em plantão: recordam-se quando estávamos em atividade no natal, ano novo, feriado, final de copa de mundo? E aquela priminha ou sobrinha que nasceu e não estávamos lá nas suas primeiras horas de vida? Lembram quando toda a família viajou e ficamos sozinhos, porque tínhamos pacientes para cuidar nos finais de semana? E aí, tenho certeza, todos, por algum momento, questionamos se essa era a vida que desejávamos – “não teria um jeito mais fácil? Precisa mesmo ser assim?”.

            Hoje, no entanto, as barreiras ultrapassadas reforçam a alegria por termos vencido.

            Senhores pais, é chegado o dia de responder por completo à inevitável pergunta da infância: “O que você quer ser quando crescer?” Mãe, pai, nós crescemos e hoje somos médicos! E foram vocês os que mais sofreram com a nossa ausência. Vocês nos procuraram e nós não estávamos lá. Tantas vezes, quiseram nos contar como foi o dia, assistir ao futebol, dividir a mesa do café da manhã. E nós negamos, achando que não tínhamos tempo para essas coisas, sempre carreados de afazeres. Mas vocês não reclamaram: sofreram em silêncio, suportaram as nossas faltas e mantiveram-se firmes no apoio de que tanto precisávamos. E hoje estão aqui, novamente, ao nosso lado. Nada mais justo do que receber agora dos seus filhos o mais sincero dos aplausos.

           

            Peço licença para dirigir-me agora aos amigos da Turma.

            Se existe uma palavra que resume a Turma ‘Guardiões da Vida’, caros ouvintes, é ‘união’. Desde o primeiro semestre de curso, os alunos mais adiantados nos alertavam, quase em tom premeditório: “Medicina é competição, a turma irá formar grupos, logo vocês irão desfazer essa união, é sempre assim…”. O tempo foi passando e nada disso aconteceu; pelo contrário, dia após dia, mostramo-nos mais unidos.

            Passamos a entender a diferença, a aceitar sermos contrariados, a fazer uso da democracia, a conviver com personalidades múltiplas e, por que não dizer, complementares. Fomos adquirindo a sensibilidade de interpretar o outro, de compreender a linguagem do sorriso,do olhar, do abraço verdadeiro e apertado. Choramos juntos, muitas vezes em segredo, com a emoção contida no peito para mascarar as nossas fraquezas.

            Vibramos juntos com a chegada de José Eduardo, Iuri e Ana Clara; lamentamos juntos o tropeço de alguns colegas que hoje não compartilham conosco esta alegria (Estevão, Bruno Rafael, Lara, Júlio César, Igor Soares), lamento parcialmente compensado pela presença de novos parceiros de viagem, Breno e André.

            Dentre as grandes descobertas que tivemos ao longo dos últimos seis anos, certamente uma das maiores foi a descoberta de nós mesmos.Olhem ao redor, nos olhos de cada uma destas figuras que os cercam. O que vocês enxergam? Ou melhor, quem vocês enxergam? Garanto que não verão apenas colegas, mas sim irmãos, companheiros com quem se pode contar por toda a vida.

            Hoje também é dia de sentir saudade. Saudade dessa pessoa que está do seu lado agora e que foi parte da sua vida e que passará a trilhar um caminho diferente do seu. Quem sabe a próxima vez que o verá? Será que ano que vem vocês ainda manterão contato? A saudade parece maior ainda porque achávamos que a companhia seria eterna, que o momento do ‘até logo’ não chegaria. E talvez esse despreparo para a relativa despedida nos tenha impedido de nos conhecer melhor, de nos doar mais uns aos outros, de nos permitir ser ainda mais cativados. O tempo não irá dissolver os laços que foram criados ao longo destes seis anos. Querida turma 66, o porvir atestará a certeza da nossa amizade. Foi uma honra ter convivido com todos vocês.

            Encerro minha participação nesta noite com uma mensagem muito simples: continuemos lutando por nossos sonhos.

Evoco duas passagens da história contemporânea que ilustram muito bem a necessidade de nos mantermos fiéis ao que acreditamos ser a nossa vocação. “Sugiro que você faça um curso de secretária ou se case”. Essa frase foi proferida por Emmeline Snively, diretora de uma agência de modelos para Norma Jean Baker, futura Marilyin Monroe, em 1944. Marilyn Monroe secretária? E o que dizer da afirmação do executivo da gravadora britânica Deca, que proferiu a seguinte frase para quatro jovens de Liverpool: “não gostamos do som de vocês. Além disso, conjuntos de guitarristas não tem futuro.” O empresário acabava de descartar os Beatles, em 1962.

As pessoas bem-sucedidas em todas as áreas quase sempre fazem parte do grupo daquelas que não desistem. A primeira negativa nunca deve ser definitiva. Uma espécie de miopia intelectual muitas vezes nos impede de enxergar o que podemos ser.

            Caríssimos, somos todos finitos e compartilhamos o mesmo final. Compomos a mais perfeita obra divina, o Ser Humano, objeto do nosso ofício e do nosso amor. Somos felizes pelo sopro de vida que Deus nos proporcionou, e é deste sopro que queremos desfrutar.

            Vamos aproveitar cada segundo desta breve passagem por este mundo para viver, de fato. A nossa existência é uma chama passageira entre dois infinitos – aquele antes do nascimento e aquele após a morte. Hoje, somos jovens e cheios de vida, mas não nos enganemos: algum dia, não muito distante deste que ora presenciamos, estaremos velhos e retornaremos à terra, em um incessante e brilhante ciclo de renovação da humanidade. É aí que reside a beleza da morte: limpar o caminho para o surgimento do novo. E a morte despe-se de sua tragicidade se ocorre após uma vida bem vivida.

            Justamente pelo fato de o nosso tempo ser tão limitado é que não devemos desperdiçá-lo. Não vamos deixar que opiniões alheias tolham os nossos sonhos. Não vamos deixar que nada, nem ninguém, calem a nossa voz interior. Tomemos para anós a filosofia de Nietsche, que, certa vez, afirmou: “Torna-te quem tu és”.

            Muito obrigado.