Mapa do Piauí colonial.
Mapa do Piauí colonial.

                                                                                                                                                                                       * Reginaldo Miranda

                                                                                                                                Governo de João Pereira Caldas

(20.09.1759 – 03.08.1769)

 

“Como se vê, tratava-se de um governador experimentado e de uma personalidade forte, a quem Capistrano de Abreu viria a atribuir a autoria do ‘Roteiro do Maranhão a Goiás pela capitania do Piauí (...), ‘um trabalho que é talvez o que de mais profundo e filosófico se escreveu nos tempos coloniais a respeito de certos aspectos da nossa sociedade’” – José Honório Rodrigues.

 

Ordenada a instalação da Capitania do Piauí, foi nomeado seu primeiro governador por decreto do rei D. José, de 31 de julho de 1758, recebendo a carta patente em 26 de agosto do mesmo ano. A nomeação recaiu sobre o então sargento-mor de infantaria do Pará, João Pereira Caldas, alçado ao posto de coronel de cavalaria, com soldo de 2000$000 anuais. Prestou juramento a 14 de janeiro do ano seguinte, em Belém do Pará, perante o general do Estado, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, e dirigiu-se, em seguida, para a vila da Mocha, no centro da Capitania do Piauí, e que seria a capital, aonde chegou a 17 de setembro e tomou posse em 20 do mesmo mês e ano. Era ele ajudante de sala daquela autoridade por mais de seis anos, havendo-se muito bem nesse exercício, a ponto de merecer a nomeação para o governo inaugural do Piauí. No mesmo período seu pai governava a Capitania do Maranhão¹, no exercício de cujo cargo faleceu em 23 de outubro de 1761. Natural da paróquia de S. Salvador do Camberi, termo de Monção, comarca de Valença, em Portugal, nascera a 4 de agosto de 1736, transferindo-se desde criança para o Brasil (cidade de Belém, do Pará) em companhia dos pais, onde fora sempre figura palaciana. Foram seus pais o brigadeiro Gonçalo Pereira Lobato e Sousa, que veio para o Brasil, primeiramente, para exercer o comando de um regimento de linha na capital do Pará e D. Joana Maria Pereira. Quando assumiu o governo do Piauí, era solteiro, e somente em 28 de março de 1766, solicita autorização ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, conforme dispunham as determinações régias, para casar-se com D. Maria Engrácia de Mendonça, talvez parenta do general do Estado e do Conde de Oeiras. Em alguns documentos qualifica-se como alcaide-mor, comendador de São Mamede de Troviscoso na Ordem de Cristo, coronel de cavalaria e governador do Piauí (Arquivo Público do Piauí. Códice. 147. p. 140v).

A fim de chegar ao Piauí, o novo governador João Pereira Caldas dirigiu-se pelo mar a São Luís do Maranhão e dali a Oeiras, subindo pelo rio Itapecuru, de onde buscou o Parnaíba e, por fim, o sertão em busca da vila da Mocha, mais tarde cidade de Oeiras. Sobre sua chegada a essa vila anotou o então secretário de governo, Joaquim Antunes:

 

“Memória da formalidade, que se observou na entrada, e posse do primeiro governador desta Capitania, o Illmo. Snr. João Pereira Caldas.

‘Havendo o dito senhor pernoitado no dia dezesseis de setembro de 1759 no sítio chamado Olho d’Água, distante uma légua desta vila; e havendo na manhã do seguinte ali concorrido a encontrá-lo diferentes pessoas das distintas da terra, o aclamaram todas conduzindo até a passagem do riacho vulgarmente denominado da Mocha, onde, apeando-se o mesmo senhor, para cumprimentar a câmara, que naquele lugar o esperava, e ouvir a oração, que recitou um dos vereadores, depois foi ao mesmo tempo cortejado com as continências e descargas das tropas pagas, e de ordenança, que também ali se achavam postadas. Depois disto, com o acompanhamento da câmara e gente principal se encaminhou o dito governador a fazer oração na igreja paroquial, e dela enfim se recolheu com todo o referido cortejo à casa que para a sua residência se achava destinada; havendo de noite e nas duas seguintes o costumado obséquio de luminárias, que em semelhantes ocasiões se pratica; e repetindo-se também todo o dia  vinte do mesmo mês e ano com o motivo da posse, que do governo desta capitania se conferiu ao sobredito senhor governador na maneira seguinte:

‘Na tarde do referido dia, tendo concorrido à casa do senhor governador o corpo do senado, precedido do desembargador ouvidor-geral da comarca, e toda a nobreza da terra, logo o dito senhor, entrando debaixo de um pálio, que ali se achava pronto, e se conduziu por algumas pessoas distintas, que a esse fim o mesmo senado havia convidado; recitada que foi uma oração por um dos vereadores, se transportou assim o senhor governador com todo aquele acompanhamento à casa da câmara, para nela se realizar o ato da sobredita posse, em virtude da sua patente e da carta credencial que com aquela ali juntamente apresentou. Procedendo-se então ao termo de posse, logo que ela lhe foi dada pelo senado, se encaminhou o dito senhor com igual formalidade a render a Deus as graças, na igreja paroquial, sendo na passagem cortejado com as continências e descargas das tropas que na praça se achavam formadas. E por fim se recolheu às casas da sua residência com toda a indicada cerimônia, e ainda debaixo do referido pálio, que pertence ao secretário. – Joaquim Antunes” (APP. Cód. 146. p. 2/3).

 

Em sendo o primeiro governador do Piauí, coube-lhe a tarefa de organizar sua estrutura político-administrativa. Nesse aspecto prestou relevantes serviços à Capitania. De imediato aluga casa residencial sob expensas da Real Fazenda para se alojar, e promove alguns melhoramentos na mesma, porque embora se lhe tenha improvisado uma, ainda não existia imóvel próprio para tal fim. E cria a secretaria de governo. Logo mais, autorizado pela metrópole por carta de 19 de junho de 1761, organiza o almoxarifado, que até então era vinculado ao Maranhão, além de regulamentar a Provedoria da Real Fazenda (APP. Cód. 146. p. 186). Também, providencia as primeiras arrematações dos dízimos, que até então eram feitas no Maranhão. Eram pagos com produtos da terra, pois ainda era precária a circulação de moedas. Aliás, uma de suas primeiras preocupações à frente do governo piauiense foi o soerguimento de seu incipiente comércio. Nesse sentido, entre outras medidas, consegue através do Conselho Ultramarino, a revogação de uma antiga ordem régia que proibia a introdução de muares no Piauí, e o posterior fomento desse criatório pela carta régia de 22 de dezembro de 1764, para auxiliar no transporte de mercadorias. Em 15 de fevereiro de 1763, envia para o reino amostras de quina, pedra-ume e capa-rosa, encontradas no termo da vila de S. João da Parnaíba. Por esse tempo o Piauí possuía quinhentas e trinta e seis fazendas de gado.

Mais tarde cria também em Oeiras um hospital, o primeiro da Capitania, administrado por um cabo, e tendo por enfermeiro um soldado, todos dragões, além de dois índios como serventes. Ainda em 1761, o general do Estado do Maranhão, lhe envia ofício abordando a possibilidade de serem enviados para estudar no colégio da nobreza do Maranhão, os filhos dos nobres piauienses.

Porém, antes de sua chegada ao Piauí foi nomeado o ouvidor geral Luís José Duarte Freire, para efetuar o sequestro dos bens dos jesuítas, tendo o novo governador, mais tarde, de praticar atos tendentes à conclusão desse sequestro. Efetuou a prisão dos religiosos, remetendo seis deles para a Bahia, de onde foram conduzidos para Portugal. Mais tarde, prendeu também alguns simpatizantes dos jesuítas, que foram enviados para Lisboa pelo porto do Maranhão². Por edital de 25 de outubro de 1764, afixado em todas as freguesias, e sob ordens de S. Majestade, determina fossem arrematados para o natal próximo “todos os escravos e escravas pertencentes às fazendas que nesta Capitania possuíam os regulares expulsos”. E em cumprimento dessa medida, a 19 de dezembro de 1764, manda o desembargador ouvidor geral proceder à avaliação dos escravos das fazendas que pertenceram aos regulares, para serem arrematados em 25 do mesmo mês e ano, em atenção à carta de S. Majestade de 11 de junho de 1761. Para a mesma data determina o Provedor da Real Fazenda proceder à arrematação dos dízimos de toda a Capitania, respectivos ao triênio de 1758-1759-1760, devendo esta autoridade pôr em pregão e anunciá-lo pelos editais de costume em todas as freguesias existentes (APP. Cód.147. p. 3v, 4, 11/11v).

Todavia, até a instalação da Capitania, Mocha pertencia à do Maranhão, e nesta qualidade recebeu provisoriamente um contingente da companhia de dragões daquela Capitania, para fazer seu policiamento, até que fosse criado o novo corpo militar do Piauí. Então, autorizado por El Rei, através da carta régia de 29 de julho de 1759, organiza o regimento de cavalaria auxiliar da Capitania, composto de dez companhias de sessenta praças cada uma, incluídos os oficiais, sem perceberem soldos, à exceção do sargento-mor e ajudante, porém, todos com os “mesmos privilégios, liberdades, isenções e franquezas, de que gozam os oficiais e soldados das tropas pagas” do reino. Mais tarde, a esses 600 oficiais, somou-se o regimento de ordenanças “com 5 batalhões e duas companhias, com efetivo de 1574, num total de 2174, entre cavalarianos e infantes” (NUNES, 1975:106). Já a companhia de dragões foi criada por decreto de 28 de maio de 1760, do rei D. José, com sessenta homens e seus respectivos oficiais, sob o comando do capitão Clemente Pereira de Azevedo Coutinho de Mello, militar português que prestaria relevantes serviços na fase de organização política e administrativa da Capitania, mais tarde retornando ao reino juntamente com João Pereira Caldas. O fardamento veio de Portugal, onde foi confeccionado. No entanto, ao contrário do que pensava o governador, ao publicar edital de concorrência para preenchimento dos postos, ninguém se interessou e teve ele de intimar pessoalmente os candidatos. Sobre a organização da companhia de dragões, é interessante destacar que em data de 5 e 11 de janeiro de 1761, João Pereira Caldas escreve ao governador e general das Minas de Goyazes, solicitando informações sobre a companhia de lá, para servirem de modelo à que estava organizando no Piauí. E por ser “tão grande a distância que medeia entre estas duas capitanias, e tão dificultosa a ocasião de portadores” somente em 18 de agosto do mesmo ano responde aquela autoridade dizendo-lhe “que os usos que se praticam neste Goyas, são os mesmos, que se observam nas Minas Gerais, que como mais antiga ordenou S. Mag.e que nos regulássemos pelos seus estilos” (APP. Cód. 146. p. 147/149v. 161).

Contudo, ao contrário das normas vigentes, inicialmente as tropas foram organizadas sem distinção de cor, porque o número de negros livres era extremamente pequeno, assim como o de brancos, embora mais volumoso. Os mulatos compunham o maior percentual da população, e muitos eram tidos em grande reputação. A própria constituição da sociedade piauiense era adversa a esse tipo de discriminação, pois na sua origem o imigrante vinha para ser vaqueiro, e pelo sistema de partilha, onde de cada quatro novas crias, uma era dele, escolhida através de sorteio (daí dizer-se que tirou de sorte), logo mais se tornando fazendeiro e, portanto, infenso à discriminação racial. “Demais, nesse sertão – queixou-se o governador -, por costume antiguíssimo, a mesma estimação têm brancos, mulatos e pretos, e todos, uns e outros, se tratam com a recíproca igualdade, sendo rara a pessoa que se separa deste ridículo sistema, porque se seguirem o contrário, expõem as suas vidas” (NUNES, 1974:106).

A composição do regimento de cavalaria auxiliar foi alterada por ordem do governador, de 24 de setembro de 1768. Segundo ele, das “sessenta praças de que até agora se compôs cada uma das dez companhias do dito Regimento, se devem acrescentar mais vinte praças de soldados, para que se constituindo cada companhia no número de oitenta praças, fique o mesmo Regimento na lotação de oitocentas. Que na conformidade da Real ordem de S. Mag.e de 19 de Abril de 1766, cada Official e soldados do sobredito Regimento, deve conservar sempre pronto um escravo para lhe tratar do seu respectivo cavalo. E que entre os privilégios que contém a mesma ordem, facilita também que as divisas dos oficiais possam corresponder aos coireis das clapeas, que já lhe eram permitidas pelo outra Carta Régia ordem de 29 de julho de 1758” (APP. Cód. 147. p. 118v/119).

Conforme dissemos, esse corpo militar era formado em sua maior parte por vaqueiros, pouco afeitos à disciplina militar. Em face da dispersão desses pelas fazendas, em tempo normal a tropa era reunida apenas uma vez por ano, nas vilas, para a amostra (revista militar). E fora disso, reunia-se também, sempre que se precisava formar tropa para o combate às tribos indígenas, a fim de se retirar os elementos mais qualificados para a ocasião.

Mais tarde, em 1º de outubro de 1762, quando Portugal entra em guerra contra a França e Espanha, João Pereira Caldas, designa o tenente-coronel João do Rego Castelo Branco, para se instalar com um destacamento no delta do Parnaíba, a fim de guarnecer as barras do rio Parnaíba e do braço dele chamado Igarassu, por considerá-los mais expostos a invasões, defendendo, assim, a Capitania em caso de possível ataque inimigo. Felizmente, nada houve, e com a paz posteriormente firmada, em 20 de junho de 1763, aquele militar recebe ordens para retornar a Oeiras, onde iniciaria campanha contra índios estabelecidos no Uruçuí, alto-Parnaíba e Itapecuru (APP. Cód. 146. p. 84v/86. 117). 

Em 1762, o governador mandou recensear a população, e se constatou que a Capitania possuía apenas 12.764 habitantes, fora os índios dispersos nas matas. Por aí se constata que elevado percentual da população masculina foi alistado para compor o novo corpo militar.

Por outro lado, o que se chamava até então Piauí, era um extenso território composto pela vila da Mocha, e no extremo-sul o termo de Parnaguá que, até a instalação da Capitania do Piauí, pertenciam à do Maranhão. Com a instalação da nova Capitania, fazia-se necessário dividi-la em novos termos, a fim de melhor administrá-la levando estruturas de poder para perto da população. Foi assim que El Rei reiterou por carta régia de 19 de junho de 1761, uma provisão anterior, dando nova estrutura administrativa à Capitania. Por ela, a vila da Mocha foi elevada à categoria de cidade e capital da Capitania, e as sedes das freguesias até então existentes, elevadas à categoria de vilas, à exceção da freguesia de N. Sra. do Carmo da Piracuruca, que por questões de estratégia econômica e militar, a vila deveria ser instalada na foz do Parnaíba, no litoral. Na verdade, os registros da época apontam que somente as freguesias de N. Sra do Livramento de Parnaguá (ou do Pernaguá, como então se chamava) e Santo Antônio do Surubim, tinham condições de receberem a promoção. Mesmo assim, em atenção à ordem régia, o governador, que acabara de chegar de uma peregrinação por grande parte da Capitania, passa aos preparativos de execução. E enquanto durava o inverno, preparou “os materiais de expediente das diferentes câmaras” e determinou “que se incorporasse ao séqüito governamental a companhia de dragões, sob o comando de Clemente Pereira. Foram aprestados 200 cavalos para a condução do pessoal e matalotagem de tão numerosa comitiva” (NUNES, 1974:108). Porém, antes da viagem deu à Capitania o nome de S. José do Piauí, e à vila da Mocha, o nome de Oeiras, em homenagem, respectivamente, ao rei D. José e ao ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras, depois marquês de Pombal. Aproveitou-se da ordem régia que mandava suprimir os nomes bárbaros das povoações. Em correspondência ao Senado da Câmara da vila da Mocha, de 13 de novembro de 1761, justificou seu ato na forma seguinte: “Ordeno, que ao nome dela se acrescente, ou anteponha o de S. Mag.e sempre Augusto, e que daqui por diante se denomine, Capitania de S. Jozé do Piauhy, porque deste modo compreenderão mais facilmente os vindouros, que o redentor deste País, foi El Rey D. Jozé o primeiro nosso Senhor. E porque nas fundações das novas vilas, que o mesmo Senhor me manda estabelecer nas Freguesias deste governo, me determina lhe imponha os nomes que bem me parecer, sem atenção aos bárbaros, que presentemente conservam, de cuja qualidade, sendo o que atualmente tem esta vila, e fazendo-se preciso por isto removê-lo na forma daquelas reais ordens, e substituí-lo de outro, em que se não encontre a sobredita barbaridade; ordeno também, que omitindo-se o de Moucha, se fique denominando a mesma vila de agora em diante com o de Oeyras do Piauhy; o que igualmente se observará, ainda quando for erecta em cidade (APP. Cód. 146. P. 34v/35).

Com todos os preparativos prontos, conforme lembra ODILON NUNES, e foi por nós conferido nos livros próprios de registro, “logo após o inverno de 1762, apressam-se os preparativos e, tudo pronto, procura a cavalgata governamental a bacia do Gurguéia onde, a umas 120 léguas de Oeiras, estava a povoação de Parnaguá, também sede de freguesia, que a 3 de junho de 1762 seria [reinstalada] em vila com o nome de N. S. do Livramento de Parnaguá. Antes do ato solene da [reinstalação], havia mostra das tropas da freguesia. cavalarianos e infantes, recrutados na população masculina, de 12 a 70 anos, dispersos em dezenas de milhares de quilômetros quadrados, formariam em frente da casa em que se hospedava o Governador, que passaria em revista as forças. Essa formatura militar fez-se então por todas as freguesias, com finalidade de mais solenizar a fundação das vilas como ainda para disciplinar e adestrar os bisonhos soldados da Capitania. Após a solenidade, o Governador oficiou ao Ouvidor Geral para proceder à eleição das Justiças, isto é, da Câmara Municipal que deveria governar pelo tempo de três anos, conforme o disposto na Ordenação do Reino e na Carta Régia de 19 de junho de 1761, e que teria um patrimônio duma légua quadrada que competia ao Provedor da Fazenda Real demarcar, tendo como base a igreja paroquial. O Governador poderia conceder sesmarias na circunferência de seis léguas ao redor da vila, para facilitar ainda os recursos dos moradores” (NUNES, 1974:108) (as expressões entre colchetes são nossas).

E após esse ato solene o governador se dirige pelo Gurgueia abaixo até a freguesia de Santo Antonio do Gurgueia, criada em 1739, por D. Frei Manoel da Cruz, numa aldeia militar fundada no primeiro quartel do mesmo século, sob ordens de Garcia d’Ávila Pereira (da Casa da Torre). E em 22 de junho instala a nova vila, com o nome de Jerumenha do Piauí, em homenagem à vila militar de Jurumenha, no concelho de Alondroal, em Portugal. Então regressa para Oeiras, e dali se dirige ao norte, erigindo em vila a freguesia de Santo Antonio do Surubim, com o nome de Campo Maior, em homenagem a uma vila portuguesa de mesmo nome, a 8 de agosto do mesmo ano. Depois se dirige à freguesia de N. Sra. do Carmo da Piracuruca, em cuja matriz, a 18 de agosto, formaliza a instalação da vila de S. João da Parnaíba, em homenagem a ele próprio, e única exceção em que a própria sede da freguesia não foi também a sede municipal. Seria esta instalada no lugar Testa Branca, de apenas quatro casas. Em seguida se dirige até as proximidades dessa povoação, para tomar medidas atinentes ao funcionamento das instituições municipais. Contudo, dado o atraso daquela localidade, autorizou que o pelourinho, símbolo do poder, fosse levantado provisoriamente no Porto das Barcas, feitoria com charqueadas e grande movimentação comercial. Porém, em 1770, no governo de Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, foi essa localidade oficializada como a nova sede municipal. Ainda, quando da instalação, Pereira Caldas autorizou que os donativos pagos pelas mais de dez embarcações que visitavam o Porto das Barcas, anualmente, exportando carne e pele para Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Pará, antes pago ao senhorio das terras, no valor de 14$000 cada uma, fossem pagos à câmara municipal, para atender às obras e despesas. Dessa forma, foi a vila de São João da Parnaíba a única a ter imediata fonte orçamentária.

E após essa missão no extremo-norte, o governador retorna à nova vila de Campo Maior, de onde busca a freguesia de N. Sra. do Desterro do Poti, ou do Rancho do Prato, como também era conhecida, onde, a 13 de setembro, a erige em vila com o nome de Marvão do Piauí, em homenagem a outra vila portuguesa. Por fim, a 20 do mesmo mês de setembro (1762), está ainda na bacia do Poti, na freguesia de N. Sra. da Conceição dos Aroases, instalando nova vila com o nome de Valença do Piauí, também em homenagem a uma vila portuguesa de mesmo nome, em cujo termo nascera.

Depois dessa extenuante viagem, a 24 do mesmo mês e ano, está de volta à vila de Oeiras, quando lavra o Bando que a erige em cidade e capital do Piauí. Entre as determinações de El Rei, apenas não pôde ser cumprida a elevação à vila do aldeamento indígena dos jaicós, porque estes viviam constantemente dispersos. Por fim, os oficiais da câmara de Oeiras teriam os mesmos privilégios e prerrogativas dispensados aos oficiais da câmara de S. Luís do Maranhão. E os das outras câmaras das vilas, bem como os moradores da sede municipal também receberiam privilégios, prerrogativas, isenções e liberalidades que os estimulassem ao exercício dos cargos e a fomentarem o crescimento das povoações.

Em 1765, o Piauí receberia um visitante ilustre, o conde de Azambuja, que fora nomeado governador e capitão general da Bahia. E se achava no Maranhão, vindo do reino para assumir o cargo. Então, desejava chegar a seu destino pelo interior, atravessando o Piauí. Por força desses cargos era também “presidente da Relação da Bahia, à qual as Justiças desta são subordinadas”. Por essa razão, em 10 de agosto, o governador João Pereira Caldas determina à câmara da cidade de Oeiras, que mande os fazendeiros limparem a estrada que vai da cidade à margem do rio Parnaíba, em rumo de Aldeias Altas, hoje Caxias E, também, aprontarem quatro cargas de milho e duas de farinha, sob pena de castigo, para a passagem da comitiva. Determinou ainda que limpassem a praça, ruas e mais lugares públicos, para tudo se achar com o devido asseio, devendo-se-lhe esperar um corpo de câmara “no lugar em que destinar o seu recebimento, para dali o acompanharem até se recolher a casa, havendo nesta noute e nas duas seguintes, luminárias gerais em toda a cidade”. A 11 de outubro expede nova ordem no sentido de que o juiz ordinário e mais oficiais da Câmara, providenciassem “no lugar, em que nesta [cidade] está determinado o seu recebimento, se deve achar pronto um Pallio, debaixo do qual haja de ser conduzido até a porta deste Palácio, aonde há de hospedar-se, e assistir, enquanto aqui se demorar”, devendo os mesmos “convidarem pessoas das mais distintas, que hajam de pegar nas varas do sobredito Pallio”. Mais tarde, em 20 de novembro de 1765, o governador ordena à câmara de Oeiras, que mande limpar com a maior perfeição, através dos donos das fazendas, ou administradores situados desde Oeiras à estrada da Travessia Nova, debaixo de pena, “e apromptar em cada uma das mesmas fazendas quatro cargas de milho e duas de farinha, para destes provimentos, e dos gados, que semelhantemente se devem achar nos respectivos currais, ao tempo competente, se poder S. Exa., fornecer dos necessários para sua conduta”, pois o Conde desejava viajar “logo que o tempo lhe facilitar a passagem das travessias”(APP. Cód. 147. p. 37v/38. 42/42v. 43). Frisamos essa correspondência pela riqueza de detalhes sobre costumes e alimento no Brasil colonial.

Nesse mesmo ano o governador enfrenta problemas com alguns moradores das fazendas S. Antônio e Serrote, na ribeira do Crateús, termo da vila de Marvão, que ali se situaram com seus gados e negavam a jurisdição do Piauí, em benefício do Ceará. O governador, então, agiu com firmeza e dobrou os moradores insubordinados, colocando a situação em seu devido lugar. Mais tarde, em 30 de janeiro de 1768, defere pleito de outros moradores da mesma ribeira do Crateús, distrito de Marvão, para fazerem troncos e edificarem à sua custa, na fazenda das Piranhas, uma casa forte para nela prenderem malfeitores que cometessem assassinatos e furtos naquela região. Por esse tempo, defende a anexação do Ceará à Capitania do Piauí (APP. Cód.147. p. 42/48. 114/114v).

Não se pode negar que na qualidade de primeiro governador e por uma década, coube ao coronel João Pereira Caldas a organização administrativa do Piauí. Conforme ressaltamos, criou também os órgãos indispensáveis à administração pública, e instalou novas unidades administrativas, redividindo a Capitania em sete municípios, incluindo a Capital. Politicamente, veio para o Piauí com a missão precípua de combater a influência exercida pela Companhia de Jesus, sucessora dos bens de Domingos Afonso Sertão, a quem o conde de Oeiras, mais tarde marquês de Pombal, via como inimiga. Era homem de confiança, e a indicação fora sugerida pelo capitão-general do Pará, com quem trabalhava, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão de Pombal. Dedicado, cumpriu à risca essas ordens, aniquilando a influência dos jesuítas na Capitania do Piauí, o que de certa forma facilitou a dizimação das tribos nativas, livrando-se dessa incômoda oposição. No plano econômico, incorporou à Real Fazenda os bens da referida Companhia, mais tarde dividindo as fazendas em três unidades econômico-administrativas, as inspeções de Nazaré, Canindé e Piauí. Promoveu a arrematação dos dízimos, a organização militar e outras medidas indispensáveis à operosidade administrativa e econômica da nova Capitania. Sem dúvida alguma, foi operoso em sua gestão administrativa, caracterizando-se como administrador enérgico, trabalhador e de grandes iniciativas, além de ardente defensor da cousa pública e do Piauí. Embora jovem, esteve à altura do cargo, agindo com rara competência na estruturação da nova Capitania.

Dessa forma, reduzido apenas a esses aspectos o governo de João Pereira Caldas seria brilhante. Contudo, maiores reparos merece a política indigenista por ele implementada na Capitania. Foi responsável pela extinção de algumas tribos que desde muito habitavam o sul da Capitania. Combateu ferozmente os guegués e timbiras, responsabilizando-se pela morte de centenas. Assume pessoalmente o combate a essas tribos, determinando as campanhas e esmiuçando as ações em mínimos detalhes, dos quais o tenente-coronel João do Rego Castelo Branco foi mero executor. Pode-se dizer, então, sem medo de errar, que durante a primeira década de existência da Capitania do Piauí, João Pereira Caldas foi o senhor da guerra. E João do Rego, criação sua, cujas ordens cumpria com prazer e rara competência. Durante os anos 1764 e 1765, com tropas militares piauienses, ajudados por moradores das diversas vilas, especialmente Parnaguá e Jerumenha, além de Pastos Bons e índios do arraial de S. Félix da Boavista, no Maranhão, combateu os índios guegués do vale do rio Uruçuí-Preto, no Piauí e os timbiras, do vale do Itapecuru, no Maranhão, para o qual solicitou licença do governo maranhense, matando centenas de ambas as tribos, escravizando diversos e quase exterminando esses últimos. Também os amanajós sofreram algumas baixas nessa campanha.

Sobre a dureza dessas guerras que se implementava contra o ameríndio, observe-se trechos da provisão em que esse governador nomeou o capitão de cavalaria da vila de Parnaguá, Manoel de Barros Rego, para comandante de uma tropa que em 1764, deveria partir de Parnaguá, percorrendo o vale do Uruçuí-Preto, atravessando o rio Parnaíba e retornando pelo Balsas, no Maranhão, constante de nosso acervo, copiada do original, e que não é única, em sintonia com todo um conjunto de documentos:

 

“As nações deste, nossas Inimigas, e contra que se acha decretada a guerra, são a dos Acoroás, dos Guegués, e dos Timbiras, e seus sócios: E porque a todas elas, manda S. Mag.e castigar a ferro, e a fogo, o praticará V.M.ce assim, atacando todas as povoações, que encontrar das ditas nações, e reduzindo-as à cinza, depois de conquistadas.

‘E se alguma das mesmas nações, ou dentro, ou fora das ditas Povoações, fizer oposição, lhe não dará V.M.ce quartel, enquanto totalmente se não renderem, e sujeitarem às nossas armas: Mas se a não houver, não consentirá V.M.ce que os soldados pratiquem com aqueles miseráveis as desumanidades que ordinariamente costumam; e neste caso, ou no outro de restarem algumas pessoas das que tiverem feito resistência, mandará V.M.cê desarmar toda essa gente, e segurá-la muito bem, para com a mesma cautela a remeter à Camera dessa vila, e se me poder dali enviar com igual cuidado.

‘De todos aqueles prisioneiros, se farão os precisos registros, no livro, que para este fim há de entregar a V.M.cê a dita Camera; e serão assinados por V.M.cê e mais Oficiais e capelão da Tropa, em ordem a que fiquem autênticas, e possam assim servir de título da escravidão, a que S. Mag.e os tem condenado por toda a vida: Porém o Registro das mulheres, e filhos será separado, visto que em razão da sua inocência, lhes concedeu o mesmo Snr. a liberdade em todo o caso” (APP. Cód. 146. p. 137v) (grifos nossos).

 

Portanto, a ordem era castigar a ferro e fogo, reduzindo à cinzas as povoações dos que resistissem, e escravizar, entre esses, os que fossem capturados. Dessa forma, não há dúvidas de que o governador João Pereira Caldas permitiu a escravidão indígena no Piauí.

No ano seguinte, atendendo a pleito do Senado da Câmara de Jerumenha, encetou nova guerra contra os guegués, reduzindo-os ao aldeamento em S. João de Sende, fundado oito léguas ao norte de Oeiras, com número de 434 silvícolas dessa nação. E João Pereira Caldas mostra tanta vontade de combater o silvícola e tamanha firmeza de comando em suas determinações, que nem de longe se vislumbrará esses traços no governo de seu sucessor, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro. Proveniente do Pará, deveria ter experiência nesse tipo de conquista, do qual foi excelente mestre para João do Rego, que também àquele tempo já não era nenhum neófito. A fim de enfatizar essa afirmação, analisemos trechos da provisão de 1765, quando determina a João do Rego a conquista dos guegués:

 

“Porquanto não foi bastante o grandíssimo efeito que resultou da vivíssima guerra, que debaixo da direção de V.Mce se andou quase todo o anno passado fazendo às nações de Índios, que infestam esta Capitania, para que se deixe de experimentar ainda a freqüência de hostilidades com que a estes Povos continuam a insultar os Índios Guegués, por não ficarem tão batidos como os Timbyras, que sendo os que mais sofreram o rigor daquele flagelo, se faz preciso castigá-lo do mesmo modo aos ditos Guegués,  a fim de se acabar por uma vez com um tão prejudicial, e cruel Inimigo: (...). E incorporando V.Mce a esta bagagem, as munições de guerra, que leva deste Almoxarifado, fará que tudo vá, e marche unido na conserva do sobredito corpo de gente, para assim ir livre, e seguro de qualquer insulto dos Inimigos.(...). Também V.Mce sabe já belamente as cautelas com que deve marchar pelas terras dos Inimigos, ou que por eles se acharem infestadas: O cuidado e vigilância, que deve haver na conservação das munições de guerra, e mantimentos: E a economia, com que estes se devem distribuir, pois se acha tudo advertido, e acautelado nas ordens, de que acima faço menção, sendo por isso escusado repetir-lhe, outras semelhantes recomendações. (...).Outra vez torno a recomendar a V.Mce a cautela, e boa ordem, com que sempre se devem atacar todos os sobreditos Bárbaros, e não menos lhe lembro a união em que deve conservar a Tropa, sem por nenhum modo a repartir em escoltas, que lhe hajam de enfraquecer a força do corpo principal, e expô-lo desta forma a que os Inimigos se atrevam aos insultos, que bem se podem evitar, havendo continuamente a necessária cautela.(...).  ‘Deus guarde a V.Mce. Oeyras do Piauhy ao 1º de Abril de 1765” (APP. Cód. 147. p.19/21v) (grifos nossos).

 

Dessa forma, observa-se, entre outras determinações, que o governador não confiava exclusivamente a João do Rego a tática da campanha. Ao contrário, orientando-o sobre o cuidado com as munições para não caírem em poder dos inimigos e a condução da tropa, em hipótese alguma a dividindo, para não enfraquecê-la e encorajar o ataque do inimigo. Constata-se, pois, que João do Rego apenas executava a tática militar de João Pereira Caldas, não podendo, assim, se lhe creditar unicamente a responsabilidade pelo extermínio do silvícola piauiense. Todos tiveram a devida parcela de contribuição, e João Pereira Caldas já demonstra interesse nessa guerra desde os primeiros dias de seu governo.

Nesses termos, transcorreu a primeira década de existência da Capitania do Piauí. A 1º de julho de 1769, o coronel João Pereira Caldas comunica o Senado da Câmara de Oeiras:

 

“Agora me chegou a notícia de já no Maranhão se achar, vindo de Portugal naquela frota, o Ilmo. Sr. Gonçalo Lourenço Botelho, a quem S. Mag.e se serviu de nomear, para me suceder no governo desta Capitania. E por que nestes termos se faz preciso consertarem-se as estradas della, pelos quais o dito Sr. Governador se há de aqui encaminhar, prevenindo-se-lhe ao mesmo tempo dos necessários mantimentos. Lembro a V.M.ces que a esse fim hajam de aprontar e dar toda a competente providência, que se requer, para que assim se execute, sem a menor falta; e que também para o recebimento, e posse do mesmo Sr. Governador, se devem igualmente antecipar as disposições necessárias” (APP. Cód. 147. p. 139v/140).

 

Dessa forma, a 3 de agosto de 1769, transfere o governo a seu sucessor, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, segundo governador a administrar o Piauí. Em seguida, dirigiu-se para Lisboa, a fim de entender-se com as autoridades superiores, de onde logo mais retornou para Belém, no Grão-Pará. Depois da gestão administrativa no Piauí, ascendeu ao exercício de relevantes cargos públicos. Foi o governante piauiense que mais se projetou em toda a fase da Capitania, só encontrando paralelo na Província com José Antonio Saraiva. Em 8 de outubro de 1772, foi nomeado governador e capitão general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, tomando posse a 21 de novembro do mesmo ano e permanecendo no exercício do cargo até 1775. Como a Capitania do Piauí, entre outras, pertencia a esse Estado, João Pereira Caldas continuou a exercer jurisdição no Piauí, como capitão-general do Estado, situação que perdurou até 1774, quando o Estado foi dividido, constituindo-se uma unidade independente as Capitanias do Maranhão e Piauí. Nessa nova situação, a Capitania do Piauí ficou subordinada à Capitania Geral do Maranhão, cada qual com seu governador, porém o do Maranhão era hierarquicamente superior ao do Piauí. Esse novo Estado (Maranhão-Piauí) era composto das duas Capitanias, tendo a primeira como Capitania Geral ou cabeça do Estado e a segunda como Capitania subalterna.

Em 1775, João Pereira Caldas foi nomeado governador da Capitania do Rio Negro, hoje Estado do Amazonas, que se desmembrou da Capitania do Grão-Pará, e lhe era anexa, compondo um só Estado, no exercício de cujo cargo permaneceu até 1780. Ainda em 1775, graças a sua ação enérgica, mandando fortificar e povoar o futuro território do Rio Branco, o Brasil garantiu a posse desse território contra os espanhóis, assegurando-o mais tarde, em face de intervenção diplomática. Logo mais, por força do Tratado de 1777, foi nomeado plenipotenciário e primeiro comissário das demarcações de limites da mesma Capitania do Rio Negro, razão pela qual não pôde assumir o governo de Mato Grosso, para o qual fora nomeado concomitantemente, por ato régio de 30 de dezembro de 1779. Nesse tempo se responsabilizou pela terceira divisão, encarregada de demarcar os limites entre a foz do rio Jauru e a do Japurá. Dessa forma, tornou-se estrela de primeira grandeza na luta pela manutenção das fronteiras do norte do Brasil.

Por fim, após exercer os mais relevantes cargos público na colônia, transferiu-se para o reino, falecendo em Lisboa, a 7 de outubro de 1794, no posto de general do Exército e membro do Conselho Ultramarino. Segundo o testemunho do ouvidor da Capitania do Rio Negro (Amazonas), Francisco Xavier Ribeiro Sampaio, que com ele conviveu, João Pereira Caldas era “cavaleiro distinto da província do Minho, dotado de um gênio ativo, laborioso e infatigável, que todo aplicava ao desempenho sério e eficacíssimo de seu governo”. Por seu turno, para Artur César Ferreira Reis, “Pereira Caldas, com a coragem e o sentido dos problemas amazônicos que o caracterizavam, pretendeu utilizar o vale do Rio Branco para pastagens de gado, cuja criação incentivava” (RODRIGUES, 1979:418).

Todavia, não podemos encerrar esse estudo sobre o governo de João Pereira Caldas, sem lembrar que ele vem sendo apontado como autor do “Roteiro do Maranhão para o Rio de Janeiro pela Capitania do Piauí”. Segundo o historiador José Honório Rodrigues, trata-se de “uma das mais importantes descrições dos caminhos do sertão desde o Maranhão a Goiás, pelo Piauí. Descreve as fazendas de gado, mostra a importância do vaqueiro, faz reflexões políticas e econômicas sobre o interior. [...]. Nas advertências ele previne o leitor de que neste ‘Roteiro’ ele não só se propôs a ajuntar aquelas notícias, que pudessem servir para dar uma idéia circunstanciada do caminho que ele dirige, ‘mas me propus também escrevê-las debaixo do mesmo título, que me foi insimado”. Esclarece o citado historiador, que João Pereira Caldas “não faz menção de todos os acidentes geográficos, mas anotou tudo que parecesse necessário ‘para fazer conhecer o diverso Rumo, que se deve seguir e a diversidade que há mais sensível no País, seja natural, ou civil’”. Acrescenta que “Afora o tempo e a direção do caminho juntou, em notas, tudo o mais que pudesse ser interessante”. E esclarece o autor do ‘Roteiro’: “Acrescentarei por último, ingenuamente, que não sendo do meu intuito passar a Natureza e estado atual do País, a falar dos seus interesses, eu não me achei metido a fazer de passagem no corpo algumas reflexões, mas vim a fazê-las em corpo separado sobre a matéria dos números 28 até 43, assim como vão escritas em quinze capítulos”. E deixando forte indício de autoria do ‘Roteiro’ em referência, diz seu autor: “Se alguém se persuadir que as fiz levado do desejo de ver florescer um Estado, onde tive a honra de servir S. M. faz justiça à minha causa e da razão que sobeja, para eu me atrever a expô-la ao desprezo, que merecem pela má ordem, longas digressões, e fastidioso estilo, com que são feitas”. Comentado sua forma e conteúdo, diz José Honório Rodrigues: “O ‘Roteiro’ é seco, muitas vezes árido, mas muitas outras vezes rico de notas curiosas e humanas, apontando os rios navegáveis, a criação de gado, as aldeias de índios, retificando autores que o antecederam o que revela sua leitura; se há cachoeiras, ressaltos, giros, nascimentos de rios, divisões geográficas, riachos, sertões, há frases como esta: ‘A freguesia de Pastos Bons é uma parte muito nervosa do corpo do Maranhão’. Aponta descobridores e conquistadores de terras, como Domingos Afonso Sertão, descobridor do Piauí, revela as vilas e suas divisões pelo sertão adentro, trata das diversas nações de índios silvestres, fala do governo espiritual, descreve a capitania do Piauí, sujeita ao governo do Maranhão, mostra a repartição de terras, as sesmarias, trata das fazendas de criação, das grandes boiadas e seus destinos do Piauí para Bahia e Minas, descreve os sertões, as estradas, os açudes, as dificuldades de cultura no Piauí do açúcar e da mandioca. Percebe e registra os aspectos espirituais, como o desprezo que os primeiros povoadores tiveram da agricultura da capitania do Piauí, e a necessidade para a subsistência de criá-la e aumentá-la. Recapitula as lagoas e jornadas, e faz suas reflexões, como a de que é necessário um novo estabelecimento que se comunique pelo interior do País, do Rio Parnaíba da Capitania do Maranhão ao Rio Tocantins no Pará. Descreve os índios e seus caracteres, os vaqueiros e os trabalhos da criação, que não exigem muita gente. Em cada fazenda há dez ou doze escravos, e na falta deles, mulatos, mestiços, pretos forros, raça de que abundam os sertões da Bahia, Pernambuco e Ceará. ‘Esta gente perversa, ociosa e inútil pela aversão que tem ao trabalho da agricultura, é muito diferente empregada nas ditas fazendas de gados. Tem a este exercício uma tal inclinação, que procura com empenho ser nela ocupada, constituindo toda sua maior felicidade em merecer algum dia o nome de vaqueiro. Vaqueiro, criador, ou homem de fazenda são títulos honoríficos entre eles, e sinônimos, com que se distinguem aqueles a cujo cargo está a administração e economia das fazendas’”. Estabelece comparação entre mão-de-obra necessária para a pecuária e para a agricultura, cuida da criação e remessa de gado, da introdução de negros, do penoso trabalho destes, da alimentação dos moradores do sertão, das migrações internas, dos interesses da metrópole, que defende repetidas vezes, da problemática de diversas capitanias, dos melhores portos, da comunicação, do comércio e, por fim, propõe plano de desenvolvimento. Para José Honório Rodrigues, “por essa simples enumeração dos problemas de que trata o ‘Roteiro’, bem se vê sua enorme importância que bem o coloca entre os maiores estudos que se fizeram no período colonial”.

Portanto, se confirmada sua autoria, como é quase certo, João Pereira Caldas consolida seu nome na história piauiense, não só como governador laborioso e enérgico, mas também como autor de uma das análises mais profundas sobre o Brasil colonial, inclusive o Piauí, terra que governou por uma década e externou por várias vezes gestos de apreço e amizade.

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

I) LIVROS

BARATA, Manoel. Formação histórica do Pará. Coleção Amazônica – Série José Veríssimo. Belém: UFPA, 1973.

CHAVES, Pe. Joaquim. Apontamentos biográficos e outros. 1º volume. Teresina: APL/MEC, 1981.

NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Rio: Artenova, 1974.

PINHEIRO, Antônio César Caldas. Catálogo de verbetes dos documentos manuscritos avulsos da Capitania do Piauí existentes no Arquivo Ultramarino  Lisboa-Portugal (1684-1828).Goiânia: Sociedade Goiana de Cultura, 2002.

RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil. 1ª Parte. 4ª Ed. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1979.

 

II) DOCUMENTOS MANUSCRITOS

 

PIAUÍ – Livro(Códice) 146, Estante da Capitania. Arquivo Público Estadual (Casa Anísio Brito).

PIAUÍ – Livro(Códice) 147, Estante da Capitania. Arquivo público Estadual (Casa Anísio Brito).

PIAUÏ –  Livro 1º de registro das posses e patentes dos governadores da Capitania de São José do Piauí, aberto em 12 de julho de 1769.

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Notas

  1. O Brigadeiro Gonçalo Pereira Lobato e Sousa, foi nomeado governador do Maranhão, por carta régia de 6.8.1753, tomado posse do cargo em 04.10.1753.
  2. Em 28 de maio de 1766, o governador João Pereira Caldas, ordena ao Ouvidor-geral, que faça prender a José Leite, morador na fazenda da Conceição, ribeira do rio Piauí, e irmão do padre jesuíta João de São Payo, ex-administrador das fazendas que constituíam as capelas instituídas por Domingos Afonso Sertão. E que apreendesse também seus papéis, pois era acusado de se corresponder com inacianos expulsos, comunicando os acontecimentos do Piauí e aqui também divulgando suas ideias e pregando seu breve retorno, dizendo já terem sido favorecidos pelo rei, por interferência do papa. Também, de acusar Francisco Xavier de Mendonça Furtado, ex-general do Pará, de ser responsável pela prisão dos regulares. E após formar um sumário de testemunhas, em 19 de junho do mesmo ano, o remete preso para Aldeias Altas, hoje, Caxias, escoltado por uma partida de dragões. Dali, uma escolta o levaria para S. Luís, entregando-o ao governador Joaquim de Mello Póvoas. Mais tarde, em 7 de fevereiro de 1767, foi o preso embarcado no navio S. Lázaro, do capitão Gaspar dos Reis, para uma prisão na Corte. Foram os bens desse Réu sequestrados por ordem do governador, de 22 de julho de 1766. É que a Lei Régia de 3 de setembro de 1759, proibia toda e qualquer correspondência com os jesuítas, punindo os transgressores com pena de morte natural e confisco dos bens para o Fisco de S. Majestade (APP. Cód. 147. p. 62/62v. 62v/63. 65v/73v. 74. 86/86v).

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* REGINALDO MIRANDA, advogado, escritor, membro da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI.