Gonçalo de Barros Taveira: um familiar do Santo Ofício.
Por Reginaldo Miranda Em: 08/08/2017, às 11H52
Na sociedade estratificada do Antigo Regime os privilégios assumem um peso fundamental na vida do indivíduo, separando-os em camadas sociais. Era uma sociedade excludente, com lugares bem demarcados na hierarquia social. Por isso, era muito importante submeter-se às suas instituições, passar pelo calvário das investigações, provar a pureza de sangue e a boa conduta social porque abriam-se as portas para os privilégios. Em face desse modelo é que hoje se torna importante fonte de pesquisa para a história social, o estudo das habilitações para as ordens sacras, para o Santo Ofício e para a Ordem de Cristo, cada qual com suas peculiaridades.
Uma vez admitido nos quadros dessas instituições estava o indivíduo com as portas abertas para a obtenção de privilégios, reconhecido como de boa cepa, sangue limpo, cristandade velha, boa instrução, meios abastados, gênio manso e bom proceder, tudo atestado através das provanças. E tudo isto mais se avultava no mundo colonial, onde campeava a miscigenação racial, chegavam cristãos novos, enfim, gente de origem duvidosa, de forma que o pertencimento a essas instituições criava uma casta privilegiada para a ocupação dos cargos públicos e aquisição de sesmarias.
Infelizmente, por falta de acesso às fontes, o que agora está se resolvendo, no Piauí ainda não exploramos as potencialidades dessa documentação. No entanto, para início de conversa localizamos um processo de habilitação de Gonçalo de Barros Taveira, morador na freguesia de Nossa Senhora da Vitória, como Familiar do Santo Ofício, em cujo campo estamos abrindo trincheira nova.
Nasceu Gonçalo de Barros Taveira em 1669 ou 1670, na Rua do Estaleiro, vila e concelho de Ponta da Barca, plantada à margem esquerda do rio Lima, distrito de Viana do Castelo, Arcebispado de Braga, no Minho Lima, norte de Portugal, a 72km da cidade do Porto, filho legítimo de Manoel de Barros, cirurgião naquela vila, e de sua esposa Maria Taveira, ambos naturais do mesmo lugar; neto paterno de Manoel de Barros e de sua mulher Izabel da Lomba, ambos naturais da freguesia de São João Batista, da mesma vila da Barca; neto materno de Gonçalo Rodrigues, natural da freguesia de Santa Maria da Vila Nova de Muía, do mesmo termo e de sua mulher Domingas Taveira, natural da freguesia de São João Batista da mesma vila da Barca.
Este concelho está rodeado por quatro outros, sendo dois pertencentes ao distrito de Viana do Castelo (Arcos de Valdevez a norte e Ponte de Lima a oeste) e os outros dois ao distrito de Braga (Vila Verde e Terras de Bouro a sul), fazendo ainda fronteira com a Espanha.
Na vila natal passou os despreocupados anos da infância, brincando ao lado do irmão primogênito Manoel de Barros Taveira e de outros colegas da pequena vila, de que resultavam, muitas vezes em banhos nas águas do rio Lima. À noite, nas rodadas de conversas era comum ouvir pela boca dos mais velhos, os relatos verossímeis, alguns fantasiosos, de conterrâneos saídos da pequena vila que haviam feito riqueza na Colônia de além mar. Essas histórias despertavam a imaginação daquele menino sonhador, que passou a alimentar o sonho de repetir esses feitos grandiloquentes.
Embalado por essas histórias, mal completou a maioridade rumou para Lisboa e dali para o Brasil, aportando na Bahia e logo passando ao sertão do Piauí, onde chegou em 1695 ou 1697, poucos dias depois do padre Miguel Carvalho de Almeida ter instalado a freguesia de Nossa Senhora da Vitória e ter concluído a sua importante Descrição. Tivesse chegado pouco antes teria sido relacionado pelo padre entre os moradores do Piauí, mas, certamente, está entre os primeiros que chegaram depois da passagem do padre. É significativo dizer-se que quando ele subia estrada para o sertão encontrou a comitiva do padre que descia caminho inverso para o litoral, a fim de prestar contas da missão. Ao chegar procurou o alferes, depois capitão Silvestre da Costa Gomes, natural da mesma pequena vila, proprietário da fazenda Salinas, na barra do riacho da Tranqueira, afluente do rio Canindé, que a arrendou ao menos desde 1699, em substituição a Ignácio Gomes, porque em 2 de novembro de 1705, diria aquele que o fato se dera a cerca de seis anos.
Logo mais deixou esta fazenda e passou a arrendar as do capitão Domingos Afonso Sertão, maior sesmeiro do Piauí, natural de Torres Vedras, depois juntando a estas a do conterrâneo Manoel de Araújo Costa, de forma que em pouco tempo iniciou e aumentou seu rebanho bovino, formando sólido patrimônio. Não viera para brincar, era a realização do sonho juvenil.
Enquanto isto, no Reino, seu irmão Manoel de Barros Taveira, que seguira vida eclesiástica, tornara-se Prior da igreja de São Paulo da vila de Covilhã, no Bispado da Guarda e comissário do Santo Ofício, para esta última ocupação prestando juramento em 22 de março de 1703.
Essa ascensão, certamente comunicada por carta, estimulou ao irmão que, no mesmo ano, iniciou processo pedindo habilitação para Familiar do Santo Ofício. Neste caso, já tendo um irmão confirmado, o processo seria mais fácil.
No entanto, se arrastam as investigações por quatro anos, ouvindo-se cinco testemunhas na vila natal e outras tantas para dizer sobre a vida do habilitando na Colônia. As testemunhas ouvidas em Ponta da Barca, dia 11 de janeiro de 1707, disseram de sua infância e juventude, quando era conhecido pela alcunha de “O Caco”, nascido na Rua do Estaleiro, onde ainda moravam os seus pais; uns disseram que ele se ausentou dez ou doze anos para o Estado do Brasil, outros disseram que fazia onze ou doze anos, pouco mais ou menos, o que remonta, no primeiro caso aos anos de 1695 ou 1697 e no segundo aos anos de 1696 ou 1697; sobre os pais e irmão acrescentaram que “uns e outros são de sangue limpo e geração sem raça de nação infecta”.
No entanto, o Comissário do Santo Ofício não veio ao Piauí, onde morava o habilitando, devido distar, conforme afirmou, cerca de duzentas e cinco léguas da cidade da Bahia. Porém, ouviu cinco testemunhas muito importantes, conterrâneas do habilitando que haviam desbravado e colonizado o sertão do Piauí, e naquele momento viviam na cidade da Bahia. Os depoimentos foram tomados antes dos de Ponte da Barca, em 2 de novembro de 1705, sendo ouvidas as seguintes testemunhas, assim qualificadas:
1. O capitão Domingos Afonso Sertão, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, natural do termo de Torres Vedras e morador na cidade da Bahia, disse ser cristão velho, de 65 para 66 anos de idade;
2. Manoel de Araújo Costa, natural da vila de Ponta da Barca, Arcebispado de Braga e morador nesta cidade da Bahia, onde vive de seu negócio, disse ser cristão velho, de idade de 40 anos;
3. Capitão Silvestre da Costa Gomes, também natural de Ponta da Barca, morador na Bahia, disse ser cristão velho, de 48 anos de idade;
4. Coronel José Garcia Paz, natural de Vilanova de Foz Côa, Bispado de Lamego, casado e morador na freguesia de São Bartolomeu de Pirajá, termo da cidade da Bahia, onde vive de suas fazendas, disse ser cristão velho, de 50 anos de idade;
5. Capitão Gabriel Lopes, natural da província de Traz os Montes, Arcebispado de Braga, disse que morou no sertão do Piauí, cerca de 5 anos.
Essas testemunhas travaram conhecimento com o habilitando no sertão do Piauí, embora dois fossem naturais da mesma vila de Ponta da Barca, onde o conheceram ainda jovem: Manoel de Araújo Costa e Silvestre da Costa Gomes, talvez parentes entre si. Certamente, o habilitando deles tinha referência e os procurou ao chegar ao Novo Mundo. Disseram todos que o mesmo residia na freguesia de Nossa Senhora da Vitória, era solteiro, vivia de criar gados, tendo-os bastante, era rico e tinha curral seu e possuía cerca de 35 anos de idade; Manoel de Araújo Costa, acrescentou que o habilitando era morador no sertão do Piauí, freguesia de N S da Vitoria, nas fazendas do Cap. Domingos Afonso Sertão; que conheceu seus pais e irmãos, por ser natural da mesma vila; que assistiu com ele no sertão por uns cinco ou seis anos, sendo seu vizinho até o tempo em que ele testemunha veio para a cidade da Bahia; disse que o mesmo é solteiro, nunca foi casado nem tem filho natural; o capitão Silvestre da Costa Gomes, disse que o habilitando vive de criar gado e assistiu em uma sua fazenda, hoje assistindo nas do Cap. Domingos Afonso Sertão; que isto deu-se a cerca de seis anos; disse que o habilitando parece ser de idade de 35 anos, sabe ler e escrever e tem capacidade para exercer a função; o coronel José Garcia Paz, disse ter sido morador no sertão do Piauí, onde conheceu o habilitando a cerca de oito anos, e ainda o encontra na cidade da Bahia, quando ele vem a seus negócios; o Cap. Gabriel Lopes, disse que morou no sertão do Piauí, cerca de 5 anos e lá o conheceu.
Em face desses depoimentos e da demais prova documental, embora não localizassem o assento de seu batizado, por negligência do abade que o batizou, concluíram que o mesmo era de sangue limpo, por si e seus ascendentes, sem condenação de feito ou de direito.
Em 2 de julho de 1706, foi o mesmo aprovado e habilitado, sendo a carta concedida em 16 de janeiro de 1707. É o primeiro Familiar do Santo Ofício no Piauí, de que temos notícia.
Todavia, agiu com prudência sem exorbitar de suas funções, até agora não se conhecendo qualquer ato de perseguição ou de severidade contra seus contemporâneos.
Já em idade madura, casou-se com uma senhora de boa cepa portuguesa, embora nascida na colônia, na freguesia de Santo Antônio e Almas de Itabaiana, Arcebispado da Bahia, dona Antônia Gomes Travassos, então viúva do capitão de ordenanças Lourenço da Costa Veloso, dos primeiros colonizadores que chegou ao Piauí; era ela filha do capitão-mor de Sergipe Del Rei, Pedro Gomes Ferreira (ou de Abreu), natural da cidade da Bahia, batizado na freguesia de Sergipe do Conde, na Bahia, e de dona Domingas Ferreira Travassos, nascida e batizada na vila de Penedo do rio São Francisco, esta filha do rico colonizador português, capitão Manuel Martins Chaves, Senhor da Capela do Buraco, posteriormente Porto da Folha, e de dona Maria da Cruz Porto Carrero. Dona Antônia Gomes Travassos, às vezes também assinava Antônia Gomes dos Santos, tinha ao menos mais cinco irmãos, a saber: 1. Benta Gomes; 2. Frei Manoel da Madre de Deus, “O Chaves”, guardião do Convento de São Francisco da vila de Penedo e visitador-geral das missões pelo sertão; 3. Capitão José Gomes Ferreira, morador na Paraíba, capitania do Ceará; 4. Capitão Francisco Gomes Ferreira, Familiar do Santo Ofício e grande latifundiário; e, 5. D. Maria da Cruz Porto Carreiro, matriarca dos sertões do São Francisco, casada com o paulista Salvador Cardoso de Oliveira, filho de Manoel Francisco de Oliveira e Catharina do Prado, ambos naturais de São Pulo; essa última irmã, morava no alto rio São Francisco, em Minas Gerais, onde liderou grande revolta contra a cobrança de imposto, em 1736, sendo avó de Antônio Gomes Ferrão Castelo Branco (cf. Botelho, Ângela Viana e Carla Anastasia. D. Maria da Cruz e a sedição de 1736. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012). Para finalizar, por via de sua mãe era ela descendente do português Antônio Cardoso de Barros, 1º Provedor-mor do Brasil e donatário de capitania, que pereceu em 1556, ao lado de D. Pero Fernandes Sardinha, 1º Bispo do Brasil, ambos abatidos pelos índios Caetés, depois de sofrerem naufrágio nas costas do Nordeste; e por via de sua tia materna, Ana Gomes Vieira que casara com o português João Alves Feitosa vai aparentar-se com os Feitosa, dos Inhamuns, entre tantos outros ramos familiares.
Depois do casamento, Gonçalo de Barros Taveira mudou-se para a fazenda Jacaré, no sudoeste do Piauí, que recebeu em dote. Em 29 de abril de 1724, foi pelo governador do Maranhão João da Maia da Gama, nomeado para o posto de capitão-mor da freguesia de Santo Antônio do Gurgueia, em substituição a Manoel Pereira Leal, cujo tempo havia acabado. Novamente, em 28 de janeiro de 1727, solicita nova carta de confirmação no mesmo posto “por ser um homem honrado e haver servido os cargos da república, sendo um dos primeiros eleitores da capitania do Piauhy, e haver assistido nas fronteiras contra o gentio bárbaro com armas e escravos, e despesas de suas fazendas para as tropas, e dando muitas vezes armas de fogo suas a pessoas que as não tinham, no que tem servido a Sua Majestade”, argumenta ele(AHU. Cx 15. Doc. 1560).
Sobre a referida fazenda, é importante ressaltar que a mesma foi descoberta e situada no início daquele século pelo colonizador português Baltazar Carvalho da Cunha, um dos pioneiros na fundação de Parnaguá. Depois de seu óbito foi pelo testamenteiro Manoel Alves de Sousa vendida ao capitão Lourenço da Costa Veloso, primeiro marido de dona Antônia Gomes Travassos. No entanto, mais tarde, em 27 de junho de 1727, foi regularizada a sesmaria em nome do segundo consorte, que a recebeu em dote, medindo três léguas de comprido e uma de largo, no lugar chamado Jacaré, no sertão do Gurgueia, pelo governador e capitão general João da Maya da Gama, depois confirmada por El Rei. Alegou o peticionário, que a conservava com gado vacum, cavalar, casas, curras e escravo (AHU. Cx 1 – D. 46).
De seu casamento deixou descendência, não se sabendo ao certo o número de filhos. No entanto, localizamos documentos referentes a dois deles: 1. D. Perpétua Luiza de Barros Taveira, que foi casada com o tenente-coronel João do Rego Castelo Branco (cf. descendência em nosso livro Memória dos ancestrais – parentes e contraparentes: uma genealogia do sertão. Teresina: APL, 2017); 2. Padre Manoel de Barros Taveira, antigo vigário de Jerumenha (cf. biografia em nosso livro Piauí em foco. 2ª Ed. Teresina: APL, 2012); também, acreditamos que D. Antônia Gomes Travassos teve ao menos um filho de seu primeiro consórcio, o capitão João da Costa Veloso, proprietário da fazenda Graciosa, na confluência do rio Canindé com o Parnaíba, sendo ele tronco da numerosa família Costa Veloso, no Piauí.
Por fim, não sabemos ao certo quando faleceu o Familiar do Santo Ofício, rico fazendeiro e capitão-mor do Gurgueia, Gonçalo de Barros Taveira. No entanto, sabemos que esse cristão velho português foi um importante colonizador de nosso sertão, desbravador do baixo Gurgueia e, assim, precursor da fundação de Jerumenha. A ele nossas homenagens.
Reginaldo Miranda é historiador e membro da Academia Piauiense de Letras