ELMAR CARVALHO


Prédio dos Correios, antes da reforma


 

Como todos sabemos, a vida é composta, com altos e baixos, com alegrias e tristezas. Ontem cedo, recebi um telefonema de minha mulher, dando-me uma excelente notícia: nosso filho João Miguel havia sido aprovado em concurso para oficial da Polícia Militar do Amazonas. Porém, hoje cedo, ao abrir os meus e-mails, me deparei com infausta notícia; meu amigo José Francisco Marques me comunicava o falecimento de seu pai, o senhor Gerson, amigo de meu pai, e que fora seu colega no antigo DCT – Departamento de Correios e Telégrafos. Ao lhe responder, disse que Gerson já estaria numa das várias moradas do Senhor. Ficamos mais tristes e nos sentimos mais desamparados quando as nossas principais referências vão desaparecendo. E as nossas mais caras referências são os nossos amigos e os amigos de nossos pais. Gerson Marques era meu amigo e era um dileto amigo de meu pai. Algumas vezes o vi deitado numa rede de tucum, na varanda da casa paterna, a conversar comigo e com meu velho.

 

Ficamos mais tristes e mais desamparados disse, porque com a morte desses amigos muito de nosso passado e de nossas lembranças parece perder o sentido ou, pelo menos, fica mais tênue, mais esgarçado. Ainda hoje recordo que, quando criança, nas vezes em que fui visitar meu pai no prédio dos Correios, achava bonito e importante o movimento e o barulho das máquinas telegráficas. Sinto, neste instante, o cheiro da tinta impregnado no ar. Ouvia o som melodioso do teletipo e a percussão musical do morse. Os dedos ágeis, rápidos de Gerson Marques dedilhavam as teclas do negro e sóbrio teletipo, com as vísceras das engrenagens expostas, enquanto o nó do dedo médio direito do senhor Francisco Carvalho Brito como que tamborilava sobre o cabeçote do manipulador do velho aparelho de morse.

 

Nos telegramas recebidos, esses aparelhos escreviam sobre uma fita de papel, que ia sendo desenrolada de um rolo ou bobina. O teletipo se assemelhava a uma máquina de escrever, com os mesmos caracteres, que eram impressos sobre a tira de papel, que depois era cortada e colada sobre uma folha de papel. O mesmo processo acontecia com relação ao morse, apenas que, em vez de letras ou algarismos, eram estampados os sinais codificados em sistema binário de ponto e linha, que, em diferentes combinações, representavam todas as letras do alfabeto. Depois vieram, em rápida sucessão, o gentex, o telex, o fax, o celular e o computador, e hoje, perplexos, já não sabemos o que mais ainda poderá surgir.

 

Aqui, abro rápido parêntese, para recordar um primo de meu pai – Salomão de Sá Furtado – que, em Barras, talvez tenha sido um dos maiores morsistas do Piauí. Com efeito, ele traduzia o código morse apenas pelo som do percursor, sem precisar olhar para os sinais estampados na fita de papel. Salomão gostava de ler e escrevia com clareza e elegância belas cartas. Ao lhe enviar o primeiro livro de que participei, o Galopando, no final da década de 1970, respondeu-me, dizendo antever um futuro brilhante em minha vocação literária. Talvez não tenha sido um bom profeta, mas, com certeza, foi um morsista excepcional. Tinha uma boa biblioteca. Passando dias de férias em sua casa, li alguns livros de seu acervo.

 

Infante, quanto fui certa vez aos Correios, o senhor Gerson (ou foi o irmão Brito, já não sei ao certo), perguntou-me, brincando, de quem eu era pai, evidentemente tentando confundir-me, no intuito de que eu respondesse que era pai de Miguel, meu pai. Mas, em ousado rompante infantil, respondi:

- Sou pai teu!

Meu pai me repreendeu, com certa severidade, essa afoiteza, e não mais cometi esse tipo de insolência, embora perdoável em face da idade. Deitado na rede de tucum, no alpendre da casa de meus pais, Gerson contou-me, sorrindo com muito gosto, um episódio de minha infância de que ele nunca se esqueceu. Narrou-me que uma pessoa, que ajudava minha mãe nos afazeres domésticos, fora banhar-me a mim e a mais dois irmãos. Sucedeu que, toda vez em que essa pessoa dava o banho por encerrado, eu e meus dois irmãos, em verdadeira traquinagem, rolávamos na areia do quintal, tendo o banho que repetir-se várias vezes. Os seus olhos verdes brilhavam de alegria, quando me contou essa diabrura, que eu já esquecera completamente.

 

Gerson Marques sempre teve um bom padrão de vida, pois além de funcionário dos Correios, fora dono de sortida mercearia e exercera outras atividades comerciais. Exerceu o magistério durante algum tempo. Além da amizade e consideração que me tinha, admirava o meu esforço e minha atividade intelectual, segundo informação de seu filho Zé Francisco, professor, músico, pescador, mas não dos que mentem, e sobretudo meu amigo. A minha última lembrança do seu Gerson foi quando, meses atrás, emparelhei meu carro com o de seu filho, perto do patronato, e ele, com demonstração de viva alegria, em gesto amplo, expansivo, acenou-me, a me dizer palavras de admiração, amizade, apreço e estímulo. É essa a derradeira imagem que quero carregar dele, desse caro amigo, desse dileto amigo de meu pai.