Gênese de A ponte na memória

DIÁRIO

[Gênese de A ponte na memória]

Elmar Carvalho

18/02/2021

Afinal terminou o primeiro carnaval ocorrido nestes tempos de pandemia. Gostei. Pouco barulho, menos confusão, menos zoada destas atuais músicas horrorosas carnavalescas. Nesse ponto, fui beneficiado pelo distanciamento social.

Por isso, resolvi tentar fazer hoje um texto sobre a gênese de meu poema A ponte na memória, conforme havia prometido a mim mesmo e ao poeta Ernani Jetirana, que, numa live de “Leituras Compartilhadas” do meu livro Rosa dos ventos gerais, promovida pelo site Entretextos, mediada pelo poeta e escritor Dílson Lages Monteiro, havia lido e comentado esse poema, com muita sagacidade e pertinência.

É um texto em que tentei juntar o discursivo a recursos do concretismo e dos ditos poemas visuais, e que por isso mesmo nos remete ao velho carmen figuratum. Jetirana foi muito feliz em sua análise. Observou com muita propriedade esses aspectos formais, dissecando-os da melhor forma possível. Ao fazer o avanço ou recuo de alguns versos, além de chamar a atenção para a sonoridade de algumas palavras ou fonemas, para rimas e aliterações, eu quis dar uma ideia do arco da ponte, de sua elegante curvatura, e ao menos sugerir a imagem de janelas e de arcos, sejam eles góticos ou simplesmente exóticos.

Inclusive foi sagaz em seu comentário sobre o título; explicou porque era melhor A ponte na memória, do que um hipotético A ponte da memória. A primeira expressão – A ponte na memória – que é realmente o título, transmite a ideia de movimento, de plasticidade, e de como a ponte foi ficando ou se transformando em minha memória, e não como ela era realmente, ao menos na ocasião em que escrevi o poema. O comentarista expressou o que de fato eu pensei ao optar por essa versão. Quanto à interpretação e dissecação do conteúdo, o Jetirana teve uma precisão de mira de raio laser. Se pudesse lhe dar uma nota, a nota seria 10 (dez).

O arguto comentarista não se pronunciou sobre a gênese do poema, porque não era seu objetivo, e porque não poderia fazê-lo, exceto se tivesse conversado comigo ou se tivesse lido algum texto a respeito. Poderia, no máximo, fundamentado em seu faro detetivesco e em sua intuição e inteligência interpretativa arriscar alguns palpites, que poderiam ou não se aproximar da verdade. Acho interessante falar sobre isso, sobre a história desse pequeno texto poético, de forma sintética.

Após morar por muitos anos em Parnaíba, aos 26 anos, e depois de aprovação em concurso público realizado pelo famoso DASP, em 10/08/1982, tomei posse de meu cargo de fiscal da extinta Superintendência Nacional do Abastecimento – SUNAB, Delegacia do Piauí, cuja sede ficava em Teresina. Portanto, tive que ficar um tanto exilado da casa paterna, onde morava, e de meus amigos parnaibanos e de minha namorada Fátima, depois minha esposa.  

Fiquei acometido de um verdadeiro parnaibanzo, palavra inventada por um desses amigos, o poeta Jorge Carvalho. Vinha uma vez por mês a Parnaíba, para matar essa saudade insidiosa e constante. Quando se aproximava o momento de ir para o terminal rodoviário, para o retorno, uma tristeza profunda se apoderava de mim. Nesse tempo a poesia e o entusiasmo pela vida me vibravam muito forte na alma.

Numa dessas viagens, após ter ido à praia de Atalaia, que prefiro chamar de Amarração, de nome tão poético quanto apropriado, porque nele podemos enxergar, sem necessidade de muito esforço, as palavras amar, ação de amar, de amarrar (amarrar barcos e corações refertos de paixão), fui tomar uma última cerveja perto da Ponte Simplício Dias, no lado esquerdo de quem vai do centro para a Ilha Grande de Santa Isabel, no entorno do Porto Salgado ou do Porto das Barcas.

Da calçada do boteco, à sombra dos imponentes e copados pés de oitis, a degustar lentamente a cerveja, eu via o arco da ponte e as águas plúmbeas do Igaraçu. Sobre e sob a ponte eu havia passado muitas vezes, em minha moto uivante, em demanda do Recanto da Saudade (de Dom Augusto da Munguba), de Morros da Mariana, do Labino, dos Tatus e de Pedra do Sal. De um lado e do outro de onde eu estava, se erguiam velhos prédios, alguns deles ainda suntuosos, a revelar o fastígio de uma Parnaíba situada num passado de grandeza e opulência.

O vento baloiçava os oitizeiros e afagava os meus cabelos, outrora bastos e ondulados. Ao olhar a curvatura da ponte, me lembrei de arcadas góticas, de parábolas e abóbadas, de colunas dóricas e jônicas, e de um lendário arco-íris, em cujas extremidades dizem existir um pote ou uma botija de ouro. Me imaginei um argonauta à procura desse tesouro.

Extraí desse conjunto arquitetônico e dessa situação que me emocionava todos os elementos e metáforas de meu poema. Imaginei os velhos prédios como uns veleiros, empurrados pela brisa, que me parecia um sopro divino, nos quais eu viajava no espaço e no tempo; no espaço dos desconfins de uma terra de magia e encantos e no tempo feito de emoção e saudade.

Para ilustrar este texto, e para que o leitor possa melhor analisar o que nele foi exposto, julgo conveniente transcrever abaixo o aludido poema, que o ensejou:

 

A PONTE NA MEMÓRIA

 

O vento passavoante

               pássaro voante

sob o arco-da-velha

sob o arco da ponte.

Baloiça os pés de oitis,

joga confete com suas folhas

e empurra o casario antigo

com suas: arcadas dóricas

                   volutas jônicas

                   ogivas góticas

                   sacadas exóticas

com suas parábolas e abóbadas.

O vento passalígero passalísio

e empurra o casario antigo

que navega parado

no tempo que navega

como um mar que navegasse

sob um navio ancorado

que se deixasse navegar.

Meu sonho de malas prontas

é passageiro e tripulação

do casario – navio que navega

ao se deixar navegar.