Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.

O começo de “Cem anos de solidão”, romance lançado em 1967 por Gabriel García Márquez (Record, tradução de Eliane Zagury), é um dos maiores clássicos do gênero, sobretudo na preferência do leitor comum. Presença obrigatória em listas de aberturas romanescas memoráveis, vale a pena examinar mais de perto o mecanismo que o torna tão eficaz: a superposição de tempos narrativos.

García Márquez demarca com brevidade impressionante dois momentos de ação, separados por “muitos anos”, e em cada um deles pendura um anzol que o leitor dificilmente deixará de morder. O primeiro traz uma isca política ou mundana: quais foram os motivos e o desfecho do tal fuzilamento? O segundo abre uma dimensão poética de formação, situando numa “tarde remota” a transmissão entre pai e filho de um saber sobre a natureza. Sem forçar barra nenhuma, pode-se imaginar até um terceiro anzol em que a isca é a curiosidade de saber como histórias tão díspares vão se combinar.

E tudo isso em duas linhas.

Além de enredar o leitor em mais de uma trama ao mesmo tempo, a abertura que superpõe tempos tem o mérito de fixar à vista de todos as estacas entre as quais vai se estender a corda da narrativa – que, ao contrário do que supõem muitos literatos, deve manter certa tensão até o fim para que o leitor equilibrista não despenque lá de cima e desista do livro.

O escritor colombiano, que nunca demonstrou dúvida sobre a necessidade básica de prender o leitor, gosta do truque. Muitos anos depois, em 1981, havia de repeti-lo na abertura de “Crônica de uma morte anunciada” (Record, tradução de Remy Gorga, filho), com menos economia de meios e, a meu ver, menos sucesso:

No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros. “Sempre sonhava com árvores”, disse-me sua mãe 27 anos depois, evocando os pormenores daquela segunda-feira ingrata.

Mas García Márquez não tem a patente desse tipo de começo. Um exemplo feliz, próximo de nós no tempo e no espaço, é o do romance “O segundo tempo”, de Michel Laub (Companhia das Letras), lançado em 2006:

Hoje o futebol está morto, e duvido que alguém ainda chore por ele, mas não era assim no dia 12 de fevereiro de 1989.