Ainda não era passado muito tempo quando as sandálias afundando na lama de tabatinga ele via o carregamento da alvarenga que o Barão do Juruá puxava para a cidade de Manaus desde o Rio Jordão. Pois a velha batina fedia, estava molhada de suor. O suor escorria sobre outro mais antigo, encharcando os remendos. Debaixo de um grande, velho e aziago guarda-chuva preto, o Frei parecia ridículo no barranco, coisa estranha, exótica, à margem, na maior dificuldade. O Barão do Juruá carregava, e o Frei tinha descido para almoçar, trôpego, necessitando de terra firme e fugir do calor, os pés afundavam no barro mole. Subira com dificuldade a ladeira escorregadia da margem quando os primeiros cães apareceram. Primeiro foram dois, que desceram a ladeira com ódio. Depois vieram outros e Frei Lothar se viu finalmente cercado de cães, e usava a cruz do rosário para defender-se. As crianças e os homens se riam, velho imprestável. Alguns lhe deviam a vida. Mas Fernando Fialho, o dono do porto, apareceu de repente e o socorreu. Fialho estava atarefado no carregamento de juta que seguia para Manaus, pois a nova riqueza da economia da região era a juta. Pareceu-lhe que Frei Lothar não podia embarcar porque os carregadores retiraram a prancha, e pela prancha passavam fortes e baixos, arriados pelo peso dos fardos que afundavam no barranco. Frei Lothar olhava as águas barrentas que emporcalhavam suas sandálias. Os meninos desceram a ladeira. Já não lhe pediam a benção. Ninguém o respeitava, velho e difamado. Diziam dele que gostava de meninos, o que era mentira. Os meninos pulavam na água barrenta, perto dele. A água se esparzia, brilhante. Ameaçavam dar um banho no missionário. Frei Lothar não reclamava porque estava doente, a doença da velhice, sem forças, sem coragem, sem nervos, sem vida, sem ânimo, sem fé. Olhava com compaixão, suor e impaciência para tudo aquilo. Era em verdade um bem aquele respingo que o refrescava. Se pudesse tiraria a fedorenta batina e mergulharia feliz naquela água. Frei Lothar misturava todos os fatos: os escorpiões, os cães, o banho, a doença, e a velhice, a calúnia. O fim. O aniquilamento, a morte. Frei Lothar, as pernas a tremer, sentia uma ponta de desmaio, no calor. Miseráveis cães! Miseráveis moleques! Miserável vida! A tarde começava a cair e a noite se aproximava. O Barão do Juruá ia zarpar, finalmente, vazio - uma benção, que Antônio Ferreira proibira de levar passageiros. Não, não era verdade que o mundo estava contra ele. No dia anterior fôra mesmo bem tratado. Ferreira aturava o velho padre que medicava as gentes dos seringais. O Barão do Juruá e tudo e todos que pertenceram ao império Bataillon eram de propriedade de Antônio Ferreira. O Barão ia vazio, o Frei viajaria com sossego, com conforto. Ele conhecera viagens em embarcações cheias de porcos e de redes, fedendo a excremento e a peixe podre. O pescoço do padre ardia de calor, o suor escorria e arrojava-se no peito. Com que facilidade aqueles homens erguiam e carregavam os pesados fardos! Ah, juventude, juventude! Ah, força dos braços! Frei Lothar chegara de Tarauacá, que ele ainda chamava de Villa Seabra, tinha atravessado a pé o difícil Paraná São Luís e o Igarapé São Joaquim, passado por Universo, por Santa Luzia, por Pacujá, viera de canoa por aquele furo. Oh, não ... Ele já não era daquilo. Que se preparasse para morrer. E Frei Lothar não queria morrer, passara a vida combatendo a morte. Acabaria no fundo de uma rede em Manaus, na freguesia de Aparecida, no meio da caridade imprestável. Não, aquilo não era certo. Gostaria de morrer em sossego, ou de regressar à Europa, sonho que se dissipava, pois era pobre. Quarenta anos ali, no fundo daquele inferno, esquecido, reduzido, perdido na selva. Saberia viver longe daquele mundo selvagem? Como poderia chegar à Europa, à Estrasburgo, sua terra natal? Fizera tudo o que haveria para ser feito, lutara contra feras e febres, rezara missas no meio de índios, batizara curumins ilegítimos, nos barrancos. Que mais? Ainda o queriam? Como não podia agora montar, devido à ciática, tinha de viver a pé, envergado ao peso dos anos e da artrite - Deus meu!