Forma e conteúdo na ação do engajamento literário
Por Francigelda Ribeiro
Analisar um projeto literário, sem incorrer em concepções bifurcantes que isolam, de modo decisivo, forma e conteúdo, é tarefa que requer a consciência de que um elemento remete, inexoravelmente, ao outro. Se um deles se torna absoluto, a obra sancionará, incontestavelmente, ou a hipóstase panfletária ou a manipulação reificadora da arte pela arte. Segundo argumenta o filósofo marxista Ernest Fischer – no ensaio A necessidade da arte, lançado originalmente em 1959 –, a tendência em considerar a forma em detrimento do conteúdo, encarando-a como sendo a única essencialmente digna de atenção “exerceu influência sobre amplos setores da inquieta intelectualidade do mundo capitalista. Foi ela que deu origem ao fenômeno do ‘formalismo’ no campo das artes” (1979, p. 149).
As inúmeras pesquisas que, no entanto, têm revelado o caráter dialético da questão seriam suficientes para desconstruir os discursos que asseguram tal dicotomia, não fosse o pathos remanescente de uma fração da crítica literária insistente em validar a contraposição entre purismo estético e arte de cunho social. Ernest Fischer combate essa bipartição utilizando-se do argumento de que “o conteúdo e a forma (o significado e a forma) são conexos e intimamente ligados em interação dialética” (1979, p. 151). Alerta, ainda, a necessidade de que seja fixada uma concepção mais exata acerca do termo conteúdo: este remete ao tema, ao assunto, ao significado ou à mensagem da obra de arte? Fischer afirma que é lícito falar somente em significado da obra de arte como algo que não se revela apenas nos detalhes, mas no seu conjunto. O tema, por seu turno, somente se eleva ao status de conteúdo quando considerada a postura do artista diante dele. Dois artistas podem tratar de um mesmo tema de maneiras diversas. Por exemplo, tomando a classe dominante, eles podem se portar como apologistas ou críticos dela, “pois o conteúdo não se limita a ser o que é apresentado e é [sic] também como está sendo apresentado, em que contexto, com que grau de consciência social e individual” (1979, p. 151).
O crítico francês Benoît Denis, considerando o conteúdo das obras literárias e a postura do escritor, propõe uma discussão acerca do fenômeno do engajamento literário. Para Denis (2002, p. 25), a literatura engajada não é a que abdica da atividade sobre o trabalho da forma, “sem a qual ele [o autor] faria literatura de propaganda; é antes uma questão de [...] modificar-lhe o sentido, deixando de fazer disso um fim em si para tentar fazê-la servir [às lutas sociais]”.
Partindo do contexto francês, focalizando questões políticas e sociais, ele opta por conceber como literatura engajada – na esteira das proposições de Jean-Paul Sartre – somente as produções circunscritas ao século XX, por ser o período em que o engajamento se define de forma mais profícua no campo literário. De acordo com Denis, “é inegável que sempre existiu uma literatura de combate preocupada em tomar parte nas controvérsias políticas” (2002, p. 10), porém o engajamento literário, na forma precisa do termo, não se torna “uma possibilidade literária transhistórica, que se encontra sob outros nomes e com outras formas ao longo de toda a história da literatura” (2002, p. 18).
Nessa perspectiva, Denis destaca que as idéias do filósofo francês Roland Barthes (1915-1980), quanto ao engajamento literário (que divergem das de Sartre 1), propostas, no artigo Kafka’s Answer, de 1960, apóiam-se na acepção do engajamento entendido como um fenômeno que se estende ao longo de toda a história literária. Segundo Barthes, 
Um momento passou, o da literatura engajada. O fim do romance sartriano, a pobreza imperturbável da ficção socialista, as falhas do teatro político, tudo que, como uma onda que está quase morrendo, deixa exposto um objeto singular e singularmente resistente:  a literatura. Além do mais, uma onda oposta lava-a, a onda de uma separação declarada: o renascimento da história de amor, a hostilidade às "idéias", o culto à boa composição literária, a recusa à preocupação com os sentidos do mundo: toda uma nova ética da arte está sendo proposta, e ela consiste em um novo movimento entre o romantismo e o inalcançável, entre os (mínimos) riscos da poesia e a proteção (eficaz) da  inteligência. Estará a nossa literatura para sempre condenada a essa oscilação exaustiva entre o realismo político e a arte pela arte, entre uma ética de engajamento e um purismo estético, entre o engajamento e ausência de arte? Ela deve ser sempre pobre (se ela for simplesmente ela mesma) ou  envergonhada (se ela for qualquer coisa, a não ser ela mesma). Ela não pode ter um lugar próprio neste mundo? (1981, p. 133, tradução nossa). 2
Denis alerta que o acento interrogativo de Barthes, ao passo que aponta para o caráter transhistórico do seu posicionamento, permite entrever a evolução do fenômeno literário reduzido ao movimento de oscilação mecânica entre “realismo político” e “arte pela arte” – fato que produz “uma visão muito simplista da literatura e de sua evolução” (2002, p. 19). Contra essa acepção de Barthes, argumenta Denis que somente partindo da ótica sartriana acerca do engajamento literário é
Que se pode tentar retornar no tempo e examinar de que maneira escritores ou homens de letras quiseram desenvolver uma concepção e uma prática “engajada” de escritura, num tempo em que a noção de engajamento não existia ainda como tal (2002, p. 19).
Para Denis, o engajamento literário encontra-se associado à figura de Jean-Paul Sartre, enquanto ficcionista e teórico, estando ligada também à emergência de uma nova ordem social anunciada a partir da Revolução Russa. O refluxo do engajamento literário, conforme o concebeu Denis, inicia-se preconizado pelos escritos de Barthes, em meados dos anos de 1950, e acentua-se com o esmaecimento da utopia revolucionária. Portanto, no âmbito da literatura francesa, caracterizar um escritor que antecede ao século XX como engajado significa, para Denis, conferir-lhe uma experiência que ele não possuía, haja vista as constantes mutações do contexto em que se encontra cada escritor, de forma que há a configuração de um perfil singular a cada período da história literária.
Considerando ou não a literatura engajada como uma práxis historicamente situada, convém destacar que o engajamento literário não se reporta à mera demonstração de teses sociológicas, tampouco pode soerguer-se como proscênio de exibições formais, excepcionalmente. Configurações de forma e de conteúdo, em equilíbrio, devem conduzir a obra à integração com a matéria histórico-social, constituindo esteios que lhe outorguem o diálogo com os diversos contextos, a fim de que ela não seja subsumida às coibições anacrônicas.
Sartre, no ensaio Que é a literatura?, de 1948, concebe o engajamento literário enquanto fenômeno essencialmente ligado à consciência lúcida do escritor em reconhecer-se como pertencente ao mundo. Tal consciência leva aquele a uma reação fundamentada na intencionalidade de modificar este. Sartre esclarece
Que um escritor é engajado quando trata de tomar a mais lúcida e integral consciência de ter embarcado, isto é, quando faz o engajamento passar, para si e para os outros, da espontaneidade imediata ao plano refletido. O escritor é mediador por excelência, e o seu engajamento é a mediação. Mas, se é verdade que se deve pedir contas à sua obra a partir da sua condição, é preciso lembrar ainda que a sua condição não é apenas a de um homem em geral, mas também, precisamente, a de um escritor (1993, p. 61-62).
Portanto, para ele, o engajamento se firma no desvendamento da realidade, processo que possibilita despertar a consciência crítica do leitor. Abdicando de todo halo de imparcialidade em torno do qual orbitam os formalistas, Sartre argumenta que a palavra implica ação e que o desvelamento do mundo por meio da literatura tenciona mudança social. Segundo ele, o escritor desvenda
O mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade. [...] Do mesmo modo, a função do escritor com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente dele (1993, p. 21).
Nesse sentido, o engajamento literário remete-se à ruptura com as forças conservadoras, primando por uma libertação concreta, algo que se conquista em uma situação histórica. Embora uma obra transcenda o tempo da sua escrita, é para seus contemporâneos que o autor se volta. Denis enfatiza que, para Sartre, a literatura engajada, ainda que circunscrita a um domínio localizado e temporário, renuncia a ela mesma como um fim específico, rumo a uma ação universal. “Essa bastardia, que sublinha fortemente a instabilidade da noção de literatura engajada, constitui, talvez, a grandeza desse empreendimento, na qual o escritor arrisca-se inteiro” (DENIS, 2002, p. 74).
Com efeito, o engajamento literário reporta-se à consciência do modo como a obra urge, porque baseada na causa da participação social. Aspecto que assegura historicidade à escrita literária não só pelo conteúdo mas também pelas escolhas formais. E o escritor, como elucida Sartre (1993, p. 22), não se constitui por ter decidido dizer certas coisas, “mas por haver decidido dizê-las de determinado modo”. Em consonância com as proposições sartrianas, Denis esclarece que a forma é também portadora de sentido, participando do engajamento literário. O que ele recusa sumariamente é – posição também comum no mainstream da crítica marxista, não obstante as leituras apressadas apontarem para o oposto – “a autonomia da forma: esta não pode significar independentemente do conteúdo e deve [...] permanecer ‘a serviço’ deste” (DENIS, 2002, p. 73).
Georg Lukács, em Introdução a uma estética marxista (1968a, p. 6), ao estudar a estética de Goethe, destaca neste a primazia do conteúdo na arte, o que se justifica por uma visão materialista do sujeito, ou seja, que para o escritor alemão, “na vida, na ciência e na arte o homem inteiro se engaja do mesmo modo, com todas as suas capacidades espirituais, e é o sujeito necessário para a recepção e a reprodução da realidade objetiva” (1968a, p. 152). De acordo com Lukács, não obstante a prioridade do conteúdo, não se pode menosprezar a forma, em que pese a sua defesa de que o reflexo estético deve primar por uma relação orgânica e fecunda entre forma e conteúdo.
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1 Segundo Denis, Barthes dissocia literatura e política, promulgando a necessidade de uma crítica engajada que, “assuma, deliberadamente e no lugar da literatura, a necessidade de tomar posição no terreno ideológico” (2002, p.298). Barthes conserva algumas contribuições da visão satriana, mas no que tange à primazia da idéia sobre a forma, defende a autonomia da forma e sua faculdade de ter significado independente. É, portanto, “a exigência da lucidez e de domínio reflexivo, aos quais Sartre submetia o escritor engajado, que se encontra contestada pela premência que Barthes atribui à forma: o escritor não é totalmente senhor do seu propósito, porque ele não pode medir os efeitos induzidos pela escritura que ele assume ou inventa” (DENIS, 2002, p. 295).

2 A moment has passed, the moment of committed literature. The end of the Sartrean novel, the imperturbable indi¬gence of socialist fiction, the defects of political theater-all that, like a receding wave, leaves exposed a singular and singularly resistant object: literature. Already, moreover, an opposing wave washes over it, the wave of an asserted detach¬ment: revival of the love story, hostility to “ideas”, cult of fine writing, refusal to be concerned with the world's signifi¬cations: a whole new ethic of art is being proposed, consisting of a convenient swivel between romanticism and off-handed¬ness, between the (minimal) risks of poetry and the (effec¬tive) protection of intelligence. Is our literature forever doomed to this exhausting oscilla¬tion between political realism and art-for-art's-sake, between an ethic of commitment and an esthetic purism, between com¬promise and asepsis? Must it always be poor (if it is merely itself) or embarrassed (if it is anything but itself)? Can it not have a proper place in this world? (BARTHES, 1981, p. 133).
*(Este texto é parte do terceiro capítulo da minha dissertação de mestrado publicada no volume Literatura de subversão: três estudos, editora Bagaço, 2008.)

REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Critical Essays. Northwestern University Press, 1981.
DENIS, Benoît. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. São Paulo: EDUSC, 2002.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética marxista: sobre a categoria da particularidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968a.
______.  Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968b.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 1993.