FONTES IBIAPINA - Um Escritor Singular
Por José Fortes Em: 26/04/2010, às 00H20
FONTES IBIAPINA
Um Escritor Singular
Francisco Miguel de Moura
(Escritor, membro da APL)
1. Introdução
Começo por uma confissão, primeiro porque é do meu estilo, segundo porque me parece que esse tipo de discurso é mais agradável ao povo, de modo geral.
Antes de ler Fontes Ibiapina, não conhecia nenhum prosador piauiense, na área da ficção. É bem verdade que havia lido um livro do historiador Mons. Joaquim Chaves, sobre Teresina. Mas história não é literatura.
E na poesia? Tinha ouvido Hermínio Castelo Branco, recitado por um parente de Nonon que andara pelas terras de Jenipapeiro, hoje Francisco Santos. Lera também alguns poemas, no Almanaque da Parnaíba, do nosso grande poeta da Costa e Silva.
E era só.
Fontes Ibiapina, um dos nossos mais fecundos escritores, podemos dizer que também do Nordeste e do Brasil, é praticamente o fundador de uma prosa diferenciadora, no Piauí, aquela que marca a nossa consciência literária. Embora não bafejado pela crítica, suas obras eram lançadas em pequenas edições que circulavam bem no Piauí e depois seguiam um rumo diferente dos demais autores indígenas. É que ele se encarregava de enviá-las para Deus e o mundo, conseguindo uma dimensão nacional a duras penas. Chegou a empreender uma viagem até o Rio Grande do Sul distribuindo seus livros, uma proeza inédita.
Mesmo assim, encontra-se dificuldade para a recolha de sua fortuna crítica, pois esta – a crítica – como diria o próprio Fontes Ibiapina, é muito “vasqueira”, difícil, escorregadia. Não se encontram muitos intelectuais dispostos a analisar obras que saiam do ramerrão, do padrão comum, como é o caso de romances como Vida Gemida em Sambambaia e Curral de Assombrações, para citar apenas duas.
Escrevi certa vez, e Assis Brasil publicou em seu “Dicionário Prático da Literatura Brasileira”, Edições de Ouro, Rio, 1979, que Fontes Ibiapina trouxe importante contribuição para a literatura do Nordeste, guiando os passos dos novos na pesquisa da linguagem falada e sua transposição honesta e desabusada para as páginas dos romances e contos. Fontes Ibiapina representa a riqueza do Piauí e do Nordeste, nas suas tradições, na sua história, na sua cultura.
Já quase 20 anos são passados de sua morte e nenhuma dissertação ou tese universitária saiu sobre sua obra. É um desconhecimento lamentável. Essa pobreza crítica depõe contra a nossa universidade, contra os professores e críticos, não contra ele, cuja obra está aí, de pé, e continuará, porque boa, verdadeira. Algum dia aparecerá algum professor ou aluno de universidade que o descobrirá para sua tese ou dissertação, para artigos ou discussão em seminários e simpósios. E se assustará com tamanha substância.
2. Opiniões da Crítica
Servem como exemplificação das nossas assertivas, algumas opiniões que captamos em material esparso a seu respeito como capas de livros, artigos de jornais, entrevistas, etc. Focalizam obras isoladas e sua personalidade de escritor, sem formarem, contudo, uma visão estrutural.
“A orientação regionalista de sua obra, em lugar de ficar soterrada pela avalanche da exploração temática, se sobressai graças ao tratamento fluente dado pelo Autor aos liames da narrativa. Fontes Ibiapina não derrapa para o folclorismo documental nem ascende para as cumeadas de um tratamento meramente noticioso. Não, o Autor de Brocotós, muito embora aborde um tema esgotado, um filão literário estéril para os mais novos e inexperientes, consegue com rara habilidade dar soluções inesperadas ao problema. É um livro cujo contexto visa superar os limites sufocantes do lugar comum, um escrito para permanecer.”
Euzébio Oliveira
“Francamente, o livro é gostoso. Deixem-me usar desta expressão com que o paranaense qualifica o que lhe cai no goto. Tudo o que Fontes Ibiapina escreve é fiel, cheira a terra do nosso Piauí, tem o calor do solo amado e revela profunda observação e sensibilidade”
Alvina Gameiro
“Decorrido cerca de um qüinqüênio, de sua estréia em livro ao aparecimento de Brocotós, não é difícil anotar haver o estilo enxuto de ‘conteur’ tomado mais expressivas nuances, em tintas e planos dominantes, conseguindo, mesmo, definitivo apuro, no pitoresco do linguajar, na veracidade dialogal, enfim, no trazer para fora os sentimentos primários de seus tipos novelescos e autênticos.”
Bruno de Menezes
“A pesquisa folclórica tem dado a Fontes Ibiapina o material necessário para o desenvolvimento de sua ficção. Em sendo telúrica, bem piauiense, a sua obra não deixa de ter uma dimensão universal, naquela encruzilhada em que o homem é o personagem e a sua situação social e individual o foco mesmo do interesse literário. Quer contando os seus próprios casos, ou reinventando o anedotário local, a linguagem de Fontes Ibiapina é das mais simples e saborosas.”
Assis Brasil
“O universo da ficção de Fontes Ibiapina é imutável. Não possui heróis, pois os heróis da mitologia nordestina são, quase sempre, conseqüências das injustiças sociais do meio, da pobreza aviltante, da seca, das enchentes e de necessidades isoladas de rompimento com o convencional, do conflito humano contra as desgraças e a reação ao que denominam de ‘destino do homem”.
Herculano Moraes
“O estilo é mais atraente pela linguagem original, simples, com toques de humor e coloquialismo. Predomina o exterior, a paisagem física sobre o homem, o psicológico. A estrutura do texto está ainda nos modelos convencionais”.
Luiz Romero Lima
Mas existe uma crítica que se destacaria entre as demais. Parte de um político que teve a maior atuação no Piauí e no Brasil e que, se não diz muito literariamente, o diz sociológica e economicamente, sugerindo situações que alteram a perspectiva e o entendimento do seu valor, e justificam a pouca divulgação obtida por nossos escritores. “Nenhum homem é uma ilha, todo homem é um animal político”, dizem os filósofos, de Aristóteles aos nossos dias.
Será que se pode dizer o mesmo dos espaços sócio-geográficos? Até quando o Piauí continuará uma ilha cultural?
Trata-se de uma carta de Petrônio Portela, quando era Presidente do Senado, enviada a Fontes Ibiapina, o Nonon:
“Brasília, 3 de setembro de 1968.
Meu caro Nonon:
Entre as alegrias que, neste ano, me foram proporcionadas – e Deus me concedeu a graça de travar, vitoriosamente, muitas batalhas, no Senado – a maior foi a que me trouxe o seu livro.
Nele se afirma, uma vez mais, o talento de um escritor que estaria entre os mais aplaudidos do Brasil, se não fora o nosso isolamento, que estamos desafiados a quebrar.
Revi, no milagre da arte, os idos tempos de menino em nossa querida Cidade, inspiradora de um artista de sua expressão.
A dedicatória, meu caro, foi um presente e terá por sua autoridade, a valia de um título.
Em meio aos desalentos de uma vida pública, inteiramente entregue às causas do Piauí, que valha esse estímulo para que o desânimo não me vença e mais em mim cresça a confiança em nosso povo.
As palavras desfaleceram quando tentei juntá-las e dar-lhes a expressão do meu agradecimento.
À dona Clarice, amiga de tantos anos, nosso afetuoso abraço que lhe enviamos, eu e minha mulher.
E noutro abraço vai o agradecimento do amigo.
Petrônio Portella.”
De entre muitos louvores ao escritor, fomos buscar tão preciosa jóia no livro “A. Tito Filho Incomparável”, de Teobaldo Costa Jamundá, pg. 59, editado pela Indústria Gráfica e Editora Canarinho, Florianópolis, 1991.
3. Dados Biográficos
Primeiramente diga-se que Fontes Ibiapina é de uma família de artistas. Seu primo Leão Sombra do Norte Fontes e seu sobrinho Tácito Ibiapina, que moram em Brasília, são bons artistas: o primeiro é poeta e teatrólogo; o segundo, pintor. Dos que moram em Picos, Mundica Fontes e Antônio de Moura Ibiapina (Pebinha), respectivamente sobrinha e irmão de Nonon, também dão-se às artes, ela como teatróloga e pintora; ele, na área da poesia popular.
Depois, acrescente-se que João Nonon de Moura Fontes Ibiapina, nome de registro, tornava-se muito grande para um escritor. Sabiamente e com muito bom gosto, ao publicar seu primeiro livro, Nonon passa a assinar-se apenas FONTES IBIAPINA.
Nascido em Picos, na zona rural, no lugar chamado "Vaca Morta", a 14 de junho de 1921, filho de Pedro de Moura Ibiapina e Raimunda Fontes de Moura, fez o primário em sua terra natal e o secundário em Teresina, bacharelando-se em Direito, em 1954, pela velha Faculdade da Praça Demóstenes Avelino. Ainda como estudante dedicou-se por algum tempo ao jornalismo. Findo o seu curso de Direito, entra logo para a magistratura, sendo juiz em várias comarcas do Piauí, a última em Parnaíba, onde publicava semanalmente artigos de crítica nos jornais, exercia o magistério, participava de toda a vida intelectual da cidade, e como tal ajudou a fundar a Academia Parnaibana de Letras e foi um dos seus presidentes.
Membro do Conselho Estadual de Cultura do Piauí e da Academia Piauiense de Letras, sua maior glória não está no magistério, no jornalismo ou mesmo na magistratura, e sim na literatura. Deixou uma grande obra, tanto em quantidade como em qualidade, em torno de 30 títulos. Talvez, por causa da complexidade do seu mundo pensado e escrito, os professores e estudantes não o têm procurado com freqüência para trabalhos acadêmicos, quer na área literária quer na de ciências sociais. Já não falamos dos críticos de jornais e revistas, que sumiram simplesmente, não existem mais. É uma pena, pois, que se deixe tão rico patrimônio inexplorado.
Depois de sua morte, teve apenas uma obra sua editada no Piauí: a Fundação Cultural Monsenhor Chaves publica o volume Crendices, Superstições e Curiosidades Verídicas no Piauí, em 1993. Trata-se de continuação de sua “Paremiologia Nordestina", de 1975, editado pelo Governo do Estado, através da Cia. Editora do Piauí. São adágios, rifões, brocardos, anexins, parêmias, máximas, ditados, expressões, comparações, relaxos, paleios, chulos, enfim toda uma riqueza do homem nordestino em sua criatividade de caboclo sem letras mas muitas vezes mais sabido que os doutores da cidade.
Na área literária propriamente dita saíram apenas dois folhetos – não seriam propriamente livros – divulgando contos de Fontes Ibiapina: um que reúne Trinta e dois e Tangerinos, em 1988, e outro com o conto inédito Dr. Pierre Chanfubois, sem data de publicação, mas que se atribui seja do ano seguinte. Ambos os opúsculos tiveram a chancela das Edições Corisco, do editor Cinéas Santos.
Fontes Ibiapina era uma pessoa alegre, recebia a todos muito bem, dava a impressão de ser feliz. Andou por muitas comarcas do Piauí, experimentou quando na Capital, antes de tornar-se magistrado, a indústria, quando sofreu um acidente. Mas nunca se queixava, sempre contando histórias, dizendo “chuleios”, incentivando a que os jovens escrevessem prosa. Só ficava brabo se o chamassem de poeta. Talvez porque houvesse experimentado a poesia e sentisse que não era o seu forte. Aliás, é difícil encontrar um prosador que não tenha feito poemas. Esses são alguns traços pouco conhecidos da vida de Nonon, como era conhecido na intimidade. Era um homem curioso, sempre atento ao que a ciência tinha para oferecer.
Faleceu no dia 10 de abril de 1986, na cidade de Parnaíba, onde exercia as funções de Juiz de Direito, depois de ficar, na noite anterior, horas e horas com uma luneta na mão para observar a passagem do cometa Halley.
4. Obras :
Contos – Chão de Meu Deus, 1958 – 2ª ed. 1965
Brocotós, 1961
Pedra Bruta, 1964
Congresso de Duendes, 1969
Destinos de Contratempos, 1974
Quero, Posso e Mando, 1976
Eleições de Sempre e Até Quando, 1985*
Romances – Sambaíba, 1963
Palha de Arroz, 1968
Tombador, 1971
Nas Terras do Arabutã, 1984
Curral de Assombrações, 1985
Vida Gemida em Sambambaia, 1985*
Crônicas: – Mentiras Grossas do Zé Rotinho, 1977
Lorotas e Pabulagens de Zé Rotinho, s/d de publicação
Folclore: – Paremiologia Nordestina, 1975
Passarela de Marmotas, 1975
Teatro: – O Casório da Pafunsa, 1982.
Segundo consta de uma das folhas iniciais de “Curral de Assombrações”, deixou escritas e organizadas outras tantas obras, mas inéditas, as quais enumeramos:
“Pecado é o que Cai do Cacho” – romance;
“Amor Roxo”, “Mentiras de Verdades”, “Onde a Velha Mediu de Cócoras”, “Onde o Filho Chora e a Mãe não Ouve” e “Nas Capembas Rajadas” - contos;
“Gente da Gente”, “Desfile de Malucos”, “Mentiras ou Não, o Povo Conta”, “Crendices e Superstições do Piauí”, “Terreiro de Fazenda”, “Ponta de Terreiro” e “Almas Penadas” – folclore.
Anunciava também “Augusto dos Anjos” – ensaio e “Brasileirismos do Piauí” – dicionário.
Observe-se que as obras assinaladas com asterisco só circularam depois da morte do autor, muito embora ele as tenha deixado preparadas e prontas para a edição. Eram livros que concorreram a concurso nacional e foram premiados. Há testemunhos de que Fontes Ibiapina, depois que publicou Chão de Meu Deus, contos premiados nos concursos da Cigarra e de Alterosa, não gostava de mexer em seus livros depois de escritos. Entretanto, parece que já prevendo a morte, gastou muito tempo reescrevendo Vida Gemida em Sambambaia, pelo que se atribui ser esta sua obra mais bem elaborada.
5. Desenvolvimento crítico
Fontes Ibiapina foi o escritor piauiense que primeiro e melhor fez um trabalho genuinamente de recriação estilística da língua, na prosa dos primeiros anos da década de 50 do século XX, resultando uma linguagem literária própria. Na literatura brasileira, podemos citá-lo ao lado de Guimarães Rosa, José Cândido de Carvalho e Mário Palmério; na literatura piauiense e do Nordeste, ocorrem-nos os nomes de José Lins do Rego e Alvina Gameiro, de William Palha Dias e José Expedito Rego. Mais um pouco além, geograficamente, há no Tocantins um nome que não pode ser olvidado, dando continuidade ao filão que é o regionalismo: Moura Lima, descendente de troncos familiares piauienses. Enumero tantos nomes para destacar o talento e o valor do nosso escritor entre eles. Fontes Ibiapina bem merecia estar sendo reeditado nacionalmente. Mas não há memória neste país, nem histórica nem literária. É injustificável o esquecimento a que está relegado.
"Chão de Meu Deus", de 1958, e "Curral de Assombrações", de 1985, são dois livros fantásticos, indiscutivelmente de alto nível. Os demais, quase todos também o são, ora pelo trato literário, ora pela pesquisa de linguagem, ditados, folclore, usos e costumes de um tempo que já vai distante, mas nem por isto desimportante. É pelo conhecimento do passado que damos orientação ao futuro.
E por haver Fontes Ibiapina criado um modo de escrita inconfundível, os intelectuais afastaram-se dele, uns alegando que não evoluía, outros que sua literatura ainda era rural e conservadora. Nada mais incorreto, para dizer o mínimo. Diante de personalidade tão forte como Fontes Ibiapina, só há duas atitudes a serem tomadas: imitá-lo ou repudiá-lo. A última parece que foi o que aconteceu.
Conheci-o muito bem, de conversa e de leitura. Tinha uma memória prodigiosa. E aqui, lembrando Raquel de Queirós e citando-a de memória, dizemos que escritor sem memória não existe. Sem memória e também com escrúpulos de imiscuir-se em suas ficções. Disto não sofreu nosso Fontes Ibiapina. Ele era solto mas sério e consciente, um poço inesgotável de onde se retira a água mais límpida. A gente tem vontade de afirmar que a sua criatividade – as mais das vezes baseada na memória – era ilimitada.
Este trabalho serve como instigação à volta de Fontes Ibiapina aos editores, às livrarias, às escolas, às academias, para discussão, pela riqueza do seu espólio literário. Nosso desejo é que o pesquisem, jovens e velhos, e voltem a lê-lo.
Há muitos anos, quando eu dirigia a UBE-PI, mudamos o nome do troféu "Cabeça de Cuia" para "Fontes Ibiapina", uma espécie de comenda concedida anualmente ao intelectual do ano – eleito por aquela entidade. Também, há muito tempo, seu nome patrocinou um concurso de romance no Piauí, editado duas vezes pela Fundação Cultural do Piauí, em cujo primeiro certame fui vencedor com "Laços de Poder". Recentemente, uma ou outra entidade está lembrando de homenageá-lo. Em Luís Correia – PI há um centro social que foi batizado com seu nome, segundo informações do escritor e dicionarista Adrião Neto. Agora soubemos que aquele concurso foi reeditado pela mesma entidade. Por isto a comunidade intelectual e artística se alegra. Que se alegrem os novos ficcionistas do Piauí, abram as gavetas e botem seus romances inéditos pra fora, sob a égide de Fontes Ibiapina.
Essas homenagens, como vimos, não vieram de sua terra, Picos, que nem ao menos se interessou em abrigar a FUNDAÇÃO FONTES IBIAPINA. Não seria a hora e a vez de os dirigentes do Estado do Piauí, das Prefeituras de Teresina, Parnaíba e Picos, lugares onde atuou, tomarem pé no assunto?
Fontes Ibiapina fez parte da Academia Piauiense de Letras, ocupando a cadeira nº 9, patroneada pelo poeta Alcides Freitas, que teve como primeiro ocupante nosso nume tutelar Lucídio Freitas e segundo ocupante o poeta e também folclorista Pedro Borges da Silva. Atualmente ocupada pelo Senador Hugo Napoleão, este bem que poderia, com o poder que detém, editar e amparar a produção literária do seu antecessor na APL, encontrando meios financeiros para conservar e franquear ao público o espólio literário e cultural de Fontes Ibiapina.
6. Textos:
Como dissemos, uma obra tão vasta dá medo aos pesquisadores. É necessário tempo e paciência para apanhar o essencial, ou mesmo a parte representativa. Dificuldades que sempre existiram e continuam a existir: - o acesso à fonte, a obra, depois a leitura e o reprocessamento.
A leitura da obra é essencial, nada pode substituí-la, sabemos. Porém, como o propósito desta publicação é divulgá-la, os estudos e aprofundamentos ficarão para outra oportunidade. Por enquanto tratamos de transcrever alguns textos representativos. Escolhemos quatro obras: “Chão de Meu Deus”, “Sambaíba”, “Curral de Assombrações” e “Paremiologia Nordestina”.
De “Chão de Meu Deus”:
“O caboclo deu volta na chave da cara e, com uma mão sobre a concertina e a outra no cabo da peixeira, falou rosado:
- Fecha o fole. Se não fechar vai ter.
Outros gritaram:
- Toca. Toca. Toca.
- Não toca. Quem não quer sou eu.
- Ora não toca... Tem de tocar...
- Se tocar eu rasgo essa botina para todo mundo ver.
O velho dono da casa arrancou os pés lá da ponta do terreiro, onde vendia cachaça, que vinha fedendo a chifre queimado.”(Pg. 11).
De “Sambaíba”:
“Trinta e um de dezembro bem que foi um dia triste para aquele povo. Era que Manoel Felício fechava os olhos para o mundo. Até que viveu muito. Mas era que todos queriam e esperavam que ele vivesse mais. Chegou a contar oitenta e cinco janeiros bem completos. Infelizmente, já de mãos estiradas e olhos puxados para os oitenta e seis, deu a alma ao Criador. Morreu com o século o único e verdadeiro dono das terras de Sambaíba – 31 de dezembro de 1900.
Bem moço ainda chegara ao Brasil. E gostava mesmo de contar como havia vindo das terras de Portugal. Uma história bonita de fazer gosto! De navio. E não viera fugido nem enxotado da Justiça, como muitos safados que depois se tornaram importantes aqui. De livre e espontânea vontade. Ouvira por boca de gente que por aqui estivera e depois voltara para a Europa, narrativas bonitas sobre as terras do Brasil. Aí não pôde se conter. Narrativas interessantes! Falavam de florestas sem começo e sem fim. De rios e mais rios que, de tão grandes, ninguém sabia onde nasciam, nem tão pouco onde terminavam. Em homens brabos, e em pássaros de toda cor e que cantavam de todo jeito.” (Pg..17).
De “Curral de Assombrações”:
A fazenda.
Como muitas demais daqueles tempos. (A história começa lá pelos confins dos idos de mil setecentos e noventa e quê para o começo de mil e oitocentos). Como muitos demais daqueles tempos, casarão bonito. Bem na sentada dum morro de subida leve. À frente, uma verdura de carnaubal se perdendo mundo a fora. Uma beleza de encantar, o panorama. Uma vista que se perdia nas distâncias até ao longe onde se atravessava uma barra azul de serras. Assim ao lado, um riacho perene se escorregando em sussurros suaves por entre carnaubeiras, ladeado de pastagens verdes de seca e inverno. Já do lado da cozinha, a caatinga que esta não tinha fim de limite.
Casarão talentoso e imponente. Paredes de pedras com quase um metro de diâmetro. Salões amplos, quartos espaçosos. Em cima, um sótão arrogante. Alpendre sombrio. Nas laterais, uma infinidade de portas e janelas num sorriso senhorial escancarado para o mundo.
Assim perto, a senzala de negros-de-sujeição, o esteio daquela riquezona toda.” (Pg. 11).
De “Paremiologia Nordestina”:
“Dizem os que entendem do riscado, que sabem onde têm as ventas, que a desculpa do amarelo é comer terra como a do papa-mel é o pau não ter oco. É o caso de nós aqui vivermos soletrando cancão em breves, alegando que não temos campo em assuntos literários. Na verdade, falando mesmo de oitiva, sem dadas nem tomadas ou arrodeios, escritor por estas bibocas de confins de sertão é coisa tão escassa que nem garupa de jumento. Difícil que só minhoca em terra seca. De se contar nos dedos de uma mão e não ocupar todos. De tão pobre a nossa literatura, chega a ponto de não ter de seu um couro para morrer em cima, apesar de tratar da terra onde se diz que o boi morreu. Além do mais, não se encontra de louça um caco em matéria de auxílio, ou mesmo sequer um tico de estímulo por parte dos Poderes Públicos dos homens que carregam o rei na barriga. Não há dúvida que o mundo é dos mais expertos e a sorte do pobre é como a do cambito – morrer lascado – haja vista que atrás dele corre um bicho e sua cuia sempre cai emborcada.” (Pg. 9).
7. Conclusão
Não faço coro com a euforia dos que dizem que só a obra de arte, ela mesma, tem a chave do seu próprio segredo. O segredo da obra de arte é o segredo do artista, que jamais será revelado ao crítico. Por isto sempre terão vez a crítica biográfica, a crítica sociológica e a chamada crítica impressionista. Por mais disfarces que contenha a obra, seja do pincel, da música ou da literatura, ela começa muito antes de o artista nascer. Vem embutida nos ascendentes, na terra, na crença dos antepassados, na infra-estrutura econômica, no embasamento social e político que ao artista é dado viver. Fontes Ibiapina poderia ser diferente?
Estudar a obra literária de Fontes Ibiapina é ao mesmo tempo debruçar-se sobre a história e o desenvolvimento material, moral e espiritual da comunidade agropastoril que se chamou Picos, nos antanhos. Como sabemos, uma das comunidades que mais se desenvolveu no Piauí, sendo mesmo há pouco tempo considerado o município modelo. Pomo-la na mesma dimensão de Parnaíba, no litoral, e de Oeiras, a antiga capital da Província. Municípios marcantes no percurso de nossa história pelo desenvolvimento econômico e social – daí cresceu um povo cioso de suas tradições e dos seus valores, gente que onde chega faz figura e merece destaque pelo trabalho, inteligência e persistência. Assim foi que, embora sendo o Piauí pobre de ficcionistas, mais especialmente de romancistas, Oeiras deu O. G. Rego de Carvalho, Parnaíba deu Assis Brasil e Picos deu Fontes Ibiapina. Escritor da mesma época de O.G. Rego de Carvalho e de Assis Brasil, enquadrados sempre na geração “Meridiano”, dos anos 50, do século passado – essa poderosa tríade do romance piauiense se inscreve entre os melhores romancistas do país. Entretanto, ele se diferencia dos seus conterrâneos ilustres na feitura de sua obra ficcional singular. Seus defeitos são aqueles dos iniciadores, pois Fontes Ibiapina foi o iniciador do romance regionalista entre nós. Ele traça rumo bem consentâneo com a origem rural. Não obstante a proximidade do seu estilo com o de José Lins do Rego, pelos temas e assuntos, pela realidade conexa a refletir, Fontes Ibiapina logo soube encontrar o caminho que o tornaria singular no Nordeste. Que vantagem lhe adviria em criar o já criado? Dá chave à fechadura de sua prodigiosa memória sentimental e transpõe para as páginas que escreveria a partir de Sambaíba, naquela mesma linguagem saborosa dos seus contos tão admirados por aí a fora, pois premiados em concursos do Centro/Sul (Minas e Rio) e colocados em livros como Chão de Meu Deus, Brocotós e Pedra Bruta, apenas acrescentando o toque mágico da epopéia como requer o gênero romanesco. Transforma em história e metáfora o meio material e a própria linguagem oriunda da língua da camada popular. Se levarmos a sério o pensamento de Hermann Hesse de que “só merece o nosso crédito aquele que discorre sobre coisas de sua própria experiência”, então Fontes Ibiapina creditou-se, pois sua vivência de menino e de rapaz e o sofrer do homem amadurecido na vida são o cabedal primeiro empregado. De um nada tirou tudo, como criador que era. Em forma de meta-linguagem, análise de si mesmo como autor, Fontes Ibiapina diz em nota inicial ao romance Sambaíba:
“Vivo aqui, nestes cafundós, renitente que nem pinto em pé de cerca, tentando fazer literatura sem quase ambiente.”
Seus casos são montados, interligados, um a um, por fio que leva ao secular sofrimento da seca, à civilização do couro do século trasado, de forma a recuperar o sentimento em via de perder-se por culpa do nosso velho atraso. Se levou a mão com força ao pote d’água, muitas vezes repetindo o que aos leigos poderia parecer excrescência, dizemos que a repetição é uma técnica de convencimento inclusive na arte. Os meios de comunicação de massa assim o procedem: repetem até a exaustão. Mas não repetem bonito, repetem chocante, repetem monótono. A arte, não, pois sabe como repetir com beleza. Assim fez Fontes Ibiapina. Sobre o fenômeno, li recentemente G. G. Marquez e senti a força de sua repetição no estilo e no material, a riqueza que daí advém para a estrutura da fábula. Notam-se nos livros dele que os mesmos personagens vêm e voltam sempre, com disfarces. Também o tempo e o espaço de vivência. Mas é por esses tiques e disfarces que forma seu estilo. Tirando-se-lhe isto, nada restaria a não ser imitar os outros, o que em arte é péssimo. Por este raciocínio, perguntamos se a repetição não seria uma imitação de si mesmo. E responderíamos que é melhor imitar a si que aos outros.
Assim também procede Fontes Ibiapina com sua profusão de ditados repensados, reescritos, com toda a riqueza que arrecadou em fonte límpida – o folclore piauiense, o folclore do Nordeste. Seu forte mesmo é a sabedoria do povo, a lenda, a anedota, a crença e a fé, a fábula e a lorota, tudo se entrecruzando para formar a salada gostosa do seu estilo, de sua obra. Ele sabe do tempero melhor que os folcloristas e os cronistas, e mais bem sabe dizer escrevendo do que dizendo em pessoa, embora também fosse um bom recitador e tenha aparecido em rede nacional de televisão contando causos e recitando poesias populares. A forma de fala de Fontes Ibiapina é a da escrita, como a de todo escritor que se preza. Dessa forma ele descobriu o feitiço. Isto mesmo.
Além do mais, no estilo de Fontes Ibiapina não se observará abuso do diálogo externo como sói acontecer com os naturalistas e folcloristas, exceto no conto que abre o livro Chão de Meu Deus, mas de forma bem tecida, observada a psicologia e conformação de cada personagem.
Ele gosta de usar a primeira pessoa para dar mais veracidade a suas estórias e angariar a simpatia dos leitores, como faziam os contadores de histórias ao pé do fogo, no Sul, ou os nossos do Nordeste, nas latadas, à luz da lua ou do candeeiro, no alpendre do casarão colonial das fazendas de gado do Piauí de antigamente, “onde corria leite e mel e se amarrava cachorro com lingüiça”.
No Brasil, quem quiser realmente saber se “o boi morreu”, como diz a cantiga popular, tem que ler a obra de Fontes Ibiapina, imprescindivelmente. E aí conhecerá o melhor do Nordeste.
Para concluir, creio que a maioria de seus defeitos resultarão em maior qualidade quando for examinado o conjunto de sua obra.
Fontes Ibiapina é forte. É preciso reeditá-lo. É preciso lê-lo e relê-lo com urgência, para que, do seu conhecimento e de sua análise, saiam as interpretações e as críticas que bem merece.
________________________
Dados sobre o Autor:
Francisco Miguel de Moura nasceu em Francisco Santos, PI, a 16-6-1933. Fez o primário com seu pai, Miguel Guarani. Em Picos, cursou o Ginásio e a Escola de Comércio, entrando para o quadro de funcionários do Banco do Brasil por concurso e por cuja entidade aposentou-se. Formado em Letras, já publicou mais de 30 livros, citando-se entre eles “Poesia in Completa” (1997), “Por que Petrônio não ganhou o céu” (1999) e “Viragens”, (2001). Sobre sua obra foram publicados os seguintes livros: "Fortuna Crítica de Francisco Miguel de Moura"(Diversos autores), 2008; "Um Rio em Chico Miguel", da Profa.Diolina Marques,(2006): e "Canto de Amor à Terra e ao Homem", da Profa. Maria do Carmo Martins Lopes (2000.