Ficção e história em José Ribamar Garcia
Por Cunha e Silva Filho Em: 11/08/2009, às 11H32
CUNHA E SILVA FILHO
Sem holofotes de lançamento nem alardes, a recém-editada obra de ficção Entardecer (Editora Litteris, com finalização de capa de Teresa Akil, 2007,110 p.), de José Ribamar Garcia, escritor e advogado piauiense radicado no Rio de Janeiro, o sétimo de sua produção ficcional, traz o sugestivo e ao mesmo tempo lírico-elegíaco título de Entardecer (Litteris Editora, com finalização de capa de Teresa Akil, 2007, 110 p.). Na ficha de catalogação classificaram-no como romance.
Sem importar muito com o trabalho de classificação genológica, o que primeiro me vem ao pensamento, ao tentar resenhar este livro, são aqueles velhos componentes de sua narrativa, a combinação da memória com a História, o enlace entre a recuperação, pelo domínio da prova de ficção, de um entranhado esforço de trazer o testemunho do passado existencial do autor com o seu interesse sempre presente em soldá-lo com a cronologia histórica da sociedade brasileira.e, em particular, da piauiense. Esta estratégia de construção ficcional poderia levar-me a definir sua literatura como uma ficção de substrato histórico. Não que Entardecer seja um romance histórico, mas à semelhança do que encontramos em outra obra do autor, Em preto e branco (Litteris Editora, 2a. ed., 2005), há um plano narrativo que corre paralelo ao plano da fabulação ou da intriga e que, sem dúvida, se utiliza do relato histórico.
O certo é que Ribamar Garcia não abre mão das chamadas “marcas registradas” (Alcmeno Bastos, anotações de aula, UFRJ, 1997) encontradiças no romance histórico, marcas documentais que estão presentes nesse gênero de ficção, desde, pelo menos, o Romantismo europeu. Garcia não quis, a meu ver, fazer uma novella (segundo o conceito simplificado de Martin Gray ( A dictionary of literary terms. Longman York Press. 2nd edition, 1992) histórica, mas uma novella de personagem. No caso, narrar parte significativa da história de seu pai, Francisco de Assis Garcia que, para o autor, congrega elementos de natureza heróica e de altruísmo pelo menos para o universo afetivo do autor e daqueles que o conheceram de perto.
Entardecer reúne verdadeiros pequenos afrescos sócio-cultural-históricos que seduzem o leitor duplamente pela habilidade de selecionar apenas o essencial da experiência de vida plasmada em ficcionalidade e pelo prazer, sempre bem-vindo, de partilhar com o leitor o testemunho da memória coletiva. São 42 pequenos capítulos correspondentes, segundo o autor, aos anos da curta vida do pai. Ao tocar na memória coletiva, o leitor é conduzido a reviver fatos do passado – daí sua natureza histórica, mas sem chegar a constituir uma ficção histórica dentro do conceito rígido ou menos rígido de romance histórico -, e, assim, recuperar, pela recepção da leitura, a emoção vivida ainda que em outro tempo e com uma visão diferente, daquela que tem, agora, da História, com olhos de adulto, ou mesmo do amadurecimento intelectual ou da velhice que vai despontando tanto do autor quanto de seus contemporâneos.
Tomemos, inicialmente, alguns dados que, em obras anteriores, costumavam aparecer no contista Garcia e que apontam para um conjunto de referencialidades subsidiárias a seu texto. Recordemos os chamados paratextos, ou seja, as epígrafes, por exemplo, aquela primeira extraída de um livro de Carlos Lacerda, A casa do meu avô: “Não vivemos muito, vivemos depressa” e uma segunda, retirada de um dos autores da preferência do contista, Ernest Hamingway, de “Adeus às armas”: “Aos que trazem tanta coragem a este mundo, o mundo os tem de matar para quebrá-los.” Vejamos outro paratexto, as dedicatórias, a direcionada ao pai, cognaminado-o de “O insubstituível”, lembrando de perto, no caso, a maneira de João Antônio de, em cada livro editado, referir-se, nas dedicatórias, a Lima Barreto como o “pioneiro”; finalmente, as dedicatórias alusivas à mãe do escritor e aos seus familiares. Todos esses paratextos fortemente se vinculam à biografia do personagem central de Entardecer, indicado na narração pelo pronome “Ele” maiusculado.
Antes da abertura da novella, há uma nota – “Esclarecimento” - de importância basilar à sua compreensão e à sua composição.” De resto, mais um exemplo de paratexto. Precisamente nesta nota está implícita a questão controversa e sutil da relação ambígua entre literatura e realidade, questão que se impõe como uma discussão de natureza teórico-crítica, a qual, em última análise, procura investigar como os dados da realidade se transformam em “realidade possíveis”. Quer dizer, em ficção.
Na situação presente, como fazer da “matéria de extração histórica” (e a história pessoal pertence à História) uma produção literária se não temos “realidades possíveis,” levando-se em conta que o protagonista da narrativa é uma figura de carne e osso?
Antonio Candido, nesse ponto, a meu ver, consegue de certa forma, contornar o impasse. Ao afirmar que texto e contexto se fundem, o dado social - o contexto – deixa de ser externo e passa, na organização ficcional, a interno.(CANDIDO, Antonio. “Crítica e sociologia”, in Literatura e sociedade. 7ª ed. Editora Nacional, 1985, p.3-8). Adiantaria apenas que os dados sociais, históricos, culturais, passariam, então, a fazer parte dos dados formais, da estrutura interna da obra de ficção, os quais, segundo Candido, são relevantes para a concepção o sentido da obra.
Ao eleger o pai, Francisco de Assis Garcia, ao estatuto ficcional, o autor o transfere à esfera estética, como, motivação a serviço do que irá construir pela imaginação criadora, como o fizera em trabalhos anteriores, nos quais a mesma figura paterna se transpõe ao universo das “figuras de papel” barthesianas.
Já se disse que O Ateneu (1888) de Raul Pompéia (1863-18950 foi escrito como se fora uma vingança do escritor contra um sistema de ensino castrador e hipócrita. Ribamar Garcia talvez tenha se concentrado na figura paterna como uma espécie de desabafo pessoal contra a perda do pai em tão tenra idade. Ele tinha apenas nove anos quando perdeu o pai. Teria sido uma forma de compensação psicanalítica, uma maneira de preencher o “vazio eterno” sobre o que a vida não lhe pôde dar, com uma presença mais longa de uma existência paterna que não o viu crescer nem se tornar o que sabemos que foi.
Nesse sentido, a história do pai cumpre uma função catártica junto ao escritor e de algum modo age como uma mecanismo de consolo, uma forma de suportar a ausência aniquiladora.
Entardecer inova em alguns ângulos a produção ficcional de Garcia, a começar pela utilização de um recurso icônico ou simbólico em seus três personagens: o pai, a mãe e ele próprio, autor e narrador, designando-os, respectivamente, por “Ele,”, “Mulher e “Menino”, sempre em maiúsculas, à feição dos poetas simbolistas.
Pelas características compositivas dessa narrativa, prefiro, preliminarmente, chamá-la aqui de novella, tendo em vista sua extensão média entre o conto e o romance, na classificação já referida de Martin Gray, e ainda porque não é intenção neste estudo apresentar conclusões a esse respeito.
A narrativa se abre in medias res, à altura em que o personagem “Ele” chega a Teresina. Só ficamos sabendo de mais referências a seu respeito no desenrolar do plot, através de analepses com os quais formaremos o perfil físico e moral do personagem central. O narrador, pouco a pouco, nos vai relatando fatos e ocorrências significativas do “Ele”, compondo, ao final, um belo exemplo de homem destemido, de pai exemplar, amoroso, amigo, solidário, que, por assim dizer, servirá como figura nuclear e balizadora do seu círculo familiar, espécie de liderança que brota espontânea, mercê de seus predicados e de seu descortino, e que passa a ter, no plano da diegese, o lugar de maior destaque. A intenção do narrador , não há como negar, era fazer o elogio do pai, tirá-lo do anonimato e levá-lo ao conhecimento público.
Não obstante já correr nas veias da ascendência paterna os traços de bravura e firmeza de caráter, a narrativa vai nos mostrando até que ponto pode alguém avançar na luta pela sobrevivência e ascensão social e financeira, conquistada graças à ação, à retidão da personalidade e a uma inquietação incomum para alcançar a felicidade própria e alheia.
Do comércio simples da “Garapeira Estudantina” até à vitória financeira, do desvelo invulgar pelo bem-estar da família até a possibilidade de desvio de rumos nos negócios provocado pelos novos tempos que já davam sinais através do surgimento dos refrigerantes que iriam fazer enorme concorrência com a garapa, fora o avanço dos recursos da alta publicidade da indústria de alimentos.
Ao lado do “Ele”, a personagem a “Mulher e a figura ativa do “menino” compõem um tripé modelizador de uma forma de viver especular, irradiando-se para outros entes queridos e familiares.
Cada um na sua posição específica, “Ele”, protegendo a órbita do lar, a “Mulher, o “Menino” e todo o séqüito da comunidade familiar e de amizades. A “Mulher”, da mesma forma, amparando “Ele” em todos os momentos, sobretudo aqueles a partir da revelação da doença que se mostrou fatal para o marido. O “Menino”, por seu turno, era aquela criancinha ativa, observadora que via no jovem pai o exemplo de herói.
A narrativa, à semelhança de Em preto e branco segundo já mencionamos, se estrutura em dois planos: o da representação dramática e o do relato histórico, este último citando acontecimentos históricos e políticos que mobilizam um “mosaico de citações” de personalidades, de autores e obras do passado e da atualidade piauiense e mesmo nacional ou além-fronteiras. Desse modo, o narrador desempenha a função de conduzir a digressão da narrativa quando aí assume o papel de cronista, ou de ensaísta, fazendo citações de obras, transcrevendo trechos e muitas vezes arriscando comentários sentenciosos – artifício retórico que podemos encontrar também na ficção de João Antônio (1937-1996)
Por outro lado, a novella somente ganha mais potência e vigor ficcionais quando o narrador toma as rédeas do discurso dramático, quer dizer, quando a história se volta para si própria, para o universo da ficção. É aí que toma vulto sua dimensão de narrativa, onde o diálogo, a linguagem, o estilo indireto livre, as ações e conflitos, as ironias finas ou desabridas assumem sua grandeza artística. É no domínio da diegese, da criação literária propriamente dita que o leitor percebe a riqueza das situações humanas criadas pela fabulação, pelo jogo da linguagem, situada, agora, fora das referencilidades, porém já dentro do seu mundo imaginado e imaginário, espaço ficcional que cede lugar ao mundo das possibilidades existenciais que só a Arte maiusculada tem o privilégio da realização. É aí que Teresina, que ocupa lugar proeminente no espaço da narração, entra para a ficção, com suas lendas, seus mistérios, suas tragédias, sua vida política trepidante, seus amores, sua culinária, seus costumes, sua topografia, suas construções e monumentos que inundam de nomes tão bem conhecidos dos piauienses natos ou ali radicados de coração.
É nesse conjunto de referências conhecidas, de lugares e eventos, de linguagem e sotaque, de sons e cheiros, de sol escaldante e vegetação verde, que Entardecer se entrega de corpo e alma ao prazer do leitor.
Com mais esse livro Ribamar Garcia reafirma sua competência no domínio da prosa de ficção, e não hesito em afirmar que com sua publicação ele avança em alguns aspectos de sua técnica narrativa, pondo em movimento seu universo pessoal e familiar, articulando-o com os caminhos da História, sem misturar, no entanto, as duas esferas, a real e a imaginária, mas, ao contrário, operando sua literatura esteticamente no sentido de permitir que o peso da ficção seja muito maior, mais dramático e convincente do que meros pormenores biográficos.
A figura paterna de Francisco de Assis Garcia, nome de rua hoje em Teresina, pivô da narrativa, atravessa o texto muito mais engrandecida, viva e comovente graças às virtualidades da arte literária do autor, arte que seguramente faria eco às sábias palavras de Machado de Assis, aquelas que estão incrustadas no monumento ao grande mestre da ficção brasileira de todos os tempos, à entrada da Academia Brasileira de Letras: “Esta a glória, que fica, eleva, honra e consola.”
* Ensaio originariamente publicado na revista Presença. Ano XXIII – Nº 39 – Órgão do Conselho Estadual de Cultura e da Fundação Cultural do Piauí – Teresina, 1º Quadrimestre,/ 2008, p. 39-41