Fernando Pinto do Amaral

Fernando Pinto do Amaral

 

O outro lado

 

 Não consigo dormir. Há poucas horas

despedi-me de ti - «every time

we say goodbye I die a little.

 Devo habituar-me

às fases dessa lua a que obedeces,

às estranhas marés de cada instante

que tu sabes viver como se fosse

o único, o melhor da tua vida

isente de remorsos e de apegos,

tão próxima de tudo. A minha dor

vai-se apagando à medida que um anjo

desce ao meu quarto e começa a torná-lo

fugaz imitação de um paraíso

em que até o meu nome se alterasse.

 

Não há nada a fazer, no entanto:

o facto é que, apesar de algum amor,

eu não me chamo Pedro,

mas sou ainda demasiado humano

para me libertar. Ainda não despertei,

ainda não tenho trinta e cinco anos

como Siddharta no momento em que

terá visto o vazio, escutado o inaudível.

 

Aquilo que vislumbro a esta hora

são rápidos reflexos de uma silhueta

que só podes ser tu

entre o céu e o mar, nessa noite

de lua cheia, quando abandonámos

um restaurante junto ao Guincho. Eu queria

ficar também assim, unir-me devagar

à linha do horizonte, sem saber

distinguir as fronteiras de coisa nenhuma.

 

Não hei-de conseguir: por mais que tente,

por mais que me desprenda ou desaprenda

os ritos e os ritmos do corpo ou da alma,

hei-de lembrar-me dos teus olhos vagos

e hei-de supor que estavam procurando

dizer-me qualquer coisa. Apenas o silêncio

poderia falar como eles

nessa plena doçura de existir

na maior paz do mundo. E contudo, pra mim

cada palavra se conjuga sempre

com outras palavras, e assim por diante

até ao infinito, até formarem

por exemplo um poema como este

- inútil quer pra mim, quer pra ti

ou pra qualquer leitor que nele ainda

pretendesse encontrar alguns vestígios

dessa tão pobre e má sabedoria

à qual, já só por hábito literário,

gostamos de chamar o coração.

 

Despedi-me de ti há pouco tempo,

mas continuo a ver-te, ignorando

por que me agrada ainda a sensação

de ter morrido mais um pouco. A vida

 

 

vai arrastar-me ao longo de outras vidas

entre o maelström dos bares onde irei afogar

esta ansiedade exausta – não é grave,

eu sei que não é grave e que entre nós

há-de restar plo menos a sombra de um anjo

que nos segrede uma palavra mágica

e saiba prolongá-la em tudo o que algum dia

- talvez daqui por meses, anos, séculos –

ainda formos capazes de  sentir.

 

Em A Escada de Jacob