Faz frio, no Rio
Por Rogel Samuel Em: 22/10/2011, às 04H26
FAZ FRIO
Rogel Samuel (foto do autor)
Faz frio, no Rio. Muito estranho, quando faz frio, no Rio de Janeiro. Se me perguntam qual o pior problema da cidade, digo: é o calor. Não a violência. Com a violência você acaba acostumando-se. Aprende a andar na corda bamba, a desconfiar. Sabe por onde pode, e não pode andar. Mas fico imaginando se houver falta de luz, durante o verão. No meu mini-escritório, desde cedo ligo o ar-condicionado. O computador passa o dia todo ligado. Sem energia, fecho tudo, vou-me embora. Mudo-me para Poços de Caldas. Para Manaus, não. Manaus é uma das cidades mais quentes do mundo. Mas sinto-me bem, em Manaus. Minha saúde melhora. Tenho grandes amigos, lá. Manaus me lembra Luiz Ruas, o grande poeta. Autor de Aparição do clown. Ruas faleceu há poucos anos. Ninguém falou dele. Nem em Manaus, creio. Quase ninguém o conhece. Quase ninguém o lê. Seu livro permaneceu décadas desconhecido. Você, querido/a leitor/a, felizmente o pode ler no nosso Site. Vale. Vale a pena. Salve no seu micro, essa obra prima. Conte pra todo mundo que, no meio da Floresta Amazônica, viveu e escreveu um dos maiores poetas do século.
O poema começa com uma "descoberta":
foi no tempo do luar pois não existe sol
no velho parque — tempo não maduro —
que encontrei o sempiterno clown.
queria ver-lhe a face. e sua face
era imenso lago azul parado
onde a lua se repetia. lua.
queria ver seu corpo — um chafariz
era seu corpo de barro modelado
aljofrando de estrelas e de pérolas
o céu e o chão banhados em azul.
apenas vi e velho clown beijando
uma boneca. e beijando-a chorava.
e ria ao mesmo tempo que
o destino dos palhaços é fundir
à luz da lua o alegre riso e o triste pranto.
E termina com uma "despedida":
e o velho clown partiu beijando ainda
o brinquedo que a criança abandonara
no velho palco parque ou tempo sem memória.
Começa e termina num "velho parque", onde se encontra um "velho clown". Era no tempo do luar, quando ainda existia luar. A face do clown era uma máscara, ou melhor, era imenso lago azul parado. A lua refletida no lago o próprio lago. Onde a lua se refletia, "se repetia". Desde o início do livro há um palhaço, uma boneca, e uma tragédia, que não se revela facilmente. O livro é enigmático, povoado de labirintos de sentidos. O tema se dispersa em várias armadilhas. Dir-se-ia que o autor, Luiz Ruas, que na vida real era padre, tenta esconder suas emoções amorosas a cada passo, a cada frase. Olha-me, sou enigma, diz, a cada verso, aquele "palhaço", que ama uma boneca sem vida. Há mesmo uma presença sexualizada em cada metáfora, como se a máscara escondesse o desejo e seu objeto. É um dos livros mais profundos que já se escreveu, em língua portuguesa.
Nada mais vou dizer, sobre o livro. Além disso, ali está outra minha leitura, para quem quiser. Faz frio, no Rio. O céu está escuro e triste. E eu me lembro, não sei por que, de L. Ruas, do calor de Manaus, do sol aberto da Amazônia, das suas noite de luar. O poeta Luiz Ruas arrastou seu sofrimento para o túmulo,
sem ver o sol, apenas o luar
e a luz indecisa das estrelas
recriam esta mascara e fonte
do riso e da tristeza que oculta
o meu rosto e corpo verdadeiros.
e assim caminharei eternamente
peregrino sempre sempre marinheiro
carregando meu fado torturante
- semente feto messe em promissão —
de ser ave sem poder voar
de ser clown isto é ser e não ser.