acervo do autor
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Mal a porta do elevador se abre, ouço Ivanildes. Que, como sempre, dispara sua metralhadora contra deus e o povo. Dessa vez, pelo que entendi, a fúria ivanildeana se destina a um certo advogado:

— Peticionou no processo questionando minha certidão. Vê se pode um negócio desses, gente. Quase vinte anos de serviço forense e não sei mais expedir uma simples certidão, essa é boa... E tem a questão da fé pública. Se virar moda isso de questionar certidão, onde vai parar nossa fé pública?

Os companheiros perguntam o que o juiz decidiu.

Ivanildes, ciente que tem a audiência nas mãos, ignora meu boa-tarde:

— Uai, e o que mais ia despachar? Concordou com as baboseiras daquele doutorzinho de porta-de-cadeia, e mandou desentranhar a certidão. Ainda constou na decisão que a nova certidão deverá ser expedida pela gerente. Sinceramente, não esperava outra atitude do meritíssimo... E vocês não deviam fazer essas caras de admirados não.

Abro a janela. “Pacotão torresmo, ó o pacotão torresmo”, um senhorzinho apregoa na rua quase deserta.       

 Ivanildes, que se gaba de ser daquelas que nunca deixam os is sem os respectivos pingos, explica:

— Todo mundo aqui tá careca de saber que, de uns tempos pra cá, o certo virou errado e o errado está sempre certo... Mas eu entendo o excelentíssimo. Precisa mesmo agradar aos urubus. Senão a poderosíssima OAB protocola reclamação na corregedoria, né.

Silêncio. Durante algum tempo, só se ouve “pacotão torresmo, ó o pacotão torresmo” do pregoeiro que segue em seu ofício.

Ivanildes, que hoje está virada no Jiraya como dizia uma ex-estagiária, prossegue:

— Mas o que esperar de um advogado igual aquele, né mesmo. Veado é tudo assim: recalcado. Essa raça adora infernizar nossa vida porque, no fundo, queriam ser como nós, mas sabem que não podem. E jamais serão.

A impressora cospe mais uma carta de intimação, um mandado de penhora, outro relatório. Talvez incomodada com nosso silêncio, Ivanildes insiste:

— Do jeito que vocês estão me olhando, até parece que falei alguma novidade. Gente, a cidade inteira está cansada de saber que aquilo é bicha. Gay, né. Porque hoje em dia, já viu, a gente é obrigado a se policiar. É um mimimi desgraçado nesse país, ninguém mais pode falar o português correto... Deus que me perdoe, mas prefiro ver meu filho morto que ele virar veado.

A gerente entra, secando o suor com a toalhinha.

Ivanildes vira-se para ela:

— Não falei que o governo recuava naquela história do PIX? É uma canalhada que tomou conta de Brasília. Queriam fiscalizar o dinheiro do povo. Mas eles não contavam com a força da internet e das redes sociais. Isso não vai ficar barato não. Vigiar cada PIX que entra ou sai da nossa conta é coisa de ditadura. Ah, mas deviam ter impedido aquele nove-dedos de tomar posse... Deus que me perdoe, não suporto nem ouvir o nome daquele ladrão. E tinham que dar um jeito também de sumir com o mafioso lá do Supremo. Esse é outro que se acha poderoso, manda prender senhorinhas indefesas, apreende passaporte do cidadão de bem... Se isso não é ditadura, não sei mais o que é.

De pé ao lado da multifuncional, espero meus documentos.

Ivanildes sabe o que penso sobre suas opiniões e, por isso, me encara com um riso de escárnio. Mas hoje não vou cair na armadilha dessa alucinada não. Enquanto vomita o besteirol cotidiano, tamborilo os dedos na tampa da impressora.

A gerente, querendo evitar conflito logo no início do expediente, pede ao estagiário para lhe trazer um copo d'água.

— Pra mim também, menino, e bem gelada. A minha caneca fica em cima da geladeira, é aquela do São Arcanjo Gabriel.

O menino sai coçando a barba rala.

A impressora termina de cuspir os documentos. De volta à minha mesa, imagino o estagiário se desvencilhando dos advogados no corredor, tentando equilibrar sua coqueteleira, o copo da gerente e a caneca de Ivanildes.