acervo do autor
acervo do autor

 

— Essa gente inventa cada uma.

A tarde ia como o mês, pela metade. As impressoras modorravam, o ar condicionado resmungava em cima do armário de metal. Os estagiários saíram para tomar café e no balcão, felizmente, não havia uma alma viva para chatear. Encurvado a digitar expressões vazias no ofício, Lyrio repetiu o comentário.  

Os burocratas trocamos olhares. Endoidou de vez, li nos castanhos e estrábicos olhos da escrivã. A terceirizada, sempre ela, largou o celular, quis saber o que acontecera. Como se esperasse reação semelhante, Lyrio deixou sem ponto o famigerado fecho do ofício – Sem mais, renovo os protestos de elevada estimada e distinta consideração – e, mirando a imensidão bege da parede, desandou na verborragia costumeira:

— Interessante este espécime denominado juiz leigo. Assaz interessante, diria o Machado. Penetra o recinto de inopino, empertigado feito um general quatro-estrelas, silencioso como um abantesma. Ignora-nos, com sua índole blasé, como se fosse o eleito para o banquete olimpiano, ou o único a quem foi conferido o privilégio de refestelar-se na incomensurável e eterna saturnal... Contudo, não é isso que me causa estranhamento. Afinal, não sou nenhum néscio, sei que o poder é contagiante e basta respirar, ainda que por poucos dias, o pútrido ar de um gabinete jurisdicional para qualquer mortal deixar-se contaminar. O que considero espantoso, deveras espantoso, é a existência desse juiz leigo ou, melhor me expressando, a existência deste cargo: nos últimos tempos, terceirizaram até a função judicante.

O telefone toca, ninguém quer levantar: estamos curiosos para saber aonde chegará a lenga-lenga de Lyrio. Inconveniente, o aparelho insiste. Os castanhos e estrábicos olhos da escrivã ordenam, a terceirizada tira o fone do gancho e, não sei se por acaso ou manobra de seus ágeis dedos, a ligação cai.

— Nossa preclara magistrada, agora liberta de seus naturais afazeres, queda-se o dia inteiro sentada em sua poltrona, sem outra função que ruminar pautas e metas mirabolantes para as fatídicas reuniões mensais. Isso, obviamente, quando não se dedica à sanha de contabilizar a pequena fortuna estampada em seu holerite – que ela, não obstante, teima chamar de atestado de pobreza.

O telefone insiste. Dessa vez, nem os castanhos e estrábicos olhos da escrivã se mexem.

— Enquanto isso, tal como um déspota infernal, nosso estupendo juiz leigo despacha e sentencia como lhe dá na veneta, realiza audiências no horário que deseja e da forma como lhe apraz, segue inveterado com o sarcasmo talhado na face... Homessa! E pensar que uma persona dessas, a quem se conferem tantas prerrogativas e poderes, não passa de reles bacharel que ainda exala a banco de faculdade e cueiros... Assaz curiosa a contemporaneidade: terceirizam tudo, inclusive a atividade jurisdicional. Enfim, como ponderei alhures, essa gente inventa cada coisa.

A porta foi aberta. De inopino, como Lyrio gosta de dizer.  

O telefone acalmou. Voltamos todos ao expediente. A terceirizada malocou o celular sob os autos de uma possessória. Os castanhos e estrábicos, e agora arregalados, olhos da escrivã encararam o juiz leigo, que deixou a secretaria como entrou: sorrisinho cínico, nariz em pé, peito estufado.

Lyrio, finalmente, digitou o ponto que faltava ao ofício.