(Miguel Carqueija)


Por aqui se vê que nem tudo está perdido

 

EXALTAÇÃO DE VALORES NA CULTURA POP



“Foi por causa de coisas assim que criaram as leis federais. Isto é muito nojento.”
(Hayley Stark)    
“Roman Polanski não acabou de ganhar um Oscar?”
(Hayley Stark)




    Lucky Skywalker foi levado a duelar com o próprio pai, Anakin (Darth Vader) (1). Para o Imperador, Lucky poderia se tornar o novo Lorde Negro. Mas Lucky, apesar de sua habilidade com a espada jedi, não poderia odiar — e muito menos o próprio pai. E, por se recusar a odiar, Lucky se exporá à morte, alvo da cólera do Imperador Palpatine, mas conseguirá desse modo o resgate moral de Anakin, após décadas no “lado negro”.
    Também Harry Potter (2) poderia ter escolhido o caminho mais fácil — como seria, por exemplo, a aliança com Lord Voldemort — mas preferiu o caminho da integridade, com todas as suas pedras e espinhos, e essa escolha custou anos de lutas e sofrimentos.
    A moderna mentalidade materialista e laicista não quer a transcendência e duvida do heroísmo e da honestidade. No entanto o grande público ainda prestigia, na ficção, as histórias e as franquias que trabalham com a exaltação de valores. Nos mangás e animes (quadrinhos e desenhos animados japoneses) essa exaltação é comum e freqüente. É o que se vê em “Ga-Rei” (3), mangá de Hajime Segawa, quando a heroína Tsuchimiya Kagura derrota a vilã Imawano Setsuna e esta pergunta: “Não vai me matar?” E Kagura responde: “Não vou matar. Não sou como você!” Ou então vemos Anita King e Youmiko Readman (4), quando o sinistro e astucioso Joker tenta alicia-las para a “nova ordem”. Quando diante de melífluos argumentos Readman hesita, Anita a admoesta com energia: “Idiota, não se deixe enganar!” E apontando o dedo para Joker: “Ele é o vilão!”
          Não se trata de maniqueísmo, pois as pessoas em geral oscilam entre o bem e o mal, mas é importante traçar uma clara linha divisória entre o que é certo e o que é errado, conforme a nossa consciência dá testemunho, se a quisermos ouvir. O grande Papa Bento XVI já tem alertado a humanidade para a “ditadura do relativismo” que, no plano moral (e não apenas no cosmológico de Einstein) nos tira toda a certeza objetiva, até da existência de Deus. E no entanto, mesmo ateus inteligentes como Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke não conseguiram evitar uma busca sublime da transcendência — e o que mais seria a sequência final de “2001: a space odissey”? (5)
    Vivemos uma época de relativismo moral, e aberrações como a pedofilia chegam a ser defendidas na mídia. Mas o público ainda deseja heróis, santos e mártires; ainda aprecia a nobreza, a bondade e a abnegação. Por que será que, no Japão, cultiva-se a bondade nos protagonistas de animês e mangás: Sailor Moon (6), Hikaru Shidou (7), Sorami Kanata (8), Hitomi Kanzaki (9), Tsuchimiya Kagura etc.?
    Sabemos que o conto de fadas da Chapeuzinho Vermelho, em seu simbolismo oculto, é uma história sobre pedofilia e o Lobo Mau é o símbolo do pedófilo.
     Mas se a moral é relativa, se não existem valores objetivos ou absolutos, se o Lobo Mau é apenas uma fera que come as crianças somente para atender o instinto e satisfazer a fome (mesmo que seja uma fome sexual), então os Flintstones (10) estão certos em comemorar o Natal excluindo Jesus Cristo e aceitando apenas o Papai Noel, até porque Jesus é um amigo exigente (“Quem não tomar a sua cruz e me seguir, não é digno de mim”: Mt 10,38) e o Papai Noel nada nos exige e ainda nos dá presentes; então é em vão que Hayley Stark (11) chora diante da foto de ultrajes contra crianças e se compadece ao contemplar, do terraço da casa de Jeff Kohlver, a imensa Los Angeles a perder de vista, com seus telhados cinzentos pela distância, a ocultar dramas, tragédias, crimes, vícios, violências, todo o sofrimento humano, todo o silêncio dos inocentes. Entretanto, as pessoas que não se deixaram contaminar pelo relativismo, ainda se comovem assistindo Harry Potter dançando com Hermione Granger para relaxá-la, num momento especialmente crítico da cruzada contra o mal. As pessoas comuns e não-relativistas torcerão por Hayley Stark quando a menina encara o pedófilo estuprador Jeff Kohlver no terraço, no confronto final, quando ela declara majestosamente, como que personificando a própria Justiça: “Eu sou todas as garotinhas que você espiou, apalpou, machucou, violentou e matou”.     
    É por isso, porque as pessoas íntegras agem por princípios e não por pragmatismo, que Mary Poppins (12) desce à Terra para repor a ordem e o amor numa família, pois se fossemos dar uma interpretação materialista e absurda á história, diríamos que ela apenas convenceu o Sr. Banks que era bom para a saúde relaxar um pouco soltando pipas com as crianças e que esse relaxamento seria proveitoso ao seu rendimento no banco (pois só o dinheiro interessa...). Mas a mensagem de Mary Poppins não é essa; é basicamente uma mensagem de amor e redenção. Extremamente otimista, mostra a necessidade da preservação do mundo das crianças.
      Um mundo onde a bondade se estenderá naturalmente aos animais, nossos irmãos menores, uma bondade que, em casos extremos, sacrificará a própria vida, como se vê no trágico desfecho de “Abençoai as feras e as crianças” (13).
    Um mundo onde o homem terá a boa vontade para tentar compreender mesmo o ponto de vista dos animais, como em “The legend of lobo” (14).
    Um mundo onde a bondade, o otimismo e a pureza de uma menina de treze anos (Pollyanna) (15) possa transformar toda uma comunidade ao seu redor.
    Mas até a pureza e a ingenuidade podem pegar em armas, quando valores são ameaçados pelas forças do mal: assim o fazem a gentil e cândida Sorami Kanata e suas companheiras, quando se trata de impedir um coronel psicótico de desencadear uma guerra. “Você será capaz de atirar em alguém?”, pergunta Kureha, sabedora do caráter infantil da sua amiga; e Kanata responde: “Se for preciso, atirarei”.
    Pois, conforme as circunstâncias, os valores verticais — que têm sua origem em Deus — se defenderão pela doçura ou pela firmeza.
    Entre esses valores não vemos somente o heroísmo que supõe combates, derrotar os inimigos. A amizade, a lealdade, o desprendimento da própria vida, estão entre os valores ainda preservados em histórias que remam contra a corrente do cinismo, do culto à brutalidade e do relativismo moral.
    É essa capacidade de amar, essa valorização da amizade, que faz com que os espectadores de “Ben-Hur” (16) se desgostem de Messala — menos por ser ele representante de uma potencia política opressora do que por haver traído a amizade de infância que o ligava ao príncipe judeu. É o “código de lealdade” que leva o lobo herói de “The legend of lobo” a descer até o rancho onde sua companheira estava presa, para tentar liberta-la — mesmo que, como diz a canção-tema, “tudo está contra você”. E por amizade e lealdade, Sailor Moon se entrega ao inimigo para poupar as suas amigas em “A promessa da rosa”.    
    E o desprendimento da própria vida — que acompanha o altruísmo — torna-se visível na grandiosa cena em que Nausicaa (17) se coloca ao lado do filhote ferido de “ohmu” (um inseto gigante) e, serenamente, aguarda a morte, entrega-se ao sacrifício em beneficio de todos.  


APÊNDICE

1 - LUCKY SKYWALKER é o herói principal da saga “Star wars” (Guerra nas estrelas), concebida e realizada nas décadas de 70, 80, 90 e 00 pelo cineasta George Lucas. Pertencente á ordem dos jedis, Lucky opera poderes mentais que lhe permitem usar o sabre de luz. Exemplo típico da permanência no Bem, seu grande desafio é resgatar o pai do poder das trevas.
2 – HARRY POTTER, criado pela autora britânica J.K. Rowling, numa série de livros (todos transpostos para o cinema) é um bruxinho do bem, predestinado a salvar o mundo da maligna influência de Voldemort, o vilão absoluto, que fez a opção definitiva pelo mal. Harry mantém a sua integridade ao longo de todo o seriado. É comovente a amizade entre Harry, Hermione Granger e Ronny Weasley.
3 – TSUCHIMIYA KAGURA – heroína do mangá xintoísta “Ga-Rei”, de Hajime Segawa. Herdeira do poder ancestral da família, Kagura sofre com a perversão de sua irmã de criação, Yomi. Ao longo da saga a jovem heroína esforça-se para redimir o mundo como uma messias do Xintoísmo e, no fim, oferece a redenção a Yomi.
4 – ANITA KING E YOUMIKO READMAN são duas manipuladoras de papel (operam poderes sobrenaturais com papel, que podem transformar em armas e veículos) da série ROD (animação japonesa) que enfrentam a conspiração da Biblioteca Britânica para dominar mentalmente a sociedade, escravizando-a a uma super-mente. A história se passa num mundo alternativo.
5 – 2001: UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO – grandiosa produção de Stanley Kubrick (Inglaterra, 1968) com base em argumento de Arthur C. Clarke. No final da película, o astronauta Dave mergulha numa incompreensível transcendência, num dos mais belos desfechos já vistos no cinema.
6 – SAILOR MOON – a “Princesa da Lua” criada por Naoko Takeushi em 1992 em mangás, passando logo depois aos animes, é uma combinação de infantilidade com nobreza de sentimentos que chegam á santidade.
7 – HIKARU SHIDOU – uma das guerreiras mágicas do mangá criado pelo quarteto CLAMP. Hikaru possui aguçado senso de justiça e uma bondade semelhante à de Sailor Moon.
8 – SORAMI KANATA – protagonista da belíssima série de animação “Sora no woto” (A música que veio do Céu) de Yagi Shinba, é uma soldada de 15 anos que faz parte de um pequeno batalhão feminino, em serviço num baluarte situado no fim do mundo conhecido, numa Terra decadente após a destruição que encerou a “era passada” (a nossa).
9 – HITOMI KANZAKI – heroína da série em animação “As visões de Escaflowne” (Japão, 1996); é uma estudante capaz de vidência que se horroriza ante o flagelo da guerra, no qual se envolvem até as pessoas que ela ama. Hitomi se esforça para pacificar um mundo envolvido numa estúpida guerra.
10 — OS FLINTSTONES — personagens muito famosos criados por William Hanna e Joseph Barbera nos EUA, na década de 60, em desenho e “comics”. Embora pré-históricos, eles representam uma parodia da contemporaneidade, possuindo praticamente, de maneira tosca, toda a tecnologia moderna. A agulha do toca-disco, por exemplo, é o bico de um pássaro, e os aviões voam à base de pterodáctilos. A animação dos Flintstones é muito primaria e uma das criticas feitas ao seriado, é que animais são usados como aparelhos domésticos.
11 — HAYLEY STARK é a heroína de 14 anos que aparece no filme “Hard candy” (O doce amargo), uma co-produção americano-canadense de 2005, baseada em projeto do produtor David Higgins desenvolvido no roteiro de Brian Nelson, com notável direção do britânico David Slade. Hayley investiga o desaparecimento da adolescente Dona Mauer, levanta as provas que incriminam o fotografo Jeff Kohlver e enfrenta o pedófilo assassino em terrível confronto que atravessa quase o filme inteiro.
12 — MARY POPPINS — a fada-babá criada pela escritora P.L. Travers (1889-1996) numa série de livros, o primeiro deles brilhantemente adaptado por Walt Disney em 1964, com Julie Andrews no papel-título.
13 — ABENÇOAI AS FERAS E AS CRIANÇAS (Bless the beasts and children) — filme do produtor norte-americano Stanley Kramer (1913-2001), de 1971. Adolescentes são rudemente tratados em acampamento e revoltam-se ao assistir búfalos sendo dizimados a tiro.
14 — THE LEGEND OF LOBO — drama com animais que Walt Disney produziu em 1962 e que é uma das mais belas películas da História (argumento original do escritor Ernest Thompson-Seton).
15 — POLLYANNA — personagem do celebre livro de Eleanor Porter (1868-1920), virou filme de Walt Disney em 1960; pelo papel principal, Hayley Mills ganhou um Oscar. O nome Pollyanna tornou-se sinônimo de pessoa exageradamente otimista.
16 — BEN-HUR — Superprodução de Sam Zimbalist (1959), super-premiada, e baseada em livro de Lewis Wallace. Uma ficção dos tempos de Cristo, uma história grandiosa e emocionante. No papel-titulo, Charlton Heston, e Jack Hawkins como Messala.  
17 — NAUSICAA — a Princesa do Vale do Vento, criada por Hayao Miyazaki em novelas gráficas e que aparece num desenho longo, é uma espécie de Messias de um futuro distante e decadente, que restaura a aliança perdida entre a humanidade e a natureza.
 
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