Evocação e presença de Alfredo Bosi

[Alcides Villaça] 

"O primeiro curso do professor Alfredo Bosi na disciplina de Literatura Brasileira perturbou de maneira extraordinariamente fecunda a cabeça deste formando, num curso de Letras que se arrastava no âmbito de uma universidade minada pelos anos de chumbo da ditadura. Em 1971 o estudante já se conformara com a experiência de vários semestres naufragados quando o moço professor, egresso da área de Italiano e autor da recém-lançada História concisa da Literatura Brasileira (1970) começou seu curso sobre Modernismo.

Os impactos decisivos são, por definição, difíceis de absorver: fica deles, de início, uma sensação difusa, ainda que marcada por uma espécie de sensibilidade dominante. Nesse caso, o que nos terá dominado a todos naquela sala enorme e lotada de um dos “barracões” da Psicologia, onde nos alojaram depois de expulsos da Maria Antônia, foi a experiência da largueza e da verticalidade da fala daquele professor, na qual o valor e o sentido da Literatura se intensificavam e se expandiam à medida que incorporavam os de outras áreas do conhecimento. Mas o impacto vinha sobretudo da regência ética que dava o tom ao discurso do professor. Todas as informações, todas as atribuições, todas as relações nodais entre as matérias tratadas – com a literatura no centro, mas sempre em perspectiva de articulação – eram acionados num compromisso tácito com a construção da vida

Havia algo de inédito naquela combinação entre a objetividade do foco analítico (urdida na atenção plena ao objeto), a precisão interpretativa (obtida pela contextualização necessária) e um vetor espiritual, que a tudo projetava no caminho de uma História a ser orientada por um firme compromisso moral. As palavras que instituíam essa combinação eram, assim, mais que uma aula de literatura: encarnavam princípios de compromisso intelectual e de inserção social, e promoviam o pensamento a uma genuína caminhada dialética, pela qual a afirmação se valoriza na medida mesma em que se interroga ou que se nutre das tensões que ilumina.

O que tínhamos diante de nós, sem disso termos plena consciência, era uma manifestação intelectual aberta, sensível, criticamente armada e permanentemente espelhada num severo julgamento de seus objetos e de si mesma – por vezes modulada nos ponteios de uma fina, quase imperceptível ironia. Numa época tão opressiva como aquela, a firmeza de espírito associada à pratica e à crítica da cultura surgia, se não como um modelo, como um desafio a ser reconhecido.

Tratava-se, enfim, de ver proposto com energia um sentido moral para a conduta e o pensamento. Nesse quadro, uma obra literária crescia diante de nós ao ser reconhecida ao mesmo tempo como iluminação da subjetividade, considerada em seus meandros íntimos, e como forma que se enraíza na história social."