Eugênio Montale e sua experiência humana
Em: 06/05/2012, às 11H55
Rubem Braga
Roma - A Radio Italiana ouviu - ou fez ouvir - um grupo de escritores sobre questões de arte de cultura, e do momento. Alguns desses depoimentos são interessantes. Vamos traduzir e resumir os mais significativos, e comecemos pelo poeta Eugenio Montale - seguramente um dos melhores da Europa - que foi interrogado sobre sua experiencia humana nestes ultimos anos. O reporter queria saber como o poeta viu e viveu os acontecimentos entre as duas guerras. (Lembro-me que visitei Montale em Florença, ainda em 1945: ele reassumia tranquilamente o seu lugar de bibliotecario ou zelador de um palacio cheio de livros e obras de arte, lugar que perdera vinte anos antes por causa do fascismo).
O essencial e o transitorio
"O argumento de minha poesia - diz Montale - e, creio de toda a poesia possivel, é a condição humana considerada em si mesma; não este ou aquele acontecimento historico. Isso não significa alheamento ao que acontece no mundo; significa apenas a consciencia e a vontade de não trocar o essencial pelo transitorio. Não fiquei indiferente ao que aconteceu nos ultimos trinta anos; mas não posso dizer que, se os fatos tivessem sido diferentes, a minha poesia tambem teria um aspecto totalmente diverso. O artista traz em si uma atitude particular em face da vida, e um certo modo de interpretá-la segundo esquemas que lhe são proprios. Os acontecimentos externos são sempre mais ou menos previstos pelo artista; mas no momento em que eles acontecem, cessam, de algum modo, de ser interessantes.
Entre esses acontecimentos que ouso chamar de externos, o mais importante para um italiano de minha geração foi, certamente, o fascismo. Não fui fascista e não cantei a fascismo; mas tambem não escrevi poemas hostilizando essa pseuda-revolução. É verdade que teria sido impossivel publicar poemas hostis ao regime; mas o fato é que eu não teria feito o mesmo se o risco fosse minimo ou nulo. Tendo sentido, desde o nascimento, uma total desarmonia com a realidade que me cercava, a materia de minha inspiração só poderia ser essa desarmonia. Não nego que o fascismo, a principio, a guerra depois e, ainda mais tarde, a guerra civil, me tenham feito infeliz; todavia existiam em mim razões de infelicidade que estavam muito alem e fora desses fenomenos. Acredito que se trate de uma inadaptação psicologica e moral propria a toda natureza de fundo introspectivo, isto é, a toda natureza poetica. Aqueles para quem a arte é um produto das condições ambientais e sociais do artista poderão objetar: o mal é que você se tenha alheado ao seu tempo; devia optar por uma ou por outra das partes em conflito. Mudando e melhorando a sociedade curam-se tambem os individuos; na sociedade ideal não existirão mais inadaptados, todos se sentirão perfeitamente em seu lugar; e o artista será um homem como os outros que terá, a mais, o dom do canto, a capacidade de descobrir e criar a beleza".
O poeta e a sociedade
- "Respondo - continua Montale - que eu optei como homem; mas como poeta senti logo que meu combate era em outra frente, na qual pouca importancia tinham os grandes acontecimentos que estavam surgindo. A hipotese de uma sociedade futura melhor do que a presente não é desprezivel, mas é uma hipotese economico-politica que não autoriza ilações de ordem estetica a não ser quando se torna um mito. Mas um mito não pode ser obrigatorio. Estou disposto a trabalhar por um mundo melhor; sempre trabalhei nesse sentido; creio que trabalhar nesse sentido é o dever primario de todo homem digno do nome de homem. Mas creio tambem que não é possivel fazer previsões sobre o lugar que a arte ocupará em uma sociedade melhor que a nossa. Platão bania os poetas de sua Republica; em certos paises de nosso conhecimento são banidos os poetas que se ocupam de seus proprios fatos (isto é, da poesia) e não dos fatos coletivos. Em um mundo unificado pela tecnica e pelo dominio de uma ideologia, não creio que os poetas "individualistas" possam constituir um perigo para o Estado ou Super-Estado que os abrigue, ou tolere. É possivel conceber um mundo em que o bem-estar e a normalidade de quase todos deixe que se exprima livremente a inadaptação de uma intima minoria. De qualquer modo esta perspectiva otimista deixa aberto o dissidio entre o individuo e a sociedade. É também possivel a hipotese de que dissidio seja resolvido "manu miltari", suprimindo-se o individuo inadaptavel. O que parece improvavel e indemonstravel é o advento automotivo e rapido de uma idade de ouro para as artes, apenas seja mudada a estrutura social".
Um homem sentado
- Explicando tudo isso, posso responder à sua pergunta assim: que, por mim, os acontecimentos que durante as duas guerras infelicitaram a humanidade, eu os vivi assim: sentado, a observá-los. No meu livrinho "Finisterra" (e basta o titulo para demonstrá-lo) a ultima guerra ocupa todo o fundo, mas apenas como um reflexo. Assim mesmo o livro não poderia ser publicado na Italia. Apareceu em Lugano, em 1943. Só a epigrafe inicial bastaria para fazer arder os olhos dos censores fascistas. Dizia: "Les princes (isto é: os ditadores) n'ont point d'yeux pour voir ces grandes merveilles; leurs mains ne servent plus qu'a nous persécuter...". São versos de um homem que sabia o que eram lutas e matanças, Agrippa d'Aubigné.
Em definitivo: o fascismo e a guerra deram ao meu isolamento o "alibi" de que ele talvez trivesse necessidade. A minha poesia daquele tempo só poderia fazer-se mais fechada, mais concentrada - não digo mais obscura".
Poesia Italiana de hoje
Perguntando sobre a poesia italiana de hoje, disse Eugenio Montale:
- "Na Italia a poesias lirica permaneceu classica. Quero dizer: ela não elimina o controle da razão, mas procura superá-lo, saltando para um outro plano, que é o da intuição alegorica da lirica. Nos outros paises não acontece o mesmo, e há poetas em que prevalece o elemento irracional; mas entre nós, quando a compreensão racional não é possivel, todos, os leitores, os criticos, declaram-se vencidos, e os proprios poetas ficam descontentes. A Italia teve o futurismo, que reagiu contra o dannunzianismo com armas bastante dannuzianas, e nunca se divorciou da razão; mas não teve o surrealismo e seus derivados. Entre nós o irracional é, nos poetas, um limite necessario para o qual eles tendem, não a propria materia da inspiração poetica... Não temos Valery, um Benn, um Elliot, um Auden, um Char. Não temos grandes ortopedistas e experimentadores. Mas tem havido e há poetas que valem, creio eu como um Apolinaire, um Antonio Machado ou, se queremos andar mais atrás, um Hopckins; poetas nos quais o melhor do simbolismo francês (que foi na poesia o que em pintura foi o impressionismo) se enxerta em formas Italianas de maneira original.
"Mas é preciso acrescentar que a recente poesia italiana está ameaçada de exaustão. E é precisamente o seu lado classico que parece em perigo. Há palavras, modos, cadencias recentes que não poderemos mais usar por muito tempo; e uma nova linguagem, nos mais jovens, não surgiu ainda. Se não surgir, isso quer dizer que a Italia tem necessidade de muitos anos de prosa e, possivelmente, de verdadeira prosa, não de prosa poetica."
Folha da Manhã, domingo, 25 de novembro de 1951
Neste texto foi mantida a grafia original