Eu me lembro
Por Bráulio Tavares Em: 07/11/2021, às 12H13
[Bráulio Tavares]
1.
Eu me lembro dos “jornais da festa”, que eram pasquins em formato tablóide, ou menor ainda, vendidos em Campina durante as festas de fim de ano. Cheios de propagandas pagas, de boa vontade, pelo comércio local, porque as tiragens eram grandes e todo mundo passava os jornais de mão em mão. Os que eu mais gostava eram “O Detetive” e “O Disco Voador”, por motivos óbvios, mas também lembro de “O Oião”, que tinha a imagem de um olho enorme. Ainda lembro de cor um versinho de pé-quebrado que fizeram com meu pai: “Nilo Tavares / parecendo o satanás / paletó lascado atrás / na festa”. Era a moda dos paletós com um corte vertical na parte traseira, que em Campina, evidentemente, dava origem a todo tipo de piada impublicável. E lembro uma décima que fizeram mangando de Zé da Guia, funcionário dos Correios e Telégrafos: “Ó monstro da estratosfera / ó sacatrapo de angola / ó boitatá, tatu-bola / ó cara de besta-fera / se Satanás que te espera / de ti não der logo cabo / há de dizer: ó quiabo, / Zé da Guia do Correio / é um bicho muito feio / termina criando rabo!”.
2.
Eu me lembro que quando conheci os gêmeos Rômulo e Romero Azevedo toda a nossa conversa era um desfilar ininterrupto de informações e todo tipo de detalhes sobre cinema, e eu ficava fascinado porque até então (eu tinha 16 anos, eles 14) nunca tinha conhecido ninguém que fosse mais nerd do que eu. Eles falavam alternadamente; quando um fazia um ponto-parágrafo e respirava, o outro pegava a frase no ar e prosseguia. E sabiam tudo de cor (ainda sabem). Naquele tempo os telefones em Campina Grande tinham quatro algarismos. O da minha casa era 3666, e eles disseram: “Eita, é a tripla Besta do Apocalipse”. Eu perguntei: “E o de vocês?” Um deles respondeu: “Um Cão Andaluz e O Manto Sagrado”. Precisei de alguns segundos para deduzir que era 2853.
3
Eu me lembro que com uns oito anos de idade eu gostava muito de desenhar, e tia Adiza me dava de presente cadernetas, e uns livros-razão de contabilidade, sem utilidade, cheios de páginas em branco. Uma vez eu peguei uma dessas cadernetinhas de bolso, onde há um quadrado referente a cada dia do ano, e onde tinha o anúncio de um feriado eu fazia a ilustração correspondente. “Carnaval” – eu fazia um palhaço, as curvas das serpentinas, os pontinhos dos confetes... “Descobrimento do Brasil” – eu rabiscava mal e mal uma caravela, com as velas enfunadas e uma cruz na vela grande. Aí embatuquei, porque chegou um feriado cujo nome era: PENTECOSTES. O que diabo será isso? Depois de muito pensar, desenhei um cara barbudo, com chapéu de cowboy, pendurado numa forca. Alguém viu aquilo e me perguntou por quê, e se eu sabia o que era “Pentecostes”. E eu respondi: “Isso parece o nome de um ladrão de cavalos”.
4
Eu me lembro do meu primeiro relógio de pulso, que era da marca “Lanco” e tinha ponteiros luminosos. Fiquei tão entusiasmado com esse pequeno prodígio científico que durante meses mantive o costume de, deitado para dormir, no quarto escuro, olhar o mostrador por baixo das cobertas, a todo instante, para ver se ele ficava aceso mesmo. Depois, já com mais de 20 anos, tive um da marca “Fortissimo”, cujo grande charme, a meu ver, era a ausência de acento agudo, o que o transformava aos meus olhos em relógio importado. Se brincar, ainda deve estar guardado, sem pulseira, em alguma das minhas caixas de traquitanas.
5
Eu me lembro que em 1968, o auge dos Beatles, a gente se reunia na casa de Jakson e Marcos Agra para ouvir um programa na BBC de Londres. Ouvir rádios estrangeiras era uma prática comum naquele tempo, porque, como diziam alguns locutores, “música não tem idioma e a arte não tem fronteiras”. Eu sabia que a BBC era uma rádio londrina, mas era tão abestalhado que ficava surpreso com o fato de eles se darem o trabalho de ocupar um horário inteiro com um programa em português chamado “Iê-iê-iê na BBC” – na minha cabeça a BBC era uma rádio como a Rádio Borborema, tinha somente um canal de transmissão. Lembro da noite em que nos reunimos todos para acompanhar a primeira audição do “Álbum Branco” dos Beatles, lançado naquele dia. Era uma novidade atrás da outra, e a certa altura o locutor disse: “E agora uma canção de George Harrison, intitulada ‘Meu Violão Chora em Surdina’”, e eu pensei: “Vige que título cafona”.