Imagem: internet
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[Chagas Botelho] 

Dias desses, a caminho da repartição, peguei um Uber. Mal sentei, e o motorista, muito bravo, começou a resmungar. Disse que a cidade estava um caos. Tive que concordar com a sua insatisfação. Ele seguiu resmungando. Que não via a hora de voltar para o interior — para a sua roça. Nascido em Guadalupe, cidadezinha a 360 km de Teresina, localizada no centro-sul do Piauí, afirmava enfático que, lá sim, era sua verdadeira pasárgada.

Por ele, há tempos, já teria voltado em definitivo e armado sua tenda, no torrão que lhe viu crescer. Mas, infelizmente, a dureza financeira o impedia. Quem sabe um dia, no futuro, retornasse. Isso se as condições econômicas melhorassem. Embora quisesse que a volta fosse para ontem, quando ainda era jovem e gozava de boa saúde. Sentia-se preso à sua terra como se uma corda resistente lhe prendesse. Suspirou fundo e se mostrou saudoso.

Viajava duas vezes por mês ao seu lugar no mundo. A atmosfera de lá era melhor do que a daqui. E, a cada ida, era mais difícil voltar à capital. Apresentava-se desanimado para encarar o caos que por aqui se instalara de forma assustadora. De chofre, e aparentando calma, me perguntou se eu conhecia Guadalupe. Se eu tinha conhecimento da usina hidrelétrica ou dos platôs irrigados. Se já ouvira falar das belezas naturais que abundavam nos quatro cantos de sua querência.

Respondi que visitara uma única vez. Há muitos anos. Nem tinha cabelos grisalhos. Foi uma viagem curta e que não houve tempo para turismo. Fui a trabalho e conheci pouca coisa. Para não dizer quase nenhuma. Cheguei à noitinha, dormi numa rede rota e de armador barulhento, e de manhãzinha, antes do cantar do galo, e cheio de bocejos, retornei ao meu caos como ele próprio o denominava. Ao meu local onde as coisas pareciam todas deterioradas.

Portanto, só visitara uma rádio na qual concedi entrevista. Um restaurante onde comera uma suculenta galinha caipira. E o próprio clube recreativo que me contratara para ser mestre de cerimônia de um baile tradicional. Nada mais. A essa altura, meu condutor, de forma negativa, meneou a cabeça e soltou sua verbosidade irônica: “Realmente o senhor não conheceu nada”. A afirmação contundente dele me afundou desprestigiado no banco traseiro do veículo.

Aconselhou-me a esquecer esse breve passeio, e que voltasse para conhecer a verdadeira Guadalupe. Dela, certeza que agora traria maiores e melhores lembranças. As quais jamais esqueceria. Bem, o convite estava feito e caso aceitasse, seria o meu motorista e o meu guia turístico. Em sua companhia, conhecia tudo como a palma da mão, eu desbravaria lugares inimagináveis. Afinal, o município era o mais lindo do planeta. Exagerou.

Agradeci a gentileza e a disponibilidade, mas no momento, viajar era impossível. O meu emprego era também a minha corda. Pensei que a coisa estava resolvida. No entanto, o homem continuou a enaltecer o seu lugar do coração — seu lugar sagrado. Bem ufanista à maneira de um Policarpo Quaresma. Exaltava com vigor tropical a vegetação, a agricultura e a botânica local. Que o solo era fértil, o sol uma grandiosa fonte energética, a água uma perenidade milagrosa e o céu o mais admirável do planeta. Pena que a grana era curta para investir em peso em seu sítio para plantar, colher e lá viver até o último suspiro.

De toda aquela verborreia proferida, gravei apenas a palavra céu. De imediato me veio à lembrança de um cenário, quando da minha rápida passagem por Guadalupe. Um panorama nunca antes visto. Foi assim: ainda em Floriano, subi na carroceria de uma Pampa, e segui para a cidade do motorista de aplicativo que me conduzia. O dia desmaiava, as nuvens púrpuras já se dissipavam e a noite caía mansa. À mercê da Pampa, com o pomo-de-adão apontado para o alto, vi um céu demasiado de estrelas.

Parecia um tapete repleto de pontinhos luminosos. A minha visão binocular não estava enganada. Eu ali, também de origem sertaneja, deixava meus olhos se perderem na imensidão iluminada. As estrelas, de tão próximas, davam a impressão de poder tocá-las sem muito esforço. Contemplava todo aquele espetáculo estrelado como se tivesse diante de uma aurora boreal. Falei para o motorista sobre essa experiência ímpar: “olha amigo, as estrelas a caminho da sua cidade, me sorriram, melhor, elas gargalharam para mim”. Comovido, ele me respondeu: “é, por aquelas bandas, tudo é lírico”.