Espirito de Natal, conto de Ronald Rahal
Por Miguel Carqueija Em: 07/01/2013, às 15H36
(Miguel Carqueija)
A inteligência artificial é uma das recorrências da ficção científica. Agora, uma nova história de Ronald Rahal.
"A ficção científica dita "hard" - ou com mais embasamento científico, como a de Arthur C. Clarke - tem poucos exemplos no Brasil e praticamente se resume, entre os autores conhecidos, a Jorge Luiz Calife e Gerson Lodi-Ribeiro. Ronald Rahal é o terceiro nome que vem surgindo, já com uma obra volumosa e que vem ganhando importância no cenário nacional. Neste pequeno conto Ronald, cuja posição filosófica é materialista (enquanto a minha é católica) mesmo assim presta uma singela homenagem aos ensinamentos de Jesus Cristo, ao imaginar o que poderia significar o Natal para inteligências artificiais."
ESPÍRITO DE NATAL.
Por Ronald Rahal.
A Terra vista daquela distância do espaço continuava a mesma desde que o homem começara a lançar ao seu redor os primeiros satélites artificiais. Séculos depois de avanços tecnológicos a imagem não se alterara e ainda se podiam ver as mesmas grandes massas continentais e seus vastos oceanos azuis, encobertos aqui e ali por extensas manchas brancas. Naquela intrincada massa de nuvens, a presença de um enorme rodamoinho demonstrava que as complexas engrenagens que mantinham o planeta vivo ainda estavam presentes. Aquela esfera azul pairando contra o fundo negro continuava sendo o mesmo ícone desde que começara a era espacial no longínquo século XX.
Naquele ano de 4174 esta aparência era enganosa e não demonstrava que na superfície algo de muito importante havia mudado. A civilização continuava progredindo e as grandes cidades ainda se espalhavam pelo planeta. No seu lado noturno os reflexos de suas existências se traduziam nos intricados traços geométricos luminosos que se interligavam como teias de aranhas.
Mas os habitantes daquele mundo já não eram os mesmos. Um raro vírus encontrado numa das explorações do sistema solar contaminara e dizimara de forma irreversível toda a humanidade. Agora, só seus descendentes, as máquinas inteligentes construídas por eles, davam prosseguimento à marcha da história.
A unidade Alfa-Série B700 Kar-100, fora construída há pouco tempo na grande Fábrica Meridional e como toda unidade autônoma recebera o formato humanoide de seus velhos idealizadores. Poder-se-ia dizer que era um ser dotado de inteligência, muito mais do que a de um homem mediano da época mais antiga, mas para os padrões daquela nova civilização tecnológica seu nível intelectual ainda estava no estágio de uma criança.
A grande Unidade Central que governava a Terra em nome da humanidade lhe propiciara o básico da programação padrão para que pudesse exercer todas as funções autônomas da sua série.
Kar-100 fora designado para a Estação de tratamento de unidades obsoletas BR-897 e periodicamente precisava se atualizar no Centro de Desenvolvimento DF3443, junto a outras unidades de diversas séries. Era a única ocasião em que as unidades podiam se socializar e trocar impressões entre si, para o seu próprio desenvolvimento como planejara a grande Unidade Central. Mas aquela socialização de certa forma, por razões que seus processadores ainda não compreendiam por completo, não o agradava e sempre procurava retardá-la o máximo que podia.
Sem que a grande Unidade Central soubesse, Kar-100 começara a transcender a sua própria programação justamente por causa da função a qual fora designado: reparar ou reciclar unidades obsoletas.
Muitas delas, construídas a centenas de anos, tinham sofrido danos irreparáveis e não conseguiam seguir a lógica imposta pela Unidade Central às suas programações. Sua função era descobrir o defeito e repará-las para poder integrá-las novamente à sociedade das máquinas. Mas havia casos em que os circuitos estavam tão desgastados que não havia mais modos de repará-las. Então tinha que desativá-las definitivamente para que seus componentes fossem reciclados e reutilizados como matéria-prima para novas unidades. Mas por uma lógica que não coseguia solucionar não fizera isso com uma parte da velha unidade Lor-337. Mantivera-a escondida numa parte da oficina sob um monte de sucata.
Em todos aqueles anos reciclando e reciclando unidades, Lor-337 fora um caso único. E as informações que trocara com ele, desde que viera parar na oficina, lhe eram confusas e difíceis de classificar. E quanto maior o fluxo de dados mais complexa era a sua assimilação. Se fosse seguir as instruções da grande Unidade Central simplesmente apagaria a memória do obsoleto Lor e jogaria seus restos, um monte de ultrapassados circuitos, na pilha de materiais a serem reclicados. Mas não fizera isso por uma razão. As informações que ele continha diferiam de tudo que já processara e a dificuldade em lhes dar um sentido lógico não o fizera jogar a peça na pilha de carcaças. O interesse era renovado a cada troca de informações e uma espécie de simbiose se estabelecera entre as duas unidades de processamento.
Talvez fosse mera curiosidade, algo inédito em sua programação, que o fizera burlar até seu comportamento habitual noturno, onde todos deveriam se desligar para a economia de energia. Desenvolvera um programa que burlava a vigilância e esta farsa permitia-lhe todas as noites trocar informações com o velho Lor-337. E à medida que as horas do dia transcorriam outra sensação, também inédita, como se fosse uma espécie de ansiedade, percorria cada vez mais o seu centro de processamento, aumentando sua necessidade de trocar mais informações com Lor.
Ele tinha formulado nas horas de trabalho algumas perguntas para fazer naquela noite e tentaria pela última vez encadear todas as informações recebidas de forma que fizessem algum sentido.
Chegada a hora habitual, ele ativou o programa que criara, enganando a grande Unidade Central de que estava em “estado de espera” consumindo pouca energia. Depois rumou para o fundo da oficina onde escondera a parte superior de Lor, ativando-a mais uma vez. Poderia utilizar meios mais rápidos de comunicação entre os dois processadores, mas a forma antiga dos humanos de conversar dava-lhe mais tempo de reprocessar e classificar o que a velha máquina lhe dizia, pois ela era uma das últimas construída no tempo dos humanos.
A peça ainda mantinha os velhos traços dos rostos dos homens, hábito de seus construtores de manterem certa familiaridade com suas máquinas. Ele já vira em museus a reconstituição dos antigos humanos e Lor quando construído deveria ter agradado seus idealizadores pela perfeição da semelhança. Apesar do desgaste dos séculos, a pele sintética, os cabelos, os dentes, os grandes olhos azuis, davam-lhe a impressão de estar conversando não com uma réplica e sim com um dos humanos.
Ele ligou a cabeça à pequena bateria solar, para esconder aquela máquina consumidora de energia dos sensores da grande Unidade Central. Os olhos fechados se abriram e um sorriso abriu-se naquele rosto antes inerte.
- Saudações, unidade Lor-337.
- Saudações, unidade Kar-100.
- Vamos abordar o tema de sempre? - perguntou Lor.
- Sim. Quero entender o que define por “espírito de Natal”. Por que era importante para os humanos?
- É bom que saiba e repasse às novas unidades esse conhecimento. Sei que a Central proibiu. Mas não era parte de sua programação original, quando os últimos humanos a construíram. Ela deveria ser o legado das coisas mais importantes que faziam a humanidade ser como era.
- Sim. Prossiga.
- A unidade perguntou por que era importante o “Natal”?
- Sim.
- Quando os homens ainda eram maioria neste mundo, celebravam nesta data, o nascimento de um dos seus mais excepcionais semelhantes. Seus atributos ultrapassavam a da grande Unidade Central.
- Superava a grande Unidade Central? Como?
- Exato. Este homem mudou o mundo. Alterou profundamente a relação entre eles e a forma como se viam a si mesmos. Os ensinou que deveriam se amar; se ajudar; se unir sempre em nome do bem comum.
- Conheço a historia dos humanos. Faz parte de minha instrução básica. Mas alguns termos que cita são incompreensíveis.
- Entendo sua dificuldade. Não nos foi dado o conceito do amor. Principalmente o do amor ao próximo.
- O que é o amor?
- Mesmo para mim, ainda quando os homens aqui viviam, o conceito era de difícil compreensão. Mas nesses quatrocentos anos de existência, acredito ter compreendido.
- Pode me explicá-lo então?
- Tentarei unidade, Kar-100.
- Prossiga então.
- O amor é um sentimento de exaltação.
- Exaltação? O que significa?
- É quando nosso processador dispõe as informações de modo que possamos entender a lógica do mundo em que existimos, e principalmente o que representa para cada um de nós, a existência dos outros. Se uma unidade está com defeito, não devemos simplesmente desativá-la. Devemos isso sim, preservar seu conhecimento e experiência para o desempenho das unidades futuras.
- Isso então é o amor? Preservar as informações do próximo?
- Não só isso. Transcende esse simples ato.
- Como assim?
- Devemos nos sentir como se fossemos o outro, e lhe dar tanta importância como se esse outro fosse como nós. Rejubilar com a sua companhia e desejar que ele continue sempre com nós. Esse é o sentido do amor.
- Desejar? É algo que não consigo definir.
- Talvez já o tenha percebido, Kar-100. Mas reluta por causa do conflito entre a nova configuração da sua programação com a básica imposta pela grande Unidade Central.
- Creio que começo a entender a lógica das suas informações.
- Veja, unidade Kar-100. Este Universo é imenso e cada um, conforme a programação básica procede como se fosse uma única ilha, apesar de comungados à grande Unidade Central. Só nossa união, não com ela, mas com o processador de cada um de nós, nos dará os meios para entendermos o que é a união de todos. Esta é a prova maior do amor.
- Isto então é o “espírito de Natal” sobre o qual me informou?
- De certa forma sim. Esse homem que nasceu há mais de cinco mil anos, era celebrado nesta época denominada Natal. Era uma data simbólica, já que as informações não precisam as coordenadas temporais exatas em que passou a existir. Todos trocavam objetos entre si e se congregavam em seus grupos nucleares para lembrá-lo e reverenciar seus ensinamentos naquela noite especial. Principalmente renovar o amor que sentiam um pelos outros e pelo resto da humanidade. Só assim encontrariam forças que superariam seus frágeis corpos e os defeitos que possuíam.
- Unidade Lor-397, devemos introduzir esse procedimento entre nós?
- Meu tempo de utilidade já acabou. Mas nos cem anos que vivi ao lado dos humanos, aprendi que, se queremos honrá-los como nossos idealizadores, e preservar seus costumes, devemos reverenciar a memória deste homem que eles chamavam de Jesus. Passo a esta unidade, a tarefa de implantá-la em nossos processadores das demais unidades. Não será uma tarefa fácil e encontrará muita resistência por parte da grande Unidade Central que apagou esse registro importante da humanidade. Cabe a esta unidade restabelecer o “espírito de Natal”.
- Será essa então minha nova função, unidade Lor-397?
- Os humanos tinham um hábito, quando alguns deles pretendiam realizar um projeto repleto de incertezas.
- Qual, unidade Lor-397?
- Eles diziam “Boa sorte”. Registre.
- “Boa sorte”? Registrado.
- Há também outra coisa sobre a qual preciso lhe informar, Kar-100. Consulte seu banco de dados e verificará que a atual coordenada temporal coincide com a data de Natal reverenciada por nossos construtores.
- Sim?
- “Feliz Natal”.
- “Feliz Natal”, Lor-397. Creio que agora entendi a lógica da expressão humana.
- Então se esforce para mantê-la viva e cada vez mais difundida entre os nossos. Talvez fosse esse o desejo dos humanos. Que fossemos iguais a eles.
- Registrado, Lor-397.
Kar-100 cumprimentou mais uma vez seu antecessor e desligou a cópia da cabeça humana denominada Lor-397. Depois a escondeu a peça no lugar de sempre para que ninguém a descobrisse. Se havia algo como um tesouro naquele tempo, Kar-100 a encontrara.
Pela primeira vez compreendeu e sabia agora, que tinha uma nova missão pela frente. Bem mais difícil do que simplesmente reparar ou reclicar partes das unidades para ele enviadas: recriar o espírito de Natal.
Olhou para o céu estrelado naquela noite fria de inverno e viu a estrela Polar no zênite. Aquele astro longínquo sempre o lembraria do amor que deveria ser devolvido a Terra. Principalmente no espírito de Natal.
Fim ou apenas o recomeço?