(Miguel Carqueija)

Nesta história, penetramos no tenebroso universo da violência doméstica e da pedolifia:

ESPERANDO PAPAI


Eu afagava Penumbra, o nosso querido e tranqüilo labrador de pelos tão lustrosamente negros e sedosos. Sarina, vestida como um moleque, de calça comprida com suspensório, mastigava uma mariola e olhava pela janela por trás das cortinas, sem afastá-las, limitando-se a uma nesga de visão. Então ela olhou para mim, muito séria, e perguntou:

— Você acha que o papai virá hoje, mamãe?

— Esteja tranqüila, querida. Se ele vier, desta vez eu estarei preparada.



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O meu rosto afogueava quando eu recordava as cenas de terror, de escândalo e de violência que marcaram o meu casamento, a princípio paulatinamente, depois num crescendo, quando o álcool e outros vícios destruíram todo o estofo moral que Mário um dia tivera ou fingira ter.

Tínhamos ido morar longe da minha família e, devido ao constrangimento ou verdadeiro tabu que envolve as mulheres vítimas de violência doméstica, eu não conseguia dizer o que se passava nas comunicações que mantínhamos. Era vergonhoso, abjeto. Por vezes eu sonhava aprender caratê, capoeira, qualquer coisa que permitisse defender-me dele. Era impossível, porém: não me restavam dinheiro e nem liberdade. Eu fôra forçada a largar o meu emprego de secretária; ele jamais me permitiria freqüentar uma academia.

O fato é que, na sociedade, ele gozava de bastante prestígio, quanto mais não fosse pelo seu “status” de professor universitário, frequentemente homenageado pelos alunos... mas com o tempo, a bebida e a cocaína o tornaram inconstante e inconfiável e uma diretoria incomodada o constrangeu a requerer precocemente a aposentadoria.

O caldo entornou, porém, em definitivo, quando ele começou a olhar para Sarina. A menina estava com nove anos e, segundo o personagem-narrador de “Lolita”, as ninfetas começam nessa idade. É infame e nojento, que um barbado e coroa olhe dessa maneira para uma criança. Esse era o meu pavor: eu já me afastava dos amigos há anos, pois Mário não queria que eu tivesse amizades. Não saberia a quem pedir ajuda. Mário era forte e brutal e quando se zangava não me faltavam os hematomas.

A mulher oprimida pelo marido vive em estado de constante medo e humilhação. Tem vergonha de pedir ajuda, de admitir a outrem o que lhe acontece no dia-a-dia.

Um tabu incrível!

Eu tive de tomar coragem quando ele começou a afagar a menina, a incomodá-la de um jeito que o carinho de um pai não podia justificar. Um dia eu não me contive e falei:

— Por favor, largue a minha filha.

— Qual é o problema? Ela é a minha filha também.

— Justamente, ela é a sua filha, você deve respeitá-la.

— O que você quer dizer com isso? Não me chateia!

— Mário, você agora vive afagando a menina! E em locais...

Aquilo me valeu mais hematomas, e minha filha ficou cada vez mais apavorada. Eu já não tinha coragem de deixá-la sozinha com o pai. Ameacei fazer um escândalo, falar com todas as pessoas que eu conhecia. Se isso o segurou um pouco, não evitou que fizesse terríveis ameaças:

— Se está pensando em se separar de mim, perde o seu tempo. Eu te mato se você fizer isso. Eu tenho conhecimento com a polícia, portanto nem pense em dar queixa de mim.

— Você não pode fazer tudo o que quer — falei, com uma firmeza que me surpreendeu. — Ainda tenho amigos e parentes, ainda existe polícia honesta, juízes...

— Experimenta — falou ele, rindo, mas a minha filha se abraçou a mim e disse:

— Deixa a gente em paz, papai. Por favor.

O telefone tocou. Ele atendeu, era algum colega chamando para a gandaia. Era o tipo de convite que ele já não costumava recusar e agora eu tinha até medo de pegar alguma doença ruim. Ele se trocou e se perfumou rapidamente e falou entre prepotente e zombeteiro:

— Conversamos quando eu voltar.


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Foi preciso deixar quase tudo para trás. O senso de urgência tomou conta de mim e mesmo de minha filha, amadurecida pelo perigo e pelo sofrimento. Eu sabia que ele tornaria de madrugada e antes disso já rodávamos com um taxista amigo e duas malas. Aproveitei para bloquear o meu cartão magnético, que estava sob a posse dele.

Gilmar, por amigo que fosse, não acreditava totalmente no que eu dizia:

— Mas você tem certeza? O Mário não faria isso com a própria filha!

— Gilmar, ele me espanca! Será que isso não é o bastante?

— Bem... você sabe que os amigos não podem se meter nas brigas de casais... nem quero que ele saiba que você me chamou...

— Gilmar, pelo amor de Deus! Não há briga de casal! O que há é covardia pura!

Eu não podia confiar nos amigos comuns. Se Gilmar ficasse sabendo de meu paradeiro talvez até desse a dica ao Mário, achando que com isso iria contribuir para a “reconciliação” do casal.

Foi por isso que eu e Sarina ficamos na entrada de um hotel e, após despachar o amigo, peguei minha filha e partimos nós duas, sem destino. A primeira coisa foi tomar um ônibus que nos levou para o outro lado da cidade, onde procurei uma amiga a quem não via há anos. A minha idéia era levantar recursos que permitissem a nossa sobrevivência e tocar para a frente. Eu decidira resistir, proteger a minha filha a todo custo.

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Érica ficou surpreendida quando nos viu e acolheu-nos com bondade. Ela morava com a mãe, Cláudia, a quem eu conhecia.

Mas enquanto tomávamos um café com bolo e eu desbobinava a minha triste história, as feições de mãe e filha se tornavam cada vez mais fechadas.

— Vocês devem sair da cidade — disse afinal Cláudia.

— E o quanto antes — acrescentou Érica.

Eu estava me sentindo desesperada e procurei mostrar tudo o que me vinha à mente:

— Será que ninguém pode nos proteger? Não posso pagar passagens de avião e as estradas estão perigosas. Desde que as Hordas envolveram os perímetros das grandes cidades, é temerário viajar.

— Você sabe que as pessoas viajam assim mesmo — ponderou a minha amiga. — É mais perigoso permanecer por aqui.

— Mas vocês não podem me abrigar por um tempo? Vou ter que recomeçar a minha vida, e isso não será fácil!

— Fiquem essa noite aqui.

— Érica, não podemos — disse Cláudia.

— Mamãe, já é muito tarde. Deixa elas ficarem essa noite. Glória, me desculpe, mas o seu marido tem ligações com a polícia e eu não quero riscos para a minha mãe.

— Nós não somos criminosas — interveio Sarina, surpreendentemente. — Mamãe e eu estamos fugindo.

— Sarina... — balbuciei.

— É melhor irem para alguma cidade praieira — continuou Érica. — Ainda se consegue algum trabalho na área de turismo e os legionários não são tão numerosos por lá.

Naquela casa havia um quarto vago nos fundos. Não havia camas, entretanto. Érica forneceu dois colchonetes que a gente estendeu no chão. Já a sós, sob a luzinha de um abajur, Sarina e eu conversamos. Eu tinha os olhos vermelhos de choro e minha filha tentou me consolar:

— Mãezinha, não chore por favor. Nós vamos sair dessa!

— Eu queria poder te proteger... você vai ter que sumir da escola... separar-se dos colegas... por que isso, meu Deus?

— Mamãe, nesse momento é mais importante a nossa segurança. E depois que derrotarmos o papai, voltaremos à nossa vida normal!

Por alguns instantes eu quedei perplexa ante a maturidade, a coragem e a inteligência reveladas pela minha filha. Afinal, se uma criança de menos de dez anos podia assumir tal atitude, por que é que eu, uma mulher adulta e experiente, me deixava cair na depressão e no fatalismo?

Mário se tornara nosso inimigo mortal, conquanto fosse pai e marido. Esse fato, de per si muito simples embora cru e chocante, havia sido plenamente absorvido pela Sarina. A minha querida pirralha possuía uma forte personalidade; mais forte, com certeza, que a minha.

Foi como se Deus houvesse colocado uma luz em meu espírito atormentado. Eu não seria mais uma coitadinha, apavorada e perseguida. Eu lutaria.

Nós duas lutaríamos.


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Haviam-se passado quase dois meses. Por meandros obscuros e amigos e parentes que nem conheciam meu marido, e que não me viam há anos — e, em alguns casos, sequer conheciam a minha filha — eu me vi numa espécie de esconderijo, um velho farol abandonado numa praia esquecida de uma cidadezinha pachorrenta e adormecida. Usava um nome falso e chamava a Sarina de Teresa, nada que fizesse lembrar. Meus cabelos e os dela agora eram curtos e tingidos de preto. Não queríamos facilitar as coisas para o nosso adversário.

Nossa situação, claro, era precária. Algumas pessoas sabiam que uma mulher e uma criança moravam no farol, mas isso era coisa comum em nossos dias; pelo país afora milhões de indivíduos moravam em imóveis abandonados e invadidos. Com um pouco de criatividade era possível viabilizar a existência em tais lugares, com muito mais chance de sucesso que nas narrativas de náufragos de Júlio Verne e outros autores. Eu pegava os serviços que podia (até faxinas) e que estivessem ao meu alcance, desde que pudesse levar a menina comigo. Raramente a deixava sozinha, e mesmo assim arranjara dois celulares que via de regra usávamos somente para nos comunicarmos. Por fim, recolhi da rua o Penumbra, que se afeiçoou completamente por nós duas.

Já não estávamos completamente sozinhas.

Acredito que muitas pessoas não conseguem compreender o constrangimento, o tabu que sofre uma pessoa diante de ameaças físicas. Como eu posso dizer a alguém que estou sendo ameaçada? Que o meu próprio marido me ameaça e também ameaça a nossa filha? É vergonhoso, como se eu é que fosse culpada de tal coisa. É essa a vergonha íntima que inibe um cidadão de pedir ajuda perante os perigos. É o medo da descrença, da indiferença (para que contar, se essa pessoa não vai fazer nada para me ajudar?), o temor de piorar as coisas envolvendo terceiros. Não saberia definir ao certo esse tabu; mas ele existe e é poderoso.


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Apesar de tais inibitórios eu falara com o Padre Marcelo, confessor de Sarina, e este afinal facilitara a nossa fuga para o balneário. Eu sabia, além disso, que precisava de defesa jurídica para que Mário não me tomasse a menina. E esse era o meu calcanhar-de-Aquiles: eu sabia que o meu inimigo iria me descobrir assim que uma audiência preliminar fosse marcada. Por um lado, eu não podia deixá-lo transformar-me em ré, em raptora de minha própria filha, e para isso devia contra-atacar pela Justiça. Mas aí seria fácil para ele — nem que precisasse subornar alguém — descobrir a nossa localização.

Eu estava contando com o gênio violento de Mário. Pelo que eu sabia do seu caráter, Mário não conseguiria aguardar os lentos trâmites judiciais. Era um homem violento, com as costas quentes, e queria violência.

Ele viria ao nosso encontro.


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A noite caía e um formigamento na ponta dos dedos parecia me alertar de alguma coisa. A audiência estava marcada para dali a três semanas. Ocorre que na noite anterior Mário finalmente me telefonara. A liminar que eu obtivera, garantindo-me a posse da menina até a audiência, não parecia tê-lo impressionado: mesmo assim ele tentara a melifluidade para me convencer:

— Por que nós não fazemos as pazes, amor? Nós somos uma família, afinal de contas!

— Nós fomos uma família.

— Podemos voltar a ser. Se não fosse esse seu gênio...

— Por Deus! Como pode dizer isso depois de tanta violência contra mim?

— Não diga uma coisa dessas. Nós podemos passar um apagador em tudo, inclusive nas suas cenas histéricas.

— Pare com isso, Mário. Você sabe que a Justiça pode obter as gravações dos telefonemas e é por isso que está se fazendo de bonzinho!

— Você não pode privar uma criança do seu pai!

— Se o pai é um celerado, separar vocês é a minha obrigação!

— Você pode se arrepender disso. Algum dia, depois de alguns anos, quando cair em si...

A segunda parte da sua fala era só para inglês ver. Ele escandira o verbo “arrepender”. Havia naquilo tudo uma velada ameaça, que ele não explicitaria ao telefone.

Eu estava certa de que ele agora conhecia o meu endereço, o meu refúgio. Embora eu contasse com a lei de usucapião, que eventualmente poderia me favorecer, não pretendia passar o resto da minha vida num farol e sabia de resto que Mário poderia me denunciar como invasora de propriedade alheia. Se já não o fizera teria relação com a decadência dos tempos modernos, assolados pelos sem-terra, sem-emprego, sem-previdência, sem-tudo. Um mundo onde a sociedade organizada reduzia-se a bolsões civilizados cercados por hordas de todos os lados. Como a Justiça iria se incomodar com um farol esquecido e abandonado, sem uso há décadas e ocupado por uma mulher e uma criança?

De resto, Mário preferia a violência direta.



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Havia uma grande vantagem no refúgio que eu escolhera: por estranho que pareça, o seu isolamento. Alicerçado em pedras numa nesga do continente que se metia no mar, o farol era um mirante de onde eu podia observar quem chegasse. Uma cerca de tela com portão gradeado emprestava alguma segurança e, como não pudéssemos ficar o tempo todo de atalaia, eu instalara dois pequenos robôs nas duas janelas estratégicas, com a missão de alertarem qualquer aproximação. Com isso eu havia adquirido uma dívida considerável e a minha margem para novos empréstimos reduzira-se a pouco mais do que nada; mas as razões de tal procedimento eram poderosas. Eu sabia com quem estava lidando.



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Aconteceu naquela noite.

Os robôs, Hélio e Belerofonte (nomes escolhidos pela minha filha) acionaram as campainhas internas, avisando-me de presenças suspeitas. Eu estava deitada insone, e Sarina, na outra cama — por maior precaução, dormíamos no mesmo quarto — encontrava-se num sono de anjinho. Mal ouvi o toque das campainhas, levantei-me num átimo e corri, de camisola, à janela mais próxima. Pude então ver três homens que se aproximavam, tendo deixado um automóvel para trás. Na escuridão da noite, onde felizmente havia luar, dava para perceber que os três usavam máscaras. Só que um deles era inequivocamente Mário; eu o reconheceria pelo porte, a um quilômetro de distância. Era, inclusive, mais corpulento que os outros dois.

O covarde não quisera vir sozinho, sem dúvida por ter notícia das minhas companhias. O Penumbra corria talvez mais perigo do que eu e Sarina: eles com certeza o matariam. E mesmo isso já me revoltava as entranhas.

Liguei meu celular e tentei alertar qualquer pessoa amiga; de início o Padre Marcelo. Em várias tentativas, porém, só consegui estática. Provavelmente haveria uma antena bloqueadora de celulares no carro, tipo de equipamento privativo das forças armadas e policiais. Mais uma vez, o dedo de Mário; e os invasores já se esgueiravam pela parede granítica do meu esconderijo; e portavam inquietantes bastões.

Dei uma corrida até o quarto e sacudi a Sarina.

— Mamãe...

— Acorde, querida. Ele está aí fora e tem dois capangas. Chegou a hora em que a gente vai lutar pela vida!

A garotinha pulou da cama, eletrizada e sem nem pensar em trocar o pijama de tigres e ursinhos Pooh por qualquer outra roupa. Corremos para as janelas, já escutando as batidas violentas na porta. Ele não pensava em entrar sorrateiramente e com certeza achava que poderia, pelo terror, convencer-me a abrir. O perigo ainda não era imediato porque a porta era resistente, mas eu tinha certeza de que eles vinham preparados para ultrapassar os obstáculos.

— Não entre em pânico, querida. Vai, esquenta as panelas de água, depressa!

Ela correu e eu, sem tirar os olhos dos intrusos, escutei as batidas de seus pezinhos no chão, de mistura com os latidos do Penumbra. Lá de baixo veio a voz autoritária e grosseira de Mário:

— Glória, abre a porta! Sou eu, o teu marido! Vim conversar com você!

— E por que não veio sozinho? — gritei em resposta.

— Você sabe que é perigoso andar sozinho nessas bandas, a essa hora. Abre!

— Eu sei que é perigoso! É por isso que eu não vou abrir.

— Abre, sua meretriz! Vai ter que abrir!

— E se eu não abrir?

— Nós vamos entrar de qualquer maneira!

Eu precisava ganhar tempo.

— Não posso abrir para esses dois estranhos! Manda eles embora!

— Você abrirá só para mim?

Não é fácil pensar depressa numa situação dessas. Eu não tinha a mínima intenção de abrir, mas também detestava mentir — ainda mais numa negociação. Tudo o que eu queria era dar tempo à minha filha.

— Eu não sei! Eu vou pensar!

Ele gritou vários palavrões coléricos, lá de baixo. Prosseguiu martelando a porta com os punhos, provocando mais latidos de Penumbra.

— Prende esse vira-latas! — gritou Mário, já quase possesso.

— Mamãe! Aqui está!

Sarina trouxe tudo numa mesinha de rodas. Precavida, eu arranjara esse móvel para evitar que a minha menina, com pressa de me atender, se queimasse.

— Não vou abrir, já resolvi! — gritei bem alto.

Mário fez sinal para os seus cúmplices, equipados com pés-de-cabra.

— Façam o serviço — consegui escutar, embora ele já falasse em voz baixa.

Meu principal inimigo se afastou para assistir. Lamentei tal fato, mas tinha que começar a agir. Eu e Sarina colocamos as duas panelas sobre o peitoril, cuidadosamente. Eu olhei, já escutando o ruído da porta sendo atacada. E fiz um sinal positivo. A janela era bem sobre a porta, dez metros acima...

Despejamos a água fervente — e escutamos os urros de dor e as maldições.

— Boa, mamãe! — falou Sarina, entusiasmada.

Espiei para baixo. Dois vultos se escafederam aos uivos de desespero. Infelizmente, nenhum deles era o homem certo.

Lá de baixo, Mário fez uma “banana” para mim. Tive vontade de botar-lhe a língua, mas isso seria puerilidade; e aquela situação era séria demais, era questão de vida ou morte.

Ele se afastou um pouco, olhando bem para cima na expectativa de outra descarga de água em ebulição, e retirou uma arma negra de um coldre. Os dois capangas, pelo que eu entendi, não retornariam: necessitavam cuidados médicos. Queimaduras graves podem causar desidratação, septicemia, caso vocês não saibam. Eles deveriam estar a par disso; de resto queimaduras de água fervente doem à beça.

Sarina e eu escutamos os tiros: Mário tinha acabado de arrebentar com a nossa fechadura tipo papaiz.

Era agora ou nunca!

O farol possuía uma escada em caracol e eu sabia que seria possível observar a subida do intruso pelo poço. Não queria arriscar o meu cão, mas dispunha ainda de dois recursos contra os quais dificilmente Mário poderia prevalecer naquela circunstância. Eram os meus robôs, que eu programara para descerem os degraus correndo. Eles eram maleáveis, bem articulados. Tudo o que eu tive de fazer foi digitar o controle adequado em suas costas e trancar o sistema, que exigia para sua abertura uma senha que somente eu e Sarina conhecíamos. Em outras palavras, o biltre não lograria desligá-los.

E lá se foram Belerofonte e Hélio, correndo em trote de autômatos, escada metálica abaixo. Não havia nenhuma agressividade naquela movimentação; apenas, eles não estavam programados para se deter diante de obstáculos humanos.

Do alto da escada, pelo poço de caracol dela pudemos assistir o resultado. Mário com certeza não tinha medo de robôs; ninguém tinha porque a sua inofensibilidade, garantida pelas Três Leis, era universalmente conhecida. Ao vê-los descendo a escada lado a lado — e não existia largura para três pessoas — gritou que parassem. Mas não era possível interromper a programação e para maior segurança, por idéia de Sarina, eu desligara os circuitos auditivos. É claro que o resultado foi desastroso para o meu querido esposo: atropelado e pisoteado pelos meus servos mecânicos. Agradeci mentalmente aos nossos anjos da guarda, a Karel Capek, Eando Binder e Isaac Asimov. Hélio e Belerofonte simplesmente parariam lá embaixo, cumprida a programação, e aguardariam, impassíveis, por novas ordens.

Com pisões e hematomas, o nosso inimigo se levantou, praguejando e cuspindo sangue. Sua arma havia sido visivelmente entortada; ele testou-a e verificou a impossibilidade para novos tiros. Furibundo, possesso, retirou um punhal de uma bainha em sua cintura.

— Agora chega! Terminaram os seus truques? Você verá agora!

Ele parecia, mais do que nunca, determinado a irrogar a sua vontade pervertida sobre nós.

Para enfrentar a situação eu tomara diversas providências e arranjara diversos equipamentos, como os dois robôs. Por infortúnio não pudera obter uma arma de fogo. Peguei um extintor de incêndio, disposta a manter o agressor a distância.

— Sarina, entre depressa no quarto!

— Mamãe...

— Leve o Penumbra e solte-o assim que achar melhor. Eu não quero que ele seja esfaqueado! Seja oportunista, solte o Penumbra no momento certo!

Ela puxou o cachorro e encostou a porta — que fôra equipada com uma janelinha — bem a tempo. O antagonista havia chegado.

— Entregue a menina, sua meretriz — disse ele com a voz cavernosa, terrível.

— Você terá de passar sobre o meu cadáver, Mário. A minha filha eu não entrego.

Latidos de cachorro. Eu deixara o labrador como último recurso para proteger a minha filha, se eu própria tombasse. No íntimo do meu ser, porém, eu estava disposta a lutar até a última gora de sangue. Sentia dentro de mim uma coragem fria e estóica, quando a proximidade daquele troglodita deveria bastar para me por em completo pânico; mas eu ultrapassara aquele limite e, naquele momento, creio que já não temia coisa alguma. Ou não queria temer.

Ele riu, zombeteiro, diante da minha arma, e investiu com o punhal. Eu acionei a descarga do extintor de CO2. O ruído e a espuma, porém, não seriam suficientes para detê-lo e eu sabia disso; apenas queria distraí-lo.

Ele arremeteu sem enxergar direito, a lâmina resvalou no objeto metálico e eu, apesar do peso incômodo, mandei o extintor contra o seu corpo. Ele vacilou e eu golpeei a sua nuca, num golpe de caratê, a mão espalmada. Foi uma surpresa e tanto: naquelas poucas semanas eu aprendera um pouco de defesa pessoal.

Mário praguejou e tentou me encurralar; eu corri para junto da parede envidraçada, buscando mantê-lo longe de minha filha. Foi quando Sarina abriu de sopetão a porta e o cachorro avançou. Atrás vinha Sarina, com uma vassoura.

Mas não seria fácil tarefa derrotá-lo. Penumbra pulou em suas calças e mordeu para valer, mas ele deu uma estocada que resvalou na omoplata do meu mastim. Mário chutou o cão e a menina, num assomo de valentia, atingiu-o no estômago com o cabo da vassoura. Sarina pôs-se ao meu lado, com o rosto transbordando da determinação de lutar comigo até a morte. O monstro avançou — e, Cristo, pareceu-me vê-lo babar como um animal hidrófobo. Ele segurou novo golpe de Sarina com a vassoura e afastou-a do caminho; eu pulei sobre ele e acertei-lhe outra cutelada, agora em seu rosto, mas a faca veio em meu braço, rompendo o tecido de “nylon” e eu senti uma dor lancinante, pois até o osso fôra atingido. Evidentemente, meu caratê ainda era muito amador. Recuei com o sangue derramando de meu braço; e julguei-me perdida quando ele tornou a avançar. Nesse ponto porém um vulto negro como que varou o ar e impactou contra o atacante, desequilibrando-o sobre o vidro.

O ímpeto de Penumbra, num assomo da fera atávica, foi tão terrível que Mário atravessou a vidraça e mergulhou no vazio, acompanhado por um grito horroroso. O meu cachorro, pela graça celeste, não o acompanhou na queda fatal e nem se machucou nos estilhaços do vidro. Trêmula, enlacei Sarina em meus braços e fomos até a janela espiar lá para baixo, para o corpo de Mário: um cadáver, uma vítima de sua própria maldade.

— Nós vencemos, mamãe — disse a minha filha, enquanto o Penumbra nos festejava, abanando o rabo alegremente.

E Sarina não tremia.