Esperando Godot... e o futuro
Por Marcelo Martins Eulálio Em: 07/07/2025, às 08H37

Esperando Godot... e o futuro
[*Marcelo Martins Eulálio]
Numa decisão que mais pareceu um puxão de orelha em crianças birrentas (Decisão conjunta ADI 7827, 7839 e ADC 96), o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu os efeitos dos decretos presidenciais que majoravam o IOF e também o decreto legislativo que havia sustado tais medidas. No jogo de empurra entre Executivo e Legislativo, o Judiciário entrou em campo para dizer: “chega”.
Suspendeu-se uma coisa, suspendeu-se a outra. No mundo jurídico, é como se nada tivesse acontecido. Retornamos ao status quo ante, ao passado. E o ministro determinou: que os Poderes parem de birra e sentem-se para conversar. Como bons irmãos obrigados a dividir o mesmo quarto.
Resta saber se estarão com espírito de diálogo ou se apenas cumprirão tabela institucional. O artigo 2º da Constituição, aquele que fala não só em independência, mas também em harmonia entre os Poderes, foi lembrado como um mantra necessário. E nesse ponto, acertou o Ministro Moraes: cada um no seu quadrado, ou melhor, como em círculos concêntricos que se sobrepõem, onde há uma zona comum de diálogo, de responsabilidade mútua.
É nesse espaço de interseção que se espera encontrar o bem comum.
Robert A. Dahl, em Sobre a Democracia, nos lembra que o futuro democrático dependerá da forma como líderes e cidadãos enfrentarão as dificuldades econômicas, a diversidade cultural, a internacionalização e a educação cívica. Dahl fala de dois pilares: a liberalização, que abre o debate e permite o dissenso, e a inclusão, que traz o povo para dentro da conversa. Dois pilares que pareciam ausentes no embate recente entre os Poderes.
Democracia, afinal, não é sinônimo de justiça, eficiência ou moralidade. Decisões desastradas também podem nascer das urnas. Democracia diz respeito ao como decidir, não necessariamente ao quê decidir.
A democracia que desejamos, aquela que enriquece não apenas cofres, mas consciências, valoriza a transparência, o accountability, o império da lei e, principalmente, a limitação do poder.
Mas eis que, no Brasil, vivemos sob um presidencialismo de coalizão, uma construção institucional peculiar em que o Presidente nem sempre tem base suficiente no Congresso, e precisa negociar, ceder, costurar apoios. Isso exige maturidade institucional. O Executivo deve dialogar com o Legislativo, entender seus limites, reconhecer a necessidade de consenso, buscar equilíbrio fiscal sem atropelar o debate democrático.
Talvez o Executivo devesse ouvir John Locke, que em 1676 já alertava: “Cautela com o imposto sobre o consumo ou outro indeterminado, porque à custa do povo sustenta-se um exército de inimigos da liberdade do povo.” Não se trata apenas de uma advertência contra a voracidade fiscal, mas de um princípio de vigilância contra o uso arbitrário do poder estatal. Para Locke, a tributação sem consentimento, ou sem a devida clareza de propósito, era uma forma disfarçada de tirania. Ele via nos impostos descontrolados um sintoma de governos que se afastam da razão pública e se aproximam da dominação. Ao afirmar que o povo financia seus próprios opressores, Locke nos convida a refletir sobre os limites da legitimidade fiscal. Quando o aumento de tributos deixa de servir a uma finalidade clara, justa e proporcional, como a regulação econômica, no caso do IOF, e passa a ser um instrumento meramente arrecadatório, para cobrir déficits sem reformas estruturais, então estamos diante de um problema democrático.
Um imposto mal justificado, ainda que formalmente legal, pode ser materialmente injusto. E a injustiça tributária, especialmente em países desiguais, não apenas fere a confiança social, mas alimenta o ressentimento, corrói a legitimidade das instituições e compromete o pacto democrático. O aviso de Locke não envelheceu - apenas trocou de cenário: saiu dos salões da Inglaterra do século XVII e ecoa hoje nos gabinetes de Brasília.
Diante da bola devolvida pelo Judiciário, Executivo e Legislativo não podem agir como Vladimir e Estragon em Esperando Godot, de Samuel Beckett - aqueles personagens eternamente parados, esperando por alguém que talvez nem exista, culpando os sapatos por dores nos pés, e justificando sua inércia com silêncios circulares.
Assim é o povo brasileiro: sempre esperando que seus representantes enfim atuem, falem, decidam. Esperando que saiam do palco da encenação e entrem no da responsabilidade. Esperando que deixem de empurrar a democracia para depois. Esperando Godot... e o futuro.
Referências:
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
DAHL, Robert. Sobre a democracia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, 2009 (reimpressão).
LOCKE, John. Ensaios políticos. Organizado por Mark Goldie. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
STF suspende decretos sobre IOF e marca audiência de conciliação. STF suspende decretos sobre IOF e marca audiência de conciliação. https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-suspende-decretos-sobre-iof-e-marca-audiencia-de-conciliacao/. Acesso: 05 de julho de 2025.
Imagem: IA Chatgpt.
*Marcelo Martins Eulálio é advogado, professor universitário e Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí.