Esmeralda Lithia
Por Denise Veras Em: 22/06/2025, às 00H45

É de senso comum a informação de que a esmeralda é uma pedra preciosa de altíssimo valor, cujas peças elaboradas com esse tipo de minério podem ultrapassar a casa dos milhões (de reais ou de dólares).
A combinação de escassez e alto valor fez surgir o mercado paralelo que utiliza o minério hiddenita nas peças. Esse minério é popularmente conhecido como “Esmeralda Lithia”, uma pedra que pode chegar a valer até 100 vezes menos que a gema original.
Como vaidade não é privilégio dos ricos, existe muita gente disposta a sacrifícios para ter pelo menos uma peça verdadeira com que possa se adornar, ou somente para admirar. Todos os dias Holly Golightly tomava seu café da manhã em frente à Tiffany elaborando planos para conquistar um milionário que lhe oferecesse o que ela tanto ansiava: the ring to knock them dead – um anel de matar ou um anel de arrasar.
Nem todos somos belos e engenhosos tal qual a personagem de Audrey, por isso há uma boa parcela de pessoas que opta por pedras menos valiosas. O problema é quando se compra uma peça falsa por verdadeira.
Quem me acompanha sabe que recebi o meu diagnóstico TEA há pouco tempo. O que significa dizer que ainda estou me entendendo, tentando identificar o que é traço da minha personalidade e o que é derivado da condição. Apenas quem se descobriu no espectro já na fase adulta sabe que esse é um dos muitos desafios que enfrentamos.
Apesar dos obstáculos serem diversos, alguns são piores do que outros, e para mim o pior deles tem sido lidar com uma comunidade falso inclusiva, tal qual a hiddenita.
A sociedade avançou bastante no quesito legislação. Acredito que os deficientes e pessoas autistas nunca foram tão bem amparadas pela lei, mas infelizmente isso não é suficiente. Ouso dizer que essa é a parte mais fácil.
Para aprofundar o debate – porque não me apetecem discussões rasas – convido meu leitor a imergir comigo no conceito de “Tokenismo”. Uma expressão que vem de Token, palavra que significa “símbolo”, em inglês e que se refere à prática de inclusões simbólicas de pessoas pertencentes a minorias ou grupos minoritários.
Apesar da expressão ter sido utilizada pela primeira vez por Martin Luther King em 1962, seu conceito foi desenvolvido na década de 1970 por Rosabeth Moss Kanter, docente do curso de Administração da Universidade de Harvard.
Segundo a autora (1977), os efeitos dessa prática são: a hipervisibilidade, o isolamento e papel estereotipado. O que significa dizer que os tokens são pressionados a ter alto desempenho por serem expostos, são isolados em função da acentuação simbólica e exigidos a atuarem de maneira estereotipada.
É sobre o último efeito que pretendo me demorar.
Via de regra, os autistas têm alta demanda emocional, o que implica dizer que as emoções são mais intensas. Cada pessoa TEA tem uma resposta diferente aos estímulos. Eu, quando confrontada com a hiperestimulação sensorial, entro em espiral no que está me incomodando. Minha cabeça é tomada por pensamentos repetitivos, sempre sobre o que está me incomodando.
Uma das formas de aliviar o peso que sinto em crises como essa é verbalizando. Ocorre que falo ininterruptamente sobre o mesmo assunto. Fico lá, repetindo a mesma coisa para quem quer que seja. Meu ouvinte não importa, me interessa dizer, porque é isso que impede que a crise tome proporções maiores.
O grande problema é o tal “papel estereotipado” definido por Kanter. A sociedade não se conforma com o que destoa, e é por isso que as pessoas querem escolher o que é aceitável ou não. Em situações como as que mencionei, a praxe é exigir de um neurodivergente um comportamento neurotípico.
Seria razoável exigir que um cego enxergue ou que um paraplégico caminhe? Por que aceitamos que sejam exigidos dos autistas comportamentos de pessoas não-autistas?
O grotesco da comparação é proposital, pois quero chamar a atenção para o que considero grave, e que nos acomete dia após dia.
Ao interagir com uma pessoa portadora de um transtorno deve-se sempre trazer para o primeiro plano a condição daquele indivíduo, porque esse é um dos fatores cruciais que moldam quem ele é. Para além do clichê brega de que “um diagnóstico não te define” existe uma realidade que não pode ser ignorada: uma condição neurológica é fator preponderante na formação do sujeito em questão.
Me deparo constantemente com cobranças em torno de comportamentos que são até bastante válidos para pessoas típicas, mas que para nós é cruel, já que não conseguimos alcançar o que se espera de nós. Sei que os meus amigos atípicos também passam por isso.
Frases do tipo “Deixa para lá”, “Esquece isso” ou “Vamos conversar a respeito”, antes de ser bons conselhos, são na verdade uma ofensa ao nosso jeito de existir no mundo. Muitas vezes o que funciona para pessoas típicas não dá certo para nós, e ainda pode ser pior: colocar as coisas em pratos limpos, fazer cara de paisagem, fingir que nada aconteceu, engolir o choro ou qualquer outro comportamento aceitável para os outros, para nós pode ser mais uma fonte de desregulação.
O nosso cérebro é diferente, portanto não é possível que ele funcione como o de uma pessoa “normal” (muitas aspas). Os meios de comunicação e as mídias digitais propagaram uma visão distorcida do que é uma crise autista. Não é somente se bater, gritar, socar as coisas ou não olhar nos olhos. Devo lembrar que todo ser humano é único e com as condições mentais não é diferente, sobretudo em adultos. Nessa fase, a maior parte de nós já aprendeu a mascarar os sentimentos e conflitos internos, porém não é porque eles não são vistos que eles não existem.
O texto de hoje está bem maior que o de costume porque é difícil fazer com que pessoas que não estão no espectro entendam como funcionamos. Para que esse entendimento aconteça e a inclusão exista de verdade, é preciso uma boa dose de empatia do lado de lá.
Da mesma forma o women token é facilmente identificável em produtos da cultural pop, é bem fácil perceber que os grupos minoritários seguem segregados sob o véu de falsa inclusão.
Negar que é racista não faz com que alguém deixe de sê-lo. Assumir posturas, discursos e comportamentos antirracistas sim. Se afirmar inclusivo não torna uma pessoa inclusiva de fato. Ter ações e narrativas não capacitistas sim.
Na semana do Orgulho Autista o meu convite é para que você – pessoa típica – repare em suas próprias falas, observe suas escolhas e analise os seus comportamentos. Feito isso responda sinceramente: você realmente é inclusivo? Será que é?
E você – amigo neurodivergente – receba o meu alerta: cuidado com a Esmeralda que você compra, pode ser Lithia.
REFERÊNCIA
KANTER, Rosabeth Moss. Men and women of the corporation. New York: Basic Books, 1977.