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Escrevo para Neuza Machado

 

Rogel Samuel

Soube que um livro de crônicas de Paulo Mendes Campos foi publicado. Ele fazia parte dos grandes daquela época, Rubem Braga, Fernando Sabino e ele. Era a época das belas crônicas. Drummond também as escrevia. Crônicas todas que eu lia, e imitava.

O futuro das crônicas está aqui, na Internet. Quem gosta de ler, lê primeiramente crônica, e as lia no ônibus, no escritório, na praça. Os velhos leem na praça. Mas os jornais estão acabando, em breve só se vai ler em tablet, e o mundo continua lindo, o Rio de Janeiro. Os velhos cronistas usavam máquinas de escrever portáteis, escreviam nos aviões, aeroportos. O mundo parecia moderno. Eu nunca escrevi em aeroporto. Meus poucos livros os escrevi a mão, em grandes cadernos. “O amante das amazonas” escrevi num hotel, no centro, pois meu apartamento estava em obra inacabável. A primeira versão foi feita lá, perto da Praça da Cruz Vermelha. Ali eu mergulhei na selva amazônica, no rio Juruá, ali construí o Palácio Manixi, com todo o seu luxo. Lembro-me de que, naquele hotel, naquele Igarapé do Inferno, mas logo mais abaixo na última linha que riscava o horizonte da tarde - era uma diagonal dourada com a tempestade se aproximando na outra ponta do horizonte - como num recorte de uma cena de um escrupuloso sonho histórico, soberanamente saltava sobre meus olhos o belo vulto e art-nouveau do Palácio Maxini (que era como se chamava aquela construção), sede do Seringal e residência de Pierre Bataillon, pois eu e o texto retornávamos em busca daquele passado interdito, e chegávamos no fim daquela era quando o Palácio transparecia com deslumbramento de múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco, de um ouro muito louco e muito vivo, de um brilho vivíssimo, dourado e louco, fantasmático e delirante, desterritorializado e dIspare, produzido pela acumulação primitiva de quase um século de exploração e investimento e agenciamento de sobrepostos níveis heterogêneos de história, num engendramento de todo varrido do planeta moderno, confinado ali, circunscrito ali, centrado ali na dependência permanente de si e de seu retardado isolamento e de seu anacrônico testemunho.

Todo escritor é louco delirante, todo escritor surta. Todo escritor recria a imagem de um passado que não viveu. Mas nesse ponto me falta o fôlego enquanto eu chego ao fim dessa minha crônica, pois o dia se anuncia e ressurge e é tempo de você partir, meu amigo, que eu fico aqui e tudo já vimos do que deveria ser visto a despeito desse vosso Narrador fingido que está no fim, permanecendo vivo ainda até esta hora e o assunto está terminado. Não mais, que foi assim que falei, e assim a estória se fez e falou por mim, e se cumpriram as coisas conforme o disse eu, o Narrador. Adeus, minha amiga, adeus Neuza, que tão bem soube interpretar “O amante das amazonas” que parecia ter sido escrito para ela. Adeus Amiga, lembre-se desse Narrador nos desconhecidos espaços da morte, não se esqueça dessa estória tão bonita do amante das amazonas. A Amazônia é um certo lugar fantástico que também está no fim, e quando sonhar sonhe aquilo, com aquele Igarapé se indo por dentro daquele pântano, passando pelo Palácio Manixi de grande memória, com o jovem Zequinha Bataillon. Lembre-se de Maria Caxinauá, do bugre Paxiúba, de Benito Botelho, de Pierre Bataillon ao piano e de sua Ifigênia Vellarde. Não se esqueça de Antônio Ferreira, da maacu Ivete, da Conchita dei Carmen, de Juca das Neves e D. Constança, sua mulher, e do Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha. Mais de Frei Lothar e de Ribamar de Souza, que assim se vai nesse velho Narrador que desaparece, neste ponto.

 

Ela faleceu subitamente.