Escrever, para quê?

Por Rogel Samuel - especial para Entre-textos

"Não tem importância nenhuma escrever um poema", diz Azenha. E com isto ela sacramentou a verdade da causa secreta do poema, sua metafísica, sua origem, a fenomenologia de sua aparição.

Por quê o poema?

Azenha toca na essência da criação poética, onde tudo é segredo, labor oculto, o insondável do mistério, seu lacre, seu selo, seu silêncio.

O poema deve ser o que é, já se disse, não tem origem nem destino.

Nem tem razão, ou explicação.

O poema é "logos", e Logos, diz Wittgenstein, significa um discurso que não pode falar de si mesmo, a não ser que se coloque antes da possibilidade do próprio discurso. O processo do poema se concentra no interior dessa dimensão ilimitada de logos.

E essa ipseidade, a propriedade histórica da linguagem, da idéia do vôo de sua cultura.

Mas para quê?

"não tem importância nenhuma escrever um poema
a não ser a possibilidade de o não ter escrito."

A poesia luta com esta tendência de se ter e de se ver e de se perguntar pela utilidade de tudo. E utilidade com preço no mercado.

Pois, e se eu fizer algo da mais profunda inutilidade? E se eu mostrar o âmago a beleza do inútil?
Eu não quero melhorar a sociedade (pelo menos com o poema), eu não quero melhorar a mim mesmo.

Eu nada quero.

As árvores estão parindo gritos de flores, e ninguém, nenhum economista pergunta para quê, para quem.
As flores estão cobrindo os campos e não se cogitam em benefício de quem.
Qual a utilidade de uma flor? Melhor ainda: qual a utilidade do seu azul, da alegria de um céu de radiante beleza?
Aí está: o grande perigo, o terrorismo supremo é este - o ser que diz "nada quer", nada busca, e revela a beleza deste não buscar.

O homem que nada quer é o ser mais perigoso. Porque livre.
“Ninguém pode prender um homem livre, diz Khrisnamurti. Podem colocá-lo no fundo da masmorra, mas interiormente ele continua livre”.
É a liberdade, a liberdade da espera de nada, que rebenta qualquer amarra, qualquer muralha. Ilimitada.
A liberdade dos homens livres, os poetas, os profetas, os santos.
A crítica de Nietzsche vem justamente do conceito de valor.

Sua genealogia determina conceitos de valor, noção de valor que implica num investimento crítico contra os valores que aparecem como princípios pressupostos e contra valores de que derivam ava1iações.

O pensamento crítico de Nietzsche tem dois movimentos - todas as coisas e todas as origens de qualquer valor se referem a valores; para depois referir esses valores a outra coisa que seja a origem dos valores e que decide o valor dos valores.

Mas quem o juiz, qual o tribunal que decide o valor dos valores?

Aí está.

E se nada vale?

O método genealógico de Nietzsche busca a origem do próprio valor dos valores de onde emana a avaliação.

Ele se opõe a um valor absoluto e a um valor utilitário.

“Não encontraremos nunca o sentido de qualquer coisa (fenômeno humano, biológico ou mesmo físico), se não conhecemos qual é a força que se apropria da coisa, que a explora, ou que nela se exprime”, diz ele.

E quanto à arte?

Nietzsche não pergunta: “O que é o belo?”. Mas: “Quais as forças que o tornam belo ao apropriar-se dele?”

Assim, a essência da arte reside na descoberta da força que a possui e que se exprime nela.

No nosso caso, a força da liberdade, a força do sentido do silêncio da liberdade.

Que quer o poema? Mas o que é que ele quer?

O que é que quer aquele que ama ao amar, aquele que fala ao falar, aquele que crê?
O que é que quer aquele que se diz “desinteressado”? O que é que quer aquele que pensa isto? que procura a verdade?

- A vontade de poder, responde o filósofo, que não procura o poder, mas que o dá.
A vontade de poder concede poder. E não o arresta.
O método de Nietzsche é diferencial. Diante das coisas, pergunta: “Quem?”
Nele, a vontade de poder é um princípio ativo, plástico e genealógico. A vontade de poder não é a força, mas o elemento diferencial que determina uma relação das forças (a quantidade e a qualidade das forças em questão).

A beleza é uma força.

Significa a afirmação do múltiplo, do devir, do acaso.

É o acaso é o que está no poema de Maria Azenha. O acaso das árvores a parir as flores, a parir gritos gratuitos de flores. Gritos livres. Gritos do poder da ciência materna, do silêncio que há em tudo o que nos cerca.

O múltiplo, o devir, o acaso do universo, na sua ordem misteriosa, onde "só o amor flutua".

Eis o poema:

"não tem importância nenhuma escrever um poema
a não ser a possibilidade de o não ter escrito.
abrigo-me entre árvores prestes a parir gritos em flor,
na materna ciência do silêncio,


onde só o amor flutua."