Cunha e Silva Filho


                                 Dizem que o escritor Ernest Hemingway (1899-1961) tinha um pavor enorme na vida, o de perder a capacidade de  continuar fazendo ficção Era um fantasma que me parece tê-lo acompanhado na sua trajetória de escritor. No meu caso, não descartando de todo o medo do autor de O velho e o mar (1952),  tenho ainda o temor  de perder o costume, aliás, o bom e saudável costume, de escrever à mão. 
                                Confesso, porém, que tenho, sim, esse receio tecnológico à medida em que vou me utilizando mais da tecla do computador. A princípio, supunha eu que jamais seria capaz de escrever um texto literário diretamente no teclado. De repente, me descubro que inconscientemente o estou fazendo cada vez mais frequentemente. Daí o meu temor de não mais necessitar de fazer meus manuscritos. Realmente, leitor, isso está me preocupando.
                               Isso me leva agora àquela imagem encantadora e lírica de tantas vezes ver meu pai, Cunha e Silva (1905-1990), jornalista, professor e escritor piauiense, escrevendo seus artigos febrilmente, utilizando-se da caneta esferográfica e, muito antes, da pena molhada no tinteiro, numa escrivaninha que usava em seu quarto que, um dia, chamei de “quarto-biblioteca,” alheio a todos ao seu redor, mas movimentando a caneta - quase sem fazer pausa -, com os dedos ágeis e firmes da mão direita.  Isso até seus últimos dias.  Seus artigos saíam praticamente sem rasuras, escritos que era ao correr da pena como se costumava falar antigamente.
                             Poucas vezes, nele reparei modificações à margem da página. Os artigos, em geral, saiam perfeitos, com a clareza que lhe era inata ainda que tratando de temas mais complexos envolvendo argumentação mais cerrada. Ao contrário, amiúde surgiam erros nos seus artigos quando ele ia ler as chamada “provas dos artigos,” com os senões de impressão que vinham das redações dos jornais para os quais escrevia.
                            Aí é que revelava seu cuidado de ler a prova toda, sobretudo daquelas composições antigas antes do surgimento da linotipia. Ficava zangado quando, depois de ter ele mesmo feito a revisão, ainda mostrassem, no exemplar da edição, algumas gralhas. Contudo, não esquecia, para qualquer erro grosseiro que ainda aparecesse no jornal já pronto para a tiragem ao público, de, na próxima coluna, fazer constar, ao final do artigo, uma errata alusiva a algum erro ou erros do número anterior.Todo esse processo eu acompanhei durante o início da minha adolescência quando eu mesmo lhe ia pegar a" prova do artigo" para ele corrigir em casa. Era rigoroso com a correção de seus escritos.
                           Como estava falando no início desta crônica, o meu temor é deixar completamente de escrever à mão, embora venha fazendo isso ultimamente com mais frequência. Sei que antes pensava que escrever direto no computador era impossível e me atrapalhava - não vou chamar isso de “inspiração,” para não me classificarem de romantismo tardio -, no que concerne à a fertilidade das ideias, ao germinar das frases e à transformação destas no texto completo. Uma coisa, entretanto, observei: quando se trata do ato escrever um texto de natureza ensaísta ou crítica, de grande ou maior  extensão, o faço primeiro à mão e, em seguida, passo ao computador.
                          Na passagem do manuscrito, já por si cheio de correções feitas e modificações várias indicadas nas duas margens do papel com linhas em forma de setas para alterações que me ocorrem na trabalho da escrita, mudanças de palavras, enxertos, torneios diversos dados a enunciados, melhoria de construções frasais, ou de parágrafos inteiros ou mesmo de ter que fazer um “x” enorme como sinal de descarte de parte do texto, aquela velha ideia de escrita fluente comigo não acontece.    

                        Para mim, o ato de composição escrita sempre me foi difícil, suado, trabalhoso, por vezes cansativo, a ponto às vezes de sentir vontade de desistir de muitos parágrafos já feitos e de recomeçar tudo da estaca zero.
                       Por outro lado, sei que, escrevendo diretamente no computador como estou fazendo agora, me dá a possibilidade de correção mais rápida, de alterações e inversões necessárias, de melhoria no arranjo das frases, ou “amanho do texto, para empregar uma expressão colhida na leitura dos artigos de meu pai.
                     De alguns escritores brasileiros famosos tive a oportunidade de ver, nos fac-símiles de seus manuscritos o quanto modificavam partes de suas construções ou trocavam de palavras, pondo um risco em cima das palavras ou borrando–as por inteiro com a tinta da pena ou da caneta .Em Rui Barbosa (1849-1923), em Euclides da Cunha (1866-1909), em Guimarães Rosa (1908-1967), enfim, em muitos escritores. Dificilmente, vemos  manuscritos de um escritores  impecavelmente limpos e fluentes - indicadores de uma escrita que já sai quase perfeita e pronta para a impressão. Desses tenho uma ponta de inveja, mas que hei de fazer?
                    Não aconselho a ninguém desistir de usar algumas vezes ou mesmo sempre a forma manuscrita de seus textos. Há pouco li que o poeta Armando Freitas Filho,  mais radical ainda, usa, primeiro, a forma manuscrita, em seguida, a datilografada – isso mesmo, a velha máquina de escrever! - e, finalmente, passa o texto para o computador. O cuidado, neste caso, é triplo. 
                    Descobrir as facilidades e as potencialidades de escrever diretamente no computador é uma sensação agradável, mais agradável  mesmo é recorrer ao velho hábito de pôr no papel as ideias que vão surgindo naturalmente no nosso cérebro, fazendo as necessárias pausas para dar continuidade à estruturação das frases, dos parágrafos e do conjunto inteiro do texto a que daremos, na hora certa, um ponto final.
                    Prometo a mim mesmo que retornarei sempre ao texto manuscrito, embora tenho certeza de que, usando o teclado, as ideias não me faltarão  e as possibilidades múltiplas estarão ao meu alcance. Pausa para refletir e descanso não serão impedimentos à capacidade criativa por via digital.
                   O medo, leitor, de que eu falava há pouco, pensando melhor, reside no ato puro de escrever à mão, de não perder o talhe caligráfico intransferível, i.e., de dar o desenho próprio à letra de nossa escrita,  graças aos movimentos motores imprimidos e à  liberdade de sentirmos o controle  sinestésico do próprio punho ao  constatarmos que o  processo de criação de um texto é tanto físico como imaterial. É corpo e alma.