Como nomear o que aí nasce

se toda palavra é limite, sinal-a-menos

e a realidade

— sinal-a-mais?

(Affonso Romano de Sant’Anna)

 

antes de existir alfabeto existia a voz
antes de existir a voz existia o silêncio
o silêncio
foi a primeira coisa que existiu
um silêncio que ninguém ouviu

(Arnaldo Antunes)

 

O idioma é a única porta para o infinito,

mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas.

(Guimarães Rosa)

 

Eu não caminho para o fim,

eu caminho para as origens.

(Manoel de Barros)

 

 

As palavras falam...

 

Dar nomes — ato humano por excelência. Nomeando, pretendemos inscrever em nossa inteligência o ser do que foi nomeado. Trazemos o objeto extra-mental para o âmbito da nossa consciência. E, a partir desse momento, podemos atuar sobre ele: para conhecer e cuidar, ou para manipular e destruir.

Tudo o que se relaciona com a origem é misterioso, fazia ver Étienne Gilson. Como nascem/nasceram as palavras? São produto de convenção ou fazem parte da ordem natural das coisas? No diálogo Crátilo, Platão brinca com as duas hipóteses. Seu intuito é provocar o interesse e a reflexão mais do que dissolver o dilema: diálogo aporético. Os participantes do diálogo devem, diante da não-solução, abdicar do imediatismo, da arrogância e da intransigência. O positivo da negatividade — não entender é uma grande lição. No final deste diálogo, porém, é Crátilo quem diz a última palavra, recomendando ao mestre Sócrates que reflita melhor sobre o tema. Ironia: quem fora inicialmente eleito o juiz entre dois debatedores recebe  conselhos para meditar com mais cuidado...

Na primeira hipótese, defendida por Hermógenes (o terceiro dos personagens do diálogo, e discípulo de Sócrates), a atribuição dos nomes às coisas depende do arbitrário. Uma convenção aprova, o costume referenda. A nossa palavra “cadeira”, por exemplo, é o nome mais adequado para a cadeira, mas poderia ser “talofa”. [1] Ou outra palavra qualquer. Qualquer conjunto de sons serviria. A única condição é que os falantes concordem em usá-la. Acordo este muito longe de ser perdurável. Podemos, por exemplo, a qualquer momento, desbancar a palavra “cadeira” e entronizar a palavra “silha”, que ainda consta dos nossos dicionários como termo que designava um antigo móvel usado para sentar, em consonância com o verbo latino sedere, [2] e que tem na palavra espanhola silla sua prima mais próxima.

Hermógenes acredita que o nome de uma coisa ou de uma pessoa é exato e conveniente, não por sua natureza mimética, mas pelo consenso, a exemplo do que acontecia com o nome de um escravo, facilmente alterado se o seu senhor assim o determinasse. Crátilo, admirador do pensamento de Heráclito, põe em xeque essa crença (com evidente tom piadístico), alegando que o próprio nome de Hermógenes, “filho de Hermes”, embora com a anuência de todos e do “portador”, a este não convém, uma vez que Hermógenes vive em dificuldades financeiras e Hermes é o deus dispensador de bens. Num segundo momento, Sócrates acrescentará outra pilhéria: que o nome deste seu interlocutor relaciona-se com a expressão “eirein emesato” (isto é, “o inventor da linguagem”, Hermes, cf. Crátilo, 408 b), e Hermógenes mesmo admitirá que o seu forte não é a agilidade verbal. [3]

Crátilo, de quem Platão era amigo antes de freqüentar o convívio de Sócrates e com quem voltou a estudar depois que este foi condenado à morte, advoga a idéia de uma relação natural entre as coisas e os nomes — quem conhece os nomes conhece as coisas. É a tese naturalista. O nome como imitação da coisa, como perfeita expressão da coisa.

Diante de duas figuras como estas:

 

 

 

 

Pergunta-se: qual das duas se chama “katereket” e qual delas, “lomamobon”? A tendência natural, num primeiro momento, é atribuir à figura A o primeiro nome, e o segundo nome à figura B. Intuitivamente, associo as consoantes oclusivas /k/ e /t/, a constritiva vibrante /r/ e as vogais orais /a/, /ê/ e /é/ à imagem contundente, estridente, quebradiça, rompedora, pontiaguda. Já as consoantes bilabiais /m/ e /b/, a constritiva lateral /l/, e as vogais nasais /ã/ e /õ/, sinto-as identificadas com a imagem amorfa, molengóide, deslizante.

A fonoestilística relativiza a arbitrariedade. Os elementos sonoros possuem expressividade. Percebê-los depende, sem dúvida, de um ouvido apurado. As crianças e os poetas costumam ter sensibilidade de sobra para esta dimensão da linguagem. Murilo Mendes relaciona o nome de um leão visto na infância ao terror que dele sentia:

 

O nome do leão era Marruzko. Esses dois erres, com o zê azedo e o ká cortante, mais o urro do u

no centro, formavam um composto que me aterrorizava. [4]

 

A iconicidade (que os adeptos da tese de Hermógenes dirão pertencer ao mundo das exceções e Saussure indicava ser um processo de criação léxica marginal) evidencia-se na onomatopéia. [5] Que a palavra “bomba” seja bombástica, que “murmúrio” murmure em nossos ouvidos, que “gargalhada” e “gargarejo” ressoem de maneira inconfundivelmente gutural, que “soluços” dificultem a glutição (desde o latim clássico, singultus, e do latim vulgar, sugglutium) constituem algumas provas (poucas, mas irrefutáveis) de que nossas palavras podem recolher dos sons naturais um motivo para existir.

A explicação onomatopaica, afirma-se, é ingênua e infantil (e de fato o é...), e portanto descartável (conclusão esta que já não precisamos endossar tão rapidamente). Nietzsche, em seu ensaio Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral, cita a palavra alemã Schlange (serpente), derivada por alternância vocálica do verbo schlingen (enlaçar, estreitar), e ligada ao enrodilhar-se (schwinden), reproduzindo-se assim o som da serpente ao se enroscar, pelo menos aos ouvidos do povo alemão. [6] Mas, argumenta Nietzsche, por que então o verme (Wurm), que também se enrosca, não é designado por palavra sonoramente semelhante à que designa serpente? Por que o prefixo “Sch-” não é usado para todos os animais que se enroscam, que se dobram em si mesmos, o verme, a minhoca, o caramujo etc.? [7]

A hipótese da relação onomatopaica entre palavras e coisas não precisa ser descartada integralmente. Parte da explicação encontra-se nela. Apenas uma parte. Certamente uma pequena parte! Há um elo perdido entre o verme e a serpente. Embora nada impeça ver no verme outro aspecto que não o enrodilhar-se. Talvez (mero vôo da imaginação...) esteja no seu corpo mole a razão de que no latim vermis, no inglês worm, no alemão Wurm, no dinamarquês orm, no finlandês mato e no sueco mask, repita-se o som m, ligado à sensação do que é mole, macio, maleável (o que, por outro lado, não valeria para explicar o espanhol gusano, ou o húngaro kukac).

Existe, porém, ainda que muitas vezes ínfima (ainda que imaginária...), uma relação entre som verbal e coisa que produz barulhos e ruídos, ou que produz sensações tácteis. Pois tocamos aqui a dimensão fisiológica da linguagem, e não há nisso nada de intrinsecamente abominável. Só não convém absolutizar essa dimensão, nem exigir que os defensores da teoria onomatopaica encontrem razão para tudo. Mesmo porque não conseguimos descobrir o tempo todo todas as razões que há para tudo...

Dentro deste labirinto em que as palavras circulam nós nos movemos e somos. E nem só consultando o ouvido ou o tato nós falamos/dizemos. Voltando ao verme, a palavra “vermelho” a ela se refere, ao menos por dois atalhos visuais. Um: as vítimas da verminatio ficam vermelhas por causa das dores agudas provocadas por vermes. Outro: é triturando um vermiculus, pequeno verme, a cochonilha, parasita de plantas, que se obtém a cor vermelha, tonalidade especial entre a cor vinho e o escarlate.

É nesse labirinto que veremos Sócrates entrar, acompanhado por Hermógenes e Crátilo, dando voltas e mais voltas, sem a inútil pretensão de encontrar ou mostrar a saída aos seus companheiros de conversação. A saída é permanecer no labirinto (no problemático), é nele sentir-se à vontade. É o prazer de estar lá dentro, pois ele faz sentido, mesmo quando não faz sentido. Ou, numa formulação menos escandalosa... assim como nossas crianças na idade de dois anos sentem prazer ao nomear por nomear, desinteressadas (ao menos assim acham os adultos...), a princípio, das necessidades prementes (que hão de se impor a qualquer momento), assim nós também podemos brincar com a linguagem (ato extremamente racional...). E as palavras se prestam a brincadeiras de moldar e remoldar, assemelham-se àquelas massinhas coloridas com que se formam figuras mais ou menos fiéis às formas naturais.

Brincar com a etimologia é experimentar uma surpresa atrás da outra. A  poeta e lingüista Ivonne Bordelois (seu orientador no doutorado foi Noam Chomsky) dedica-se a esta brincadeira sistematicamente (o que lhe atrai o sistemático mau humor das pessoas “sérias”, sobretudo nos meios acadêmicos). Ela acredita colher, mediante a pesquisa, a reflexão e a imaginação, o sentido clarificador de palavras desfiguradas e sufocadas pelas rotinas alienantes e pelo uso desgastante.

Os exemplos se multiplicam. [8]

“Parente” é aquele que “está parindo”. Nascemos, não apenas da mãe, ou da mãe e do pai, mas de toda a família. As dores do parto, quando os parentes estão realmente sintonizados com quem as sente fisicamente, difundem-se entre avós, tios etc.

“Saber” remete ao indo-europeu sap, relacionado com sabor — sap, em holandês, significa hoje em dia suco de fruta. Sap, em inglês, é seiva. Sapiência consiste em saborear o fluido vital da realidade. O sábio sorve a seiva da vida, ou bebe a sapa, vinho cozido entre os romanos.

“Amor” encontra-se com “mamar”, ligado vivamente ao infantil “mamãe”, balbucio do bebê ao colocar a boca no seio materno (e “bebê” é balbucio também, da mãe amorosa que imita os balbucios do filho). Amar é dar este beijo em quem entrega o seio morno e alimentador, beijo que suga mas ao mesmo tempo dá prazer a quem se entrega.

Como costuma acontecer, as pesquisas etimológicas mais radicais são uma aposta, envolvem conjecturas, parecem arriscadas, são vistas como reconstruções sem suficiente fundamento “racional”... Desde Crátilo provocam adesões apaixonadas (talvez encantadas demais...) e reações contrárias, céticas.

Adepto da filologia como forma de estudar instituições e mentalidades, Nietzsche, com sua psicologia filosófica, concebe a linguagem dentro da concepção maior do conhecimento como atividade do animal humano em luta pela preservação e pela intensificação da vida. A linguagem antropormofiza a realidade, assimilando-a. Comunicamo-nos pela linguagem para vencer a solidão e o medo — vontade pragmática. Por isso as palavras não seriam sinônimas das coisas. As palavras como instrumentos que produzem valores úteis à vida. As metáforas das coisas não correspondem às entidades de origem.

No entanto... a linguagem — a mais misteriosa das faculdades humanas — não se pode definir de maneira unidimensional. Se é certo que a linguagem possui uma faceta pragmática, nela não se esgota, pois tampouco se esgota a realidade que parece falar pelas palavras que pronunciamos... E as palavras dizem mais (e menos) do que podemos perceber à primeira vista, ou à primeira audição.

 

 

E o que dizem as palavras?

 

A antropologia filosófica reconhece no ser humano diversas dimensões. A dimensão corpórea, a dimensão intelectiva, a dimensão afetiva, a dimensão social, a dimensão religiosa, e, entre outras muitas, a que nos interessa neste estudo: o homo loquens. O ser humano como falante. Como ser pensante na palavra. Ser atuante na palavra.

A linguagem, natural na sua função, é convencional na sua realização, depende da vontade dos falantes. Mas esta decisão voluntária também por vezes se encontra involuntariamente determinada... E aqui reside um dos tantos caminhos desencontrados da reflexão sobre a linguagem.

Os poetas, em geral, aprendem a lidar com essa realidade e nela se sentem como peixes dentro d’água. Nem controlam totalmente a linguagem nem são por ela totalmente controlados. Nela mergulham, nela respiram, e dela emergem, fazendo descobertas (provocando descobertas) e nos fazendo descobrir o que só na linguagem conseguimos ver/ouvir/tocar com mais clareza. O verbo “rolar”, por exemplo, como nos ensina Mattoso Câmara, possui uma configuração fonética que se casa bem com o modo de objetos ou pessoas rolarem. O /o/, inclusive visualmente, na escrita, e no arredondamento dos lábios de quem ouço pronunciar este verbo, sugere o rolamento, além das duas consoantes líquidas /r/ e /l/, que correspondem “à idéia de um movimento desimpedido e contínuo”. [9]

Então, quando Olavo Bilac escreveu esses dois versos no seu O caçador de esmeraldas...

 

Fernão Dias Pais Leme agoniza. Um lamento

Chora longo, a rolar na longa voz do vento. [10]

 

...estendeu para além das palavras (invadiu nossa percepção) o rolar do lamento pela morte do bandeirante — a aliteração empregada com maestria. O /o/ em lamento/chora/longo/rolar/longa/voz/do/vento, o /r/ em chora/rolar e o /l/ em lamento/longo/rolar/longa combinam-se ao /v/ em voz/vento, à rima lamento/vento e ao jogo longo/longa, alongando a voz chorosa que se desprende do ar, como se a própria natureza estivesse em agonia.

Paulo Leminski escreveu um poema etimológico (“Ouverture la vie en close”), reforçando a ligação entre o processo criador da poesia e a intuição de que há necessidades inerentes na criação das palavras mais prosaicas:

 

em latim

“porta” se diz “janua”

e “janela” se diz “fenestra”

 

a palavra “fenestra”

não veio para o português

mas veio o diminutivo de “janua”,

“januela”, “portinha”,

que deu nossa “janela”

“fenestra” veio

mas não como esse ponto da casa

que olha o mundo lá fora,

de “fenestra”, veio “fresta”,

o que é coisa bem diversa

 

já em inglês

“janela” se diz “window”

porque por ela entra

o vento (“wind”) frio do norte

a menos que a fechemos

como quem abre

o grande dicionário etimológico

dos espaços interiores [11]

 

 

Nosso falar e escrever, quando estão em sintonia e em diálogo com a realidade, tornam-se mineração. Busca-se no terreno das palavras a preciosidade, por vezes com preciosismos irritantes para os espíritos mais imediatistas e pragmáticos. O vivido há de se tornar inesquecível. Mineração na linguagem, mineração interior. Descoberta do outro, descoberto do “eu”. A linguagem é âmbito em que se encontram a realidade pessoal que fala, e a realidade exterior, não menos loqüente. E mais loqüente ainda será essa realidade exterior, se for outra pessoa!

Vejamos e ouçamos. O escritor Pedro Nava (conforme estudo de Edina Regina P. Panichi sobre O Itinerário da Construção Textual Naveana)[12] tensionava a linguagem, trabalhando nos diferentes níveis, fonético, ortográfico, semântico, para expressar e extrair sentido da vivência pessoal. Na anotação abaixo, encontrada em seus arquivos (com as falhas próprias de uma anotação não revisada), refere-se ao modo de falar de Mário de Andrade:

 

A voz boa e macia do Mario de Andrade, suas palavras babadas que as sílabas saíam separadas como cubos, poliedros cujos ângulos fossem emoussés — como pedra de gelo que se arredonda dentro dagua derretendo. O Mario derrete as palavras sobretudo nos seus ch como Warchawski — desenvolver isto. A construção oral tinha modulações de frase musical. Intérprete de prosa e verso. Dizedor admirável de conversa.

 

Texto que, mais tarde, reaparece em sua forma desenvolvida e definitiva:

 

E como é? que falava esse granganzá do Mário. Com a melhor voz e o modo mais macio. Como que lubrificava as palavras babando as sílabas que saíam no seu sotaque provinciano, separadas feito cubos de gelo cujos ângulos e arestas fossem émoussés por derreter. Suas sílabas e palavras se arredondavam e escorregavam sobretudo nos seus CHH. Marcha. Marchar. Warchavchik. Chique. Meschick. E tinha a propriedade de falar se rindo — e ria, comele ria! riaté sem razão. E era nessa mesma fala de paulistano sem se impostar nem se importar que ele era um intérprete admirável de poesia e prosa. Lembro de tê-lo visto e ouvido ler coisas suas em casa de Rodrigo. Sua construção oral tinha, então, modulações de frase musical. E não era que declamasse, Deus me livre! O que ele era é um dizedor fabuloso até de frase de conversa. Degustava a palavra e essa sua volúpia palatal é que deve ter inspirado seu Congresso de Língua Nacional Cantada — quando Diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. [13]

 

Sensível à performance verbal do amigo, que define como um “esteta da língua, glotólogo dono dos mistérios da palavra”, [14] Pedro Nava trabalha a linguagem musicalmente, aludindo, para corroborar a imagem que desenha com as palavras, ao poema que se convencionou chamar A Serra do Rola-Moça (e na verdade é um poema dentro de outro maior, Noturno de Belo Horizonte), do próprio Mário de Andrade. Com esta alusão, ativa a idéia da alegria de viver e escrever, uma alegria não isenta, paradoxalmente, de melancolia.[15] Uma alegria ao mesmo tempo racional, pois se até existe riso sem razão e sem motivo, com mais razão com razão haverá riso. Racional-irracional é o convívio alegre com a palavra e seus mistérios. Alegria que implica o risco de cair no vão do despenhadeiro, de pisar em falso, de percorrer os perigosos atalhos do som e do sentido, mesmo que nem sempre faça sentido todo o som que produzimos. Glosar e gozar — nisto se amplia e se resume o trabalho de quem vive das palavras, e de quem muito bem sabe que as palavras dizem. E que nada dizem em vão...

E o que dizem as palavras? Não dizem toda a verdade — não dizem tudo, é verdade. Sempre falta à palavra outra palavra que a complemente e que a explique. Nathalie Sarraute, em O uso das palavras, imagina as palavras produzindo inúmeras ondulações, e captá-las, ler as entrelinhas, e as entreletras, é divertido e doloroso. Captá-las com outras palavras é o exercício de quem escreve. E de quem lê. E também de quem pensa, pois, ao atentar para a linguagem, atentamos para o ser humano em sua interioridade, em sua complexidade, em suas ambivalências e dilemas. “A linguagem humana” — conforme Chomsky — “pode ser usada para informar ou desorientar, para clarificar pensamentos de uma pessoa, ou para exibir sua habilidade, ou simplesmente por brincadeira”. [16]

Como defendia Mário de Andrade, quem lida com palavras lida com elementos de consciência. Nas palavras tomamos ciência e consciência do que somos, do que pensamos, do que pensam os outros, do que os outros são, do que são as coisas. No diálogo, na leitura, no escrever, no ouvir, ouvimos o que dizem as palavras. As palavras dizem o que é pensado ao dizer-se (ou o que se diz de modo impensado). A consciência se ilumina no ato mesmo de se dizer o que sussurra a consciência. Então, quando escrevo “eu”, o pronome antecipa o meu nome. Sou eu que escrevo sobre mim. Consciência, contundências. E as palavras dirão o que eu mal sabia que elas diriam. E quando falo/escrevo o nome de algo, algo se torna o que é. Algo, às vezes, deixa de sê-lo...

Por mais estranho que pareça, somos impulsionados a falar/escrever sem saber o que vamos dizer/expressar. Não pensamos antes de manifestar, na palavra impensada, o que pensamos. A linguagem fala em nós, “através” de nós. E se tentamos premeditar palavra por palavra nosso discurso, o pensamento é como que transfigurado pela palavra, e acabamos por “ultrafalar” o que tínhamos pensado dizer, ultrapassar o que imaginávamos ter a dizer. Pouco dizem os dicionários sobre o que as palavras dizem. Será que elas dizem mais? Dizem menos? Por isso os exercícios etimológicos atraem a atenção dos que esperam da linguagem algo além de definições convencionais/superficiais. Ou dos que, ao escreverem, entendem que na palavra podem ser mais do que são — “o que escrevo é mais aguçado do que sou” [17] —, e querem saber o porquê de experimentarem este aguçamento. A própria Susan Sontag, autora da frase, observa, num trecho do mesmo ensaio: “... a literatura é importante. ‘Importante’ é uma palavra muito desbotada, sem dúvida.” [18] E, no entanto, etimologicamente falando, “importante” ganha uma grande importância e nos aguça a consciência, quando a ela associamos a idéia de “importação”. Importare, no latim, é trazer de fora para dentro, é trazer para si o que  interessa, “comprar” o que consideramos bom e não possuímos.

O escritor, o professor, o comunicador exportam. E se exportam o importante, as pessoas se interessam! Recuperar o colorido da palavra “importante” é redescobrir o que diz a palavra, mesmo quando já emudecemos para ela. Ou melhor, dialogando com a palavra poderemos ouvir de novo o que ela diz. Mais ainda: poderemos suscitar que ela diga outras coisas importantes.

Num artigo publicado no jornal A Tarde (24 de abril de 2005), João Ubaldo Ribeiro, escrevendo sobre a formação do povo brasileiro, não se contém e emprega a palavra “importante” duas vezes no mesmo período:

 

Acho importante recordar isso porque estamos engolindo cada vez mais a noção de que a raça nos divide, deixando de enxergar a evidente realidade de que os negros são também os verdadeiros primeiros brasileiros e que trouxeram com eles tão importante parte da riqueza cultural, que hoje nos ornamenta e singulariza.

 

A importância não está apenas na mente (pois é claro que está) de quem considera isso ou aquilo importante. Na palavra mesma a idéia se aloja, ou com ela se une, à espera, porém, do falante/escrevente e do ouvinte/leitor que lhe dêem a devida (ou indevida, às vezes) importância.

 

 

Em diálogo com as palavras

 

Admirável a estratégia argumentativa de Sócrates. Problematiza as teses de Hermógenes e Crátilo, demonstra um conhecimento verbal acima do comum, gerando uma situação e uma sensação de nonsense com forte intenção pedagógica.

Com relação à tese de Hermógenes, se as palavras fossem exclusivamente produto da convenção arbitrária, cada indivíduo ou cada sociedade poderia dar início a qualquer alteração, qualquer mudança, a seu bel-prazer, ou ao sabor do acaso. As palavras são vistas, segundo essa ótica, como instrumentos descartáveis ou meios permutáveis para transportar idéias. O espírito “cratiliano”, porém, revolta-se contra essa idéia. Uma das histórias de Ruth Rocha (sempre bem-humorada e crítica atenta) ajudará a materializar essa revolta. Refiro-me a Marcelo, marmelo, martelo. A curiosidade do menino é insaciável. Sua atenção recai sobre as relações entre nomes e coisas/seres nomeados. Percebendo a arbitrariedade das palavras, decide agir com mais “lógica”, chamando “cadeira” de “sentador”, “travesseiro” de “cabeceiro”, “dia” de “solário” e “noite” de “lunário”. E, afinal de contas, por que ele, Marcelo, se chama assim? Só porque os pais assim o quiseram?

 

— Mamãe, por que é que eu me chamo Marcelo?

— Ora, Marcelo, foi o nome que eu e seu pai escolhemos.

— E por que é que não escolheram martelo?

— Ah, meu filho, martelo não é nome de gente! É nome de ferramenta... [19]

 

O curioso, no entanto, é que em latim Marcellus é diminutivo de Marcus, que significa “martelo”. Na realidade, Marcelo (“martelinho”) é nome de ferramenta e é nome de gente — o personagem martela com tantas perguntas incômodas o ouvido dos adultos! No final da história, os pais de Marcelo passam a se esforçar para entender o filho, tentando apreender o lógos que rege o idioleto do menino.

Conversando com Hermógenes, Sócrates é “cratiliano” (cf. Crátilo, 390e), defende a existência de um nome apropriado para cada realidade, para cada objeto, para cada ser, independentemente das diferenças dos idiomas. O substantivo neutro eidos expressa os traços que fazem de cada realidade uma realidade única. Cada coisa tem sua própria configuração, suas propriedades, sua forma, que é também aquilo que fica quando a coisa desaparece. A idéia do nome — onómatos eidos — é reproduzida mediante os sons, que serão diferentes e diferentemente articulados em sistemas lingüísticos diferentes, mas sempre com fidelidade ao essencial. Os legisladores terão, idealmente, o cuidado de encontrar sons acertados em cada língua. A tarefa dos legisladores, por sua vez, será apreciada e julgada pela pessoa reflexiva e interrogadora: o dialetikós. Este tem em suas mãos o leme, dirigindo corretamente (e eventualmente corrigindo) o trabalho daquele que cria os nomes.

Mas em que consiste a exatidão dos nomes? Esta é a pergunta mais do que pertinente, e Hermógenes a faz. Sócrates, com sua conhecida maneira de conduzir o diálogo, no momento em que poderia pontificar, já que o interlocutor está agora disposto a ouvir a verdade... declara não saber, e que o melhor seria recorrer aos sofistas (pagando por este conhecimento um bom preço, evidentemente). Ou então recorrer aos poetas. E os poetas são aqueles que ouvem os deuses. E são os deuses que sabem chamar, de maneira firme, correta, cada coisa pelo seu nome natural (cf. Crátilo, 391e), se é que os deuses dão nomes às coisas... pois também (é o próprio Sócrates quem faz este alerta, cf. Crátilo, 425e) recorrer a esta noção poderia caracterizar um expediente pouco racional, a exemplo dos dramaturgos que faziam descer em cena um deus cuja missão era solucionar de modo arbitrário os impasses vividos pelos personagens: deus ex machina.

Os poetas sabem, suponhamos, as palavras que os deuses empregam, e as palavras carecem de bons leitores, que possam extrair-lhes a verdade. A etimologia é instrumento com o qual se torna possível revelar o oculto. Encontramo-nos na pista certa em acreditar que assim é, ou estaremos nos iludindo? A partir desse ponto, simulando temer enganar-se (e até mesmo enganar Hermógenes), Sócrates parece cair num êxtase oracular, sem, no entanto, abandonar a ironia, o distanciamento. Afinal, não é pequeno o risco de tornar-se mais sábio do que seria razoável...

Brincando com as palavras, que é uma forma (provavelmente a melhor) de dialogar com elas, entendê-las por dentro, o poeta Sócrates, o inspirado dialético, o pensador entusiasmado, inspirado sofista, o “demoníaco” professor, o etimologista sem medo quer penetrar cada vez mais no labirinto, em busca da justeza dos nomes. E não são os deuses também brincalhões, amigos do jogo, alegres, e de vez em quando um tanto enredadores (cf. Crátilo, 406c)?

Exemplo de brincadeira verbal: “herói” é aquele que foi gerado pelo amor, por Eros. A semelhança entre as palavras (“Eros”/“herói”) autoriza Sócrates a realizar o salto. E ele o dá, com liberdade e graça, diante dos sorrisos admirados (desconcertados, embaraçados...) de Hermógenes e Crátilo. Deste, em particular, que vê Sócrates defender a tese naturalista com mais criatividade do que ele mesmo poderia fazer.

Sócrates quer assemelhar-se aos onomaturgos, conhecer-lhes o modo de pensar, realizar altos vôos... e começa a falar, e a falar um pouco além da conta. Tornar-se-á um sutil palrador de tanto parolar sobre as palavras. Tocará os limites da charlatanice...

 

 

Bêbado, “picareta”, poeta?

 

Sócrates aborda a controvérsia physis-nómos com aquela sua postura (marca registrada do pensador irônico) de que pouco ou nada sabe, recorrendo à ajuda inestimável dos interlocutores (ou serão meros trampolins de um sofista...), em busca de algumas luzes.

Seu trabalho inicial, porém, e isso é notório ao longo da discussão com Hermógenes, consiste em buscar na estrutura fundamental das coisas um limite à arbitrariedade da convenção. Seu intento é encontrar o modus operandi  do onomastikós (cf. Crátilo, 424 a), ou seja, daquele que se encontra apto a dar nomes verdadeiros, tarefa adâmica por excelência (tarefa criativa), segundo o contexto judaico-cristão: Adão (cf. Gênesis 2, 19-20), o primeiro terroso (se houvesse habitantes em Marte chamar-se-iam “marcianos”, e na Terra, portanto, somos os “terrosos”), criou nomes para os animais (os terrestres e as aves, os domésticos e os selvagens), nomes que julgava os mais convenientes. E “conveniente” é aquilo que coincide, concorda, condiz: convir, “vir com”, vir juntamente.

Sócrates relativiza o convencionalismo, buscando as mais requintadas razões/raízes etimológicas para todo e qualquer nome. Atua como artesão, ou como ator de teatro a interpretar o papel de onomaturgo. Hermógenes chega a observar que, pronunciando certa palavra, Sócrates usa os lábios para dar à boca forma de flauta (cf. Crátilo, 418a), como quem a estivesse saboreando pela primeira vez, ou executando-a naquele instrumento musical imaginário.

Como saldo desse primeiro movimento do diálogo, planta-se na mente de Hermógenes a hipótese de que algum tipo de naturalismo pode ser endossado. O preço para que esta semente tenha sido lançada é um artificioso e rebuscado exercício de e sobre a linguagem que, como nos ensinou Heidegger, traz a marca da insuficiência, uma vez que somos sempre ultrapassados pela própria linguagem que nos envolve. [20] Sócrates bebe o vinho embriagador das palavras, torna-se dionisíaco, corre veloz por entre as palavras. Ouvidos mais afinados poderão identificar uma ou outra risada entre as falas. Hermógenes ri e elogia o desempenho de Sócrates. O filósofo brinca, afirmando que seu amigo precisará inventar elogios mais calorosos, pois pretende continuar avançando no terreno da sabedoria, se é que realmente avançou até agora (cf. Crátilo, 410e)...

Obviamente Sócrates não pensa a etimologia no sentido moderno (século XIX em diante). Os gregos daquela época pouco sabiam a respeito da origem de sua língua (e nós, por acaso, sabemos muito mais?). Em virtude desse reduzido conhecimento especulam com uma liberdade que parece agredir os princípios básicos da investigação séria, de acordo com os nossos atuais padrões de reflexão sobre a linguagem e sobre o que sejam “investigações sérias”. Mas a atitude de fazer livres suposições do grego não se circunscreveu à antiguidade. Voltaire (século XVIII) dizia que a palavra “chemise” (camisa em francês) proviera da expressão “sur la chair mise”, pois a camisa sobre a carne se põe. [21] Já Santo Isidoro de Sevilha (século VII) à palavra latina “camisia” (camisa) atribuía como origem o fato de que, com este tipo de roupa  as pessoas iam para a cama dormir.

Para nós, a etimologia de uma palavra revela a sua história fonética e semântica, mas para Sócrates, para Platão e também para Crátilo (e ainda temos muitos “sócrates”, “platões” e “crátilos” entre nós) sua principal função é manifestar em alguma medida a verdadeira natureza do referente. Ora, se há uma manifestação é porque algo está/estava oculto. A natureza oculta das coisas, evidenciada pela etimologia, confere a esta o caráter de instrumento propiciador de epifanias.

Seria anacronismo nosso esperar de Sócrates análises etimológicas semelhantes às realizadas hoje à luz de estudos lingüísticos que se consolidaram ao longo dos séculos XIX-XX. No início desse período de “etimologia esclarecida”, o jesuíta Lorenzo Hervás y Panduro (1735-1809), aludindo ao Crátilo, já afirmava que, apesar de reconhecer a grandeza do filósofo, não podia suportar as considerações etimológicas de Platão, expressas por Sócrates:

 

Leo el diálogo de Platon, intitulado el Cratilo, ó de la recta razon ó imposicion de los nombres: admiro en muchos discursos de este diálogo el grande ingenio del autor, y al mismo tiempo tropiezo freqüentemente en etimologías pueriles que me representan ridículas sus ideas, y me hacen casi molesta sua lectura. Platon, sabio eminente en sus discursos filosóficos, se muestra algunas veces literato ridículo en sus etimologías [...]. [22]

 

Menos agressivo, mas infenso às “viagens” etimológicas de Platão-Sócrates, o erudito Charles Lenormant (1802-1859) também opinava que os erros de Platão etimólogo (a extrema esquisitice da maior parte de suas considerações sobre a origem das palavras) deveriam ser compreendidos e desculpados, dado que o tema era demasiado novo e complexo para o grande gênio:

 

Peut-être en voyant l’extrême bizarrerie de la plupart de celles [das etimologias] qui sont proposées dans ce dialogue et l’oubli des lois les plus élémentaires de la critique qu’on y constate à chaque pas, se sera-t-on expliqué les erreurs de Platon, par l’extrême nouveauté du sujet, eu égard à son pays et à son époque, prenant en pitié ce grand génie fourvoyé dans um travail auquel ses propres réflexions n’avaient pas suffi pour le préparer. [23]

 

Contudo, outros tantos leitores de Platão não diriam que faltou ao personagem Sócrates (e ao seu discípulo como tradutor do mestre) consciência lingüística ou rigor científico. Leitores próximos como Aristóteles não o fizeram, ou leitores mais distantes, como Rousseau, que escreve, em defesa do filósofo: “le Cratyle de Platon n’est pas si ridicule qu’il paraît l’être”. [24]

Por outro lado, admitindo-se que Sócrates estivesse parodiando gramáticos e etimólogos contemporâneos, o tom humorístico que assume no Crátilo não se deve ao fato de que o procedimento adotado fosse risível em si. A graça estava em que, levando às últimas conseqüências o afã de tudo explicar, Sócrates procurava mostrar que tinha na ponta da língua, sempre, uma descrição possível (mais plausível ou menos plausível) para cada palavra, contrariando seu slogan pessoal de que sabia nada saber. Hermógenes (imagino-o rindo), chega a censurá-lo: “Tenho a impressão, Sócrates, de que empilhas por demais as explicações” (Crátilo, 420d). De modo temerário, até meio atabalhoado, Sócrates aventura-se a descobrir a essência das coisas em todas as palavras que lhe são apresentadas ou que lhe ocorrem ao longo da conversa. Há um fluxo de palavras sem fim, discurso que não cessa de deslizar, driblando todo e qualquer obstáculo, qualquer hesitação. E as palavras parecem tornar-se estranhamente transparentes, como acontece na poesia tantas vezes:

 

rio: o ir [25]

 

Um palíndromo descortina (a cortina do acostumamento é retirada subitamente) o movimento do rio. O rio vai. A sua essência é ir, correr, deslizar. O sentido estava ali o tempo todo, fluindo e ao mesmo tempo inalterável. Nem se opõe, diga-se de passagem, a rivus, do latim, usado para designar um regato, um ribeiro, mas também a corrente de qualquer líquido que escorra. É condizente. Diz junto. Flui junto.

Sócrates, em meio a aparente delírio etimológico, alertara Hermógenes a respeito de algo muito importante. Os nomes sonoros, por natureza, têm uma “certa justeza” — “physei te tina orthóteta echon” (Crátilo, 391b). Sócrates emprega o pronome indefinido (tis), relativizando assim uma posição fechada a favor exclusivamente do naturalismo. E ainda é de se considerar que os nomes primitivos, supostamente condizentes com os objetos nomeados, foram soterrados pelos falantes no decorrer do tempo. Estes falantes acrescentaram, suprimiram ou transformaram sons, tornando irreconhecível a relação entre palavra e coisa. Daí em diante não será a convenção a salvaguardar o uso, a compreensão, a possibilidade da conversa entre as pessoas que empregam as mesmas palavras?

Sócrates chega a admitir (sempre ironicamente) que suas reflexões são burlescas (cf. Crátilo, 426b). Mas o que fazer perante tema tão difícil, reconhece o próprio filósofo? Talvez por isso possamos chamá-lo de “picareta”, mas no sentido favorável da palavra. “Picareta”, xingamento bem brasileiro, é a pessoa inescrupulosa que, aproveitando-se da ingenuidade alheia, utiliza meios condenáveis para obter o que deseja. No entanto, uma boa picaretagem pode demolir estruturas fadadas ao fracasso, desconstruir esquemas falsos, derrubar muros. Sócrates atua como uma picareta que escava a terra para encontrar tesouros escondidos, sem a menor segurança de que eles estão ali...

Os preconceitos que algumas pessoas têm contra tudo o que cheira a etimologia são justos e até inevitáveis, se etimologia fosse o que elas pensam que é. Se esta “doutrina das palavras” pretendesse esquadrinhar de modo infalível, com uma ilusória onisciência, com a arrogância dos “sabichões” (o sufixo –icho, diminutivo com conotação pejorativa, recebe aqui uma segunda carga pejorativa no aumentativo), todas as raízes e folhas, flores e frutos da grande árvore da linguagem humana, tal etimologia perderia a credibilidade. Podemos confiar numa etimologia com lacunas, preenchíveis pela imaginação e pela fabulação humanas.

 

 

O que a convencionalidade afiança

 

Hermógenes se queixa com Sócrates de que Crátilo sempre se expressa em termos obscuros e vagos (cf. Crátilo, 427d-e), e este explica que não poderia ser diferente, uma vez que o problema da exatidão dos nomes é tão importante quanto complexo.

No início desta que será a parte final do diálogo, Sócrates  se oferece como discípulo de Crátilo, afirmando que até agora o máximo que fez foi, ao lado de Hermógenes, procurar algumas luzes sobre a questão. Sabemos, no entanto, que seu objetivo é outro, e bem outra são as suas condições. Plenamente consciente de que está em jogo uma discussão relevante em si mesma, Sócrates vai demonstrar a Crátilo que o naturalismo também é relativo, que não se pode esperar um perfeito encaixe entre nome e essência do objeto nomeado. Algum tipo de convenção deve ser aceita.

A correta aplicação dos nomes depende, segundo Sócrates, de que os legisladores acertem sempre, mas estes nem sempre executam com total perfeição o seu trabalho, até porque não dispõem (não dispunham) de nomes que os ajudassem a conhecer aquilo que eles teriam de nomear pela primeira vez (cf. Crátilo, 438a-b). Há falhas compreensíveis (falhas humanas) nesse processo em que, antes de conhecer as realidades pelos seus nomes, é justamente com o objetivo de conhecê-las que os nomes devem ser criados. As expectativas de naturalistas como Crátilo são elevadas demais: os nomes não comportam toda a essência dos objetos nomeados, como intuiu Carlos Nejar num de seus poemas (poema XV de “A chuva do Velho Testamento”):

 

Deus não é a palavra Deus

e andorinha,

a palavra andorinha.

 

Há um poço

que não entra

na palavra poço. [26]

 

Os nomes podem ser apenas parcialmente adequados à essência das coisas, há diferentes graus de correção, e por isso precisamos contar com o elemento da convenção para garantir a comunicabilidade entre os falantes. Uma certa arbitrariedade é necessária, pelo menos no atual estágio da humanidade falante, na medida em que a linguagem não é consubstancial à realidade que pretende exprimir. “A convenção é um expediente inevitável que completa a relação parcialmente natural com a coisa nomeada”, resume Jorge Piqué em interessante estudo. [27]

  Pensando com Sócrates, que pensa em exemplos da sua realidade lingüística, podemos perceber claramente que palavras existem cuja pertinência comunicativa deve muito, ou quase tudo, ao costume e à convenção legitimadoras. Não conseguimos atribuir-lhes uma razão convincente, mesmo que a possuam. E não seria exatamente por essa hipotética razão que a empregaríamos. A palavra “crina”, por exemplo, em referência ao pêlo do pescoço do cavalo, eu a uso sem saber que “crinis”, em latim, referia-se à cabeleira (o rastro) brilhante dos cometas, [28] que se tornou metáfora para os cabelos brilhantes femininos, e mais tarde para o pêlo do pescoço eqüino, mesmo que esse pêlo não seja especialmente brilhante. Foi na convenção que me apoiei. Do céu à estrebaria, passando pela cabeça das mulheres, a palavra percorreu um caminho identificável. Contudo, não passa pela cabeça de ninguém, ou de pouquíssimos passará, que foi essa a sua trajetória. Graças tão-somente ao hábito coletivo, que me afirma ter a palavra “crina”, hoje, o significado que tem, olho para a crina do cavalo e digo “crina”, sem a menor referência ao brilho do cometa.

Em termos práticos, a justeza da aplicação dos nomes, para que se realize a mútua compreensão entre falantes, depende da convenção não só quando esquecemos ou desconhecemos suas motivações e explicações etimológicas, mas também quando essas motivações e explicações, ao que tudo indica, inexistem no plano material dos sons e nasceram de um “acordo” tácito posterior, sem maiores lucubrações. Se uma palavra parece ter um significado por si mesma, mas no espírito daqueles que a usam assume outro significado... isto significa que se convencionou algo distinto do que estaria implícito na própria palavra. Neste caso, o que estamos pensando, ao falar, será compreendido por outros falantes por força desse “expediente banal, a convenção” (Crátilo, 435c). A convencionalidade é um recurso de qualidade inferior, mas será ele a afiançar o sentido de muitas palavras, para não dizer da maioria delas, se pensarmos que a pesquisa etimológica não ocupa os primeiros lugares entre as nossas preocupações diárias.

No caso da língua portuguesa, procurando atualizar o enfoque, temos por exemplo a palavra “sanguessuga”, que designa um invertebrado que suga o sangue de vertebrados. A expressão procede do latim sanguis e do verbo sugo, gerando “sanguesuga” (séc. XVI), “sambixuga”, “sanguichuga” e “sanguisuga” (séc. XVII), “sanguexuga” e “sanguexupa” (séc. XVIII), entre outras atuais possibilidades, conforme as regiões brasileiras e portuguesas: “sambexuga”, “samessuga”, “samexuga”, “samexunga”. Particularmente sugestiva é a presença, em todos os casos, da vogal /u/ — ao pronunciarmos o “u”, materializamos com os lábios a idéia de sucção com a boca, o chuchar, o chupar, o sugar da sanguessuga.

De qualquer forma, o termo ganhou um significado a mais, o do indivíduo que explora os outros, pedindo favores ou dinheiro de forma abusiva (há registros em autores do século XIX). Se um falante que conhece o sentido originário não está a par, de acordo com a convenção estabelecida, de que existe esse uso jocoso da palavra poderá ficar a ver navios se a ouvir num outro contexto que não o da zoologia. [29]

A convenionalidade garante o automatismo da troca de idéias (ainda que sempre imperfeita), da transmissão de informações (ainda que sempre sujeita a lacunas), da explicitação de mandatos (ainda que sempre falível), da manifestação de sentimentos (ainda que sempre limitada). Não somos geniais onomaturgos capazes de, a cada instante, captar em meio às palavras de uso rotineiro, a nominalidade intrínseca de cada ser. (Suspensa sua descrença quem descrê nessa nominalidade, e imagine como seria trabalhoso estar ciente da aderência ao ser da coisa nomeada de cada palavra pronunciada ou ouvida.)

 

 

Como tornar-se um onomaturgo (mesmo que de segunda categoria)

 

Como quem não quer nada, subitamente Sócrates deixa cair o ensinamento: o único modo autêntico de dar nome às coisas não é o modo arbitrário, pela imposição ou pelo capricho. O modo adequado de nomear as coisas é o modo natural, deixando vir à luz o ser das coisas, deixando que este ser venha à tona (cf. Crátilo, 387d). Trata-se de um ato cognoscitivo, portanto. A pessoa ouve e acolhe o nome ontológico, o nome em si da coisa, sua intimidade. Este modo natural, no entanto, não nos é... natural. Não se dá sem que precisemos fazer esforços, e esforços intelectuais e volitivos que, paradoxalmente, são esforços para não dominar, não forçar, não impor. Sócrates, em seu fazer etimológico, procura “cavar” as palavras (mas ao estilo de um arqueólogo, com cuidado para não machucá-las, sabendo porém que ao mesmo tempo são dúcteis e flexíveis), em busca deste “dizer” que a coisa diz de si mesma — “dizer” sepultado vivo sob o nome fônico, que é simultaneamente via privilegiada para remontar às origens conceituais. E a este “dizer” precisamos também dizer alguma coisa, dizer quem somos nós, o que pensamos, o que queremos.

Embora idealmente tenha havido, nos primórdios, onomaturgos que fizeram o trabalho inicial de criar nomes fônicos para as coisas, procurando sintonizar esses nomes fônicos com os nomes ontológicos (com a essência das coisas), fazendo-o, como vimos, de maneira nem sempre correta (pois realmente é uma árdua tarefa!), cabe às pessoas imbuídas da firme paixão de conhecer (essas pessoas Sócrates chama de “dialéticos”) realizarem a tarefa uma vez mais, estejam elas mergulhadas no idioma que for, pertençam a esta ou àquela sociedade, seja qual for o ponto da linha do tempo em que se encontrem.

E para levar a cabo esta tarefa falta-nos discernimento. Discernir, neste contexto, é o modo pelo qual “o espírito delimita, com o nome sonoro, o nome em si apreendido”. [30] Isto inclui revisar criticamente a forma como as palavras são empregadas, imprimindo-lhes renovada verdade. Inclui perceber em que medida determinado nome sonoro não se tornou mera “etiqueta” externa à coisa nomeada. Inclui recuperar o vínculo inteligível porventura existente entre palavra e realidade, como, por exemplo, o que existia entre “defunto” e a noção, bem menos macabra e muito mais humana, de que aquele ser já cumprira a sua “função” nesta vida, a sua “missão” existencial. [31]

Observador da realidade, e das palavras com que tentamos designá-la, o dialético (que podemos definir como um onomaturgo crítico) desenterra das palavras abandonadas à rotina, ao desgaste do uso irrefletido, a primeira apreensão que gerou o vínculo entre som humano e coisa, supondo-se que essa primeira apreensão de fato captou o ser da coisa, com a maior conformidade possível. E se não consegue desenterrá-la, procura de algum modo recriar (poeticamente) palavras que expressem o acontecimento ontológico. Este fenômeno ocorre entre os poetas com livros editados, mas também entre os poetas anônimos do povo, do cotidiano. Certa vez, ouvi um motorista de táxi em São Paulo dizer que, em sua categoria profissional, havia os “mortoristas”, aqueles que dirigem tão mal que põem em risco a sua vida. E para lembrar um poeta brasileiro com espírito onomatúrgico, transcrevo o poema Seu metaléxico, em que José Paulo Paes cria neologismos mediante processo de amalgamação, no qual cada verso-palavra, antes de concluir-se, metamorfoseia-se com o súbito acoplamento de outra palavra que vem desmentir o significado que se desenhava na mente do leitor: [32]

 

economiopia

desenvolvimentir

utopiada

consumidoidos

patriotários

suicidadãos [33]

 
Neologismos adequados, que deixam as coisas falarem por si, possibilitam o contato pleno (ou quase pleno) com a realidade. Um contato parcial, mas significativo. Sabemos como é trabalhoso chegar a esse contato, uma vez que o discurso, no qual estamos mergulhados, é de “natureza híbrida, verdadeira e falsa ao mesmo tempo” (Crátilo, 408c). Mais uma vez teremos que exercitar o discernimento, do latim discernere (que remonta ao grego krínein): “distinguir”, “criticar”, “avaliar”, “decidir”, “julgar”, “reconhecer”, em que está implícito o ato de penetrar profundamente numa questão, procurando compreendê-la com o máximo de rigor, sensibilidade e criatividade.

Discernimento não significa, pelo menos para o poeta, exclusão dos matizes, dos paradoxos, dos contrastes, das ambivalências e até das contradições. Ao contrário, discernir é aceitá-los, é vê-los com clareza. O poeta não teme o hibridismo das palavras, a ambigüidade (mais ainda, reclama o “direito à ambigüidade”, como dizia Barthes), [34] o duplo, o triplo sentido, a possibilidade de várias interpretações. Tudo isso não fere a verdade das coisas, mas amplia nossa visão das coisas em sua complexa verdade. Eis um traço do realismo poético: não se espantar (e muito menos se desesperar) perante a fluidez das palavras, limitados instrumentos para conhecer a realidade, esta realidade que desejamos descrever e transcrever, sobre a qual fabulamos.

Ser autêntico onomaturgo, hoje, é ser poeta. O poeta relativiza as arbitrariedades. Encontra inusitadas motivações e, “brincando” com as palavras, repensa e redescobre sempre outros aspectos da mesma e polifônica realidade. Penso numa história que brinca com a possibilidade de recriar as palavras em consonância com novas verdades — Chapeuzinho amarelo, de Chico Buarque. Menina cheia de medos, supera-os ao inverter as sílabas das palavras daquilo que a amedrontava, em busca de uma realidade que, analisada em seu todo, não deveria, afinal, causar esse medo todo. O perigoso lobo tem outras facetas, passa a ser um mero “bolo”: o lobo devorador torna-se também bolo a ser comido. O raio, visto de certo ângulo, é também inofensivo “orrái”. A barata é agora um bichinho bobo chamado “tabará”. A bruxa, virada pelo avesso, é uma simples “xabru”. O dragão reduziu-se a um “gãodra” qualquer. E o diabo, quando exorcizado, é um “bodiá” indefeso. As crianças (e os poetas o são no nível verbal) intuem os mecanismos internos da palavra reinventável e recriadora. O poeta muda a cor do capuz da personagem, e a personagem transforma o temor em autocontrole. Liberdade para refundar as histórias e os sentidos. [35]

 

O poeta lida bem, lida criativamente com o fato de que as palavras não são o reflexo absolutamente exato das coisas. As coisas ultrapassam as palavras. Sempre há um espaço, um gap: é neste “entre” que o poeta entra. Sócrates, quase no final do diálogo, faz ver a Crátilo como seria ridiculamente absurdo se as coisas sonoras (as palavras) fossem a reprodução exata das coisas elas mesmas: “tudo ficaria duplicado, sem que ninguém fosse capaz de dizer qual era a própria coisa, e qual o nome” (Crátilo, 432d). Na sempre imperfeita (e humana!) falha entre a palavra e a coisa, o poeta se instala dinamicamente. Desse “lugar nenhum” contempla as forças da convencionalidade e as razões da natureza. Atraído por estas e pressionado por aquelas, o poeta transforma o arbitrário em arbítrio, do irracional parte para a intuição. O poeta, em sintonia com o verbo grego poiéin (“fazer”, “produzir”), produz palavras, imagens loqüentes, sentidos sugestivos, faz captações de sentimentos, apreensões de realidade.

Deste “ponto de vista” poético, deste mirante, o poeta percebe que pode produzir as palavras que quiser, mas o que vier a dizer pode não ter a menor relevância aos ouvidos de quem se considera socialmente importante. O poeta Manoel de Barros sabe:

 

Poeta seria o mesmo que parvo. É um sujeito que, em vez de mexer com borboletas, pedras, caracóis, mexeria com as coisas úteis. [36]

   
No entanto, mesmo os atilados que mexem com as coisas úteis podem experimentar a inquietação poética. “A poesia não exige nenhum talento especial mas uma espécie de intrepidez espiritual, um desprendimento que é também uma desenvoltura.” [37] Exige a vontade de conhecer (de resto inerente a todos nós), algo mais radical do que buscar dados genéricos ou informações passageiras. “Connaissance”, para o poeta Paul Claudel, era “co-naissance” — conhecer, co-nascer, nascer com aquilo que conhecemos. Qualquer um pode experimentar esse momento em que, ao conhecer, renasce como conhecedor, como ser que lê o lógos. A palavra geradora de excitação, entusiasmo. Manoel de Barros de novo:

 

O que eu tenho é excitação pela palavra. Se uma palavra me excita, eu busco nos dicionários a existência ancestral dela. Nessa busca descubro motivos para o poema. [38]

 

A ancestralidade da palavra torna-se inspiradora e motivadora. E tudo aquilo que a nossa civilização calculista, imediatista, “rejeita, pisa e mija em cima”, [39] incluindo as “curiosidades” etimológicas, [40] são valores inspiradores e motivadores para o poeta. Porque o poeta (aquele que se dispõe a ver/viver em estado de poesia, mesmo que esporadicamente, fortuitamente...), [41] mediante o convívio com as palavras, lutando com elas ou beijando-as com ternura, o que o poeta quer é apenas a poesia... e a poesia, segundo Adélia Prado, é “a revelação do real”, “abertura para o real”. [42]

 

 

Labirintos dentro do labirinto

 

À medida que entramos, na companhia de Sócrates, Crátilo e Hermógenes, no labirinto das palavras, descobrimos labirintos dentro do labirinto. O labirinto é a própria linguagem, no “interior” da qual encontramos novos e velhos caminhos, que nos levam a becos e bifurcações... que nos conduzem de novo ao cerne do labirinto.

O labirinto abre possibilidades que se desdobram. A vitória de quem entrou no labirinto é crescer em sabedoria antes mesmo de sair, se é que dele sairemos um dia. De qualquer forma, fomos chamados a explorá-lo, a percorrer seus túneis intermináveis. Hermógenes precisa descobrir que a convencionalidade é limitada e que existem razões genuínas para os nomes (razões que a própria razão desconhece...). Crátilo precisa descobrir que a ideal e até desejável consubstancialidade entre palavra e coisa é um sonho do qual deve acordar, admitindo a contingência, a falha e, como “remendo”, uma dose de convenção que assegure a comunicabilidade.

E o que Sócrates precisa aprender? Ele mesmo se encarrega de nos avisar que precisa tomar cuidado (e nós também), ao seguir no rasto dos nomes (cf. Crátilo, 436b). A etimologia é caminho privilegiado de conhecimento, mas não isento de perigos. O labirinto está repleto de armadilhas e desvios (maravilhosos desvios... como aquele que levou uma pessoa a afirmar que “meditar” adviria de “me ditar”, “ditar-me”...).

Sem recairmos na afirmação categórica de Turgot, dois séculos antes do conceito saussuriano da arbitrariedade do signo lingüístico — “les mots n’ont point avec ce qu’ils expriment un rapport nécessaire”, no verbete “etimologia” da Encyclopédie organizada por Diderot e d’Alembert —, ou, em outras palavras, que as palavras mantêm uma relação inteiramente contingente com os objetos (nominalismo de corte burguês, segundo Walter Benjamin), verdade seja dita: não se pode ter certeza absoluta sobre a adequação inicial entre sons humanos e essência das coisas. Por isso, por mais fascinante que seja brincar com as palavras e admirar-se com o que nelas se revela, convém, para investigar o real, não apenas saborear as palavras, mas, em dado momento, ir decididamente em direção às coisas elas mesmas. Os onomaturgos tiveram a sua oportunidade, mas talvez tenham sido vítimas do labiríntico, talvez tenham imaginado que o mundo é impermanente, que nada subsiste, e caíram em certa confusão.

O verdadeiro “inimigo” de Sócrates não é Crátilo, mas Heráclito, segundo o qual todas as coisas sensíveis estão em fluxo perpétuo e não podem ser objeto de ciência. Com efeito, se existe algo que incomoda Sócrates é esta visão de mundo em que se concebem “as coisas como pessoas atacadas de defluxo e com o nariz sempre a estilar” (Crátilo, 440d). A imagem não poderia ser mais engraçada e eloqüente, e entende-se como o heraclitiano Crátilo deve ter se sentido ofendido, revidando com aquele conselho impertinente de que Sócrates deveria refletir melhor sobre o assunto (cf. Crátilo, 440e). Defluxo é o corrimento causado pela inflamação da mucosa nasal. O fluxo e o movimento contínuos impediriam o conhecimento. As coisas “gripadas”, “fungando” o tempo todo, estão sempre alteradas. Não são elas mesmas. Como podemos conhecer o que é, se o que é nunca é aquilo que é?

Sócrates  parece liberar os dois, Hermógenes e Crátilo, do labirinto. Diz que os dois já podem partir para o campo (cf. Crátilo, 440e), conforme haviam combinado. Ele, Sócrates, ficará sozinho, refletindo sobre este e outros diálogos, descansando talvez do “surto” etimológico. O campo (agrón) é o aberto, em oposição à cidade. Sócrates indica-nos o seu destino pessoal: permanecerá no coração do labirinto, à espera de novos interlocutores.

 

 

 

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[1] Depois de escolher e escrever a palavra “talofa”, ao sabor casual das combinações silábicas (talvez inconscientemente influenciado pelas sílabas da palavra “sofá”...), fui pesquisá-la, por curiosidade. Inexistente em nossa língua, é no entanto muito freqüente... nas ilhas Samoa (Oceano Pacífico), região que se tornou famosa na década de 1980 por ter servido de cenário para as filmagens de Lagoa azul, com Christopher Atkins e Brooke Shields. “Talofa”, no idioma samoano, é um cumprimento. Corresponde ao “hello”, ao “olá”, e também pode ser utilizado para desejar bom dia.

[2] Sedere em contraste com stare, “estar de pé”, e com cubere, “estar deitado”. Na antigüidade, sella era “cadeira” ou a sela em que se sentam os cavaleiros.

[3] Hermes (o nome latino desse deus é Mercúrio) representava para os helenos “o ?ó????, o sábio, o judicioso, o tipo inteligente do grego refletido, o próprio Lógos”. Junito BRANDÃO, Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega (vol. I), p. 551.

[4] Poesia completa e prosa, p. 905.

[5] Por outra parte, o próprio Saussure consegue entrever que “não existe língua em que nada seja motivado” (Curso de lingüística geral, p. 154). Uma motivação relativa e tímida, baseada nas regras de construção. Por exemplo, a palavra “dezenove” é motivada pela associação de “dez” e “nove”, mas o autor não vai muito mais longe.

[6] Cf. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral, p. 33.

[7] Esta expectativa e esta cobrança de Nietzsche devem-se, provavelmente, ao modo pessoal como o pensador alemão encarava o verme, e a palavra “verme”, em conseqüência. Enfatizando esse lado “humilde”, "submisso" , conforme o aforismo 31 de O crepúsculo dos ídolos, o verme é aquele que “se enrola (krümmt sich) quando nele pisamos”, é aquele que “doubles up”, numa tradução inglesa.

[8] Cf. Ivonne BORDELOIS, A palavra ameaçada e Etimología de las pasiones.

[9] Cf. J. Mattoso CÂMARA JR., Contribuição à estilística portuguesa, p. 41.

[10] Olavo BILAC, Poesias, p. 250.

[11] Paulo LEMINSKI, La vie en close, p. 12.

[12] Em Cadernos do CNLF - Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos, Série VIII, nº 7 - http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno07-11.html Acesso em: 23 abr. 2005.

[13] Pedro NAVA. Beira-Mar: memórias 4, p. 192.

[14] Ibid.

[15] Os versos encontram-se numa das estrofes do poema, em: Mário de Andrade, Poesias completas, p. 160:

Os dois estavam felizes.

Na altura tudo era paz.

Pelos caminhos estreitos

ele na frente, ela atrás.

E riam. Como eles riam!

Riam até sem razão.

 
[16] Noam CHOMSKY, Linguagem e pensamento, p. 92.

[17] Susan SONTAG, “A escrita como leitura”, em Questão de ênfase, p. 340.

[18] Ibid.

[19] Ruth ROCHA, Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias, p. 9.

[20] Cf. Martin HEIDEGGER, A caminho da linguagem, p. 138.

[21] Não sejamos ingênuos, porém. Voltaire, aqui, possivelmente está zombando da etimologia, que ele considerava uma “science où les voyelles ne sont rien, et les consonnes fort peu de chose”, aforismo a ele atribuído por Max Müller, em Lectures on the science of language, p. 238, nada que nos pudesse causar estranheza, observa Müller, pois um homem que relutava em acreditar em qualquer tipo de milagre certamente desconfiaria dos “miracles of etymology”. Outros dois grandes autores franceses, Rabelais e Molière, apoiados em Cícero e Roger Bacon, ridicularizavam as especulações etimológicas excessivas e inverossímeis.

[22] Lorenzo HERVÁS Y PANDURO, Catálogo de las lenguas de las naciones conocidas, p. 6.

[23] Charles LENORMANT, Commentaire sur le Cratyle de Platon, p. 1.

[24] Jean-Jacques ROUSSEAU, “Essai sur l’origine des langues”, em: Œuvres (tome IV), p. 516.

[25] Arnaldo ANTUNES, Como é que chama o nome disso, p. 146.

[26] Carlos NEJAR, O chapéu das estações, p. 56.

[27] Jorge Ferro PIQUÉ, Linguagem e realidade: uma análise do Crátilo de Platão, p. 177.

[28] Do grego “komêtés”, “de longa cabeleira”, que designava também o “coberto de pêlo” e o “guarnecido de asas”. Agradeço ao Prof. Marcos Lorieri a lembrança, neste contexto, do “rabo-de-cavalo”, penteado em que os cabelos ficam atados no alto da cabeça, e pendem à semelhança do rabo de um eqüino...

[29] Apenas um registro. Em 2006, a Polícia Federal (PF) brasileira deflagrou a “Operação Sanguessuga” para desarticular esquema de fraudes em licitações na área de saúde. O grupo criminoso ficou conhecido como a “máfia das ambulâncias” ou também a “máfia dos sanguessugas”.

[30] Humberto GIANNINI, Desde las palabras, p. 44.

[31] Recolhi este e outros registros etimológicos num pequeno livro, atualmente esgotado, Palavras e origens, publicado em 2002. Existem nas livrarias outras publicações com este mesmo caráter de divulgação: A casa da Mãe Joana, de Reinaldo Pimenta (dois volumes), pela Editora Campus; Dentro do dentro: o nome das coisas, de M. F. Whitaker, pela Editora Mercuryo; Dicionário da origem das palavras, de Orlando Neves, pela Editora Notícias; A origem curiosa das palavras, de Márcio Bueno, pela Editora José Olympio.

[32] Escrito na década de 1970, o poema é uma crítica ao momento político-econômico brasileiro. E não deixa de ser uma curiosidade a ser mencionada o fato de que José Paulo Paes foi um dos três tradutores do Curso de lingüística geral, de Saussure, publicado em 1969 pela Cultrix, o que demonstra seu preocupação, naquela altura, tanto com as questões políticas como com a reflexão sobre a linguagem.

[33] José Paulo PAES, Melhores poemas de José Paulo Paes, p. 131.

[34] O poeta não se irrita, por exemplo, ao deparar com o conhecido coelho-pato de Joseph Jastrow —  —, mas vê despertar em si a verve, a vontade de nomear este “patoelho” ou “coelhato”, monstro benévolo que, dependendo das ocasiões, corre como um coelho ou nada como um pato. E, pensando bem, sua carne pode agradar a pelo menos dois tipos diferentes de clientes...

[35] Guimarães Rosa escreveu uma “nova velha estória”, plagiando criativamente a história de Chapeuzinho Vermelho: “Fita verde no cabelo”, em Ave, palavra. A adolescente, indo visitar a avó, escolhe tomar um caminho “louco e longo, e não o outro, encurtoso”. Não encontrou lobos pelo caminho, pois todos já haviam sido exterminados pelos lenhadores da localidade. Fita-Verde encontra encontra sua avó moribunda e presencia sua morte.

[36] Entrevista à Revista Caros amigos, n. 117, dezembro de 2006, p. 31.

[37] Octavio PAZ, Signos em rotação, p. 115.

[38] Entrevista à Revista Caros amigos, n. 117, dezembro de 2006, pp. 30-31.

[39] Referência ao poema “Matéria de poesia”, de Manoel de BARROS, Matéria de poesia, p. 13.

[40] Certa vez, recebi do professor Arnaldo Mandel (IME-USP) o seguinte comentário a artigo que escrevi para o Observatório da Imprensa (o artigo intitula-se “Palavra com alma: a etimologia midiática”, http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=408FDS002 Acesso em: 20 dez. 2006) — “A etimologia é um simples acidente de origem das palavras, mera curiosidade, às vezes divertida, como mostra esta matéria. O real significado é aquele determinado pelo uso; fica para os filólogos o gostinho de dizer o que as palavras que ninguém usa significam.”

[41] E de poetas a melhor prosa também pode se orgulhar, como é o caso dos romancistas Autran Dourado e Lygia Fagundes Telles, que consultam a etimologia para dar nomes aos seus personagens e aprofundar outras questões.

[42] Entrevista ao Cadernos de literatura brasileira, n. 9, junho de 2000, p. 23.