Entrevistas Transcendentais: Augusto dos Anjos

O caminho da Estação Ferroviária de Leopoldina até a casinha modesta cuja foto conduzo não é muito longo, e faz-se a pé, passando por uma ou outra ladeira para lembrar que estou de volta a Minas. São cerca de três horas da tarde. O sol doura em diagonal os telhados, o campanário de uma igrejinha próxima, os pés de castanhola que enchem a calçada de frutos escurecidos e folhas.

Sigo pela rua estreita e com pouco movimento àquela hora. Creio que consigo captar um pouco da lentidão e de uma certa apatia das cidades interioranas ainda não violentadas pelo progresso do tempo em que nasci.

A casa tem uma porta e duas janelas à frente, teto agudo. Paro diante do portão e bato palmas. Ele aparece, com o terno branco e a gravata bem composta de quem espera visitas. Vem abrir-me o portão. Sua mão é magra e firme, embora um pouco trêmula. O bigode fino é bem cuidado. Mantém-se empertigado e gentil. 

 

Entramos no corredorzinho estreito, e dali para a sala do lado esquerdo. Sentamos em cadeiras de palhinha. D. Ester, a esposa, traz uma bandeja com suco de maracujá, biscoitos, fatias de queijo bem arrumadinhas.

BT – Professor Augusto, espero que não se incomode se eu usar este tratamento.
 

AA – Pelo contrário. Ser professor é uma das minhas alegrias, e o digo com orgulho. Não desejaria outro título se não este.


BT – O senhor é uma pessoa que soube conciliar a atividade profissional e a prática da poesia, sem prejuízo de nenhuma das duas.
 

AA – Espero ter conseguido. Nem sempre foi fácil. Na Paraíba, deparei-me muitas vezes com alunos esforçados mas absolutamente sem preparo, sem qualquer base sequer para entender as matérias que me solicitavam. Depois que cheguei ao Rio de Janeiro, o problema era conseguir alunos, visto que eu era jovem e totalmente desconhecido. O processo didático, portanto, ocorria numa moldura de infindáveis contratempos, mal-entendidos, adiamentos, tensões de toda ordem. Mas, abstraindo este aspecto, sempre vi com esperança o ato de ensinar. Não há experiência mais reconfortante do que ajudar uma pessoa a pensar por si mesma, e a manejar com segurança conceitos que pouco tempo atrás lhe eram estranhos.


BT – E a poesia? Escrever poesia era uma ação fluente?
 

AA – Nunca o foi. Criou-se em torno de mim, talvez pelo entusiasmo dos amigos mais generosos, a idéia de que eu compunha de memória os meus poemas mais longos. Na verdade eu não o fazia por inteiro. Sempre gostei de compor meus versos em pensamento, revisando-os sem parar, repetindo-os em voz alta, andando pelo quarto. Quando tinha uma quadra completa, com todos os senões expurgados, então sim, eu me sentava à mesa, tomava pena e papel e a copiava por escrito. E repetia o processo até me dar por satisfeito.

 

Ter-me-ia sido impossível compor mentalmente, por inteiro, os meus poemas longos. Já um soneto... sim, um soneto é possível.


BT – Acho que, entre tantos elementos que impressionam os seus leitores, a sonoridade das frases é um dos que mais pesam.
 

AA – Espero que sim, porque sempre vi isso na grande poesia clássica, em Homero, em Dante, em Virgílio. A poesia, refiro-me à grande poesia, à qual sempre aspirei, precisa de uma dicção elevada, próxima à dos cânticos religiosos. Há que existir nela uma sonoridade que se imponha por si mesma, antes mesmo que o sentido das palavras seja percebido.
 


BT – O senhor deve ter percebido, professor Augusto, na documentação que enviei para solicitar este nosso encontro, que me referi ao termo “ficção científica”, como um dos meus campos de estudo. Reconhece esta expressão? É do seu tempo?

AA – Não, não creio tê-la encontrado antes. Por outro lado, no meu tempo falava-se em “poesia científica”. Era termo corrente, embora sem muito destaque, quando estudei na Faculdade de Direito, no Recife. Foi usado, por exemplo, pelo grande Martins Júnior, que foi uma influência para todos da minha geração, para descrever sua própria poesia. Um homem culto, vibrante, eloquente, com quem convivi a certa distância, mas sempre com muita admiração. Ele nos abriu muitas portas, foi um dos que me convenceram de que a poesia poderia perfeitamente suportar o peso dos conceitos e das idéias propostas pela ciência.


BT – Em sua época isso era algo até chocante, durante o predomínio absoluto do Parnasianismo, com suas imagens colhidas na mitologia grega, na antiguidade clássica, no mundo medieval...
 

AA – Imagens às quais eu próprio não me furtei, pois as admirava, e isso pode ser facilmente constatado em minhas obras. Tenho grande apreço por sonetos como “Vandalismo” ou “Vencedor”, que num exame apressado muitos não considerariam típicos da minha temática.

 

Por outro lado, acreditava e ainda acredito que muitos poetas trazem consigo, além de um vocabulário, uma visão, um ponto de vista intensamente pessoal sobre o seu mundo. Foi isso que tentei realizar, com humildade, mas com persistência. Se o consegui ou não, não me compete dizer. Em todo caso, senti que o campo da ciência e da filosofia poderiam muito bem expandir-se para o interior do campo da poesia, sem prejuízo de qualquer delas, pelo contrário, com um influxo positivo de percepções e de abstrações de nível mais elevado.


BT – O que me diz da ciência no mundo de hoje? Correspondeu às suas expectativas, superou-as, decepcionou-as?
 

AA – Jamais cultivei pretensões precognitivas, de modo que minha curiosidade é grande mas minhas surpresas são poucas. Aceito o que o tempo e o destino nos impõem. Em todo caso, eu chamaria sua atenção, se me permite, para um aspecto em que o seu mundo se distingue do meu.

 

As cidades em que vivi eram precaríssimas em termos de solidez material, de limpeza, de higiene, de saúde. Sei que seus contemporâneos têm muito com que se preocupar; mas, em meu tempo, nossos terrores eram a tuberculose, a lepra, o cancro, a varíola, as sempre renovadas gripes. As ruas eram esgotos a céu aberto. A higiene pessoal era precária, e quando doenças nos acometiam, recebíamos os mais abstrusos receituários de preparados químicos para serem aplicados na pele, nos olhos, nos órgãos em geral. As casas tinham mau cheiro e enchiam-se de insetos.

 

Observando à distância, conforme me é dado, as condições de vida da sua época, percebo que houve uma mudança salutar, em todos os sentidos do termo. Infelizmente uma tal mudança não é acessível a todos, e nas periferias e nos casarios dos miseráveis vive-se ainda em condições sanitárias de um século atrás. É como se o futuro tivesse chegado, mas não para todos.

 

BT – O senhor falava em seus versos sobre assuntos que eram proibidos aos poetas, em nome do bom gosto e das boas maneiras. Talvez essa sua visão crítica tenha contribuído que que o chamassem “o Poeta da Morte”.
 

AA – O que é em parte uma injustiça, pois se me perdoa a pouca modéstia, eu me classificaria como “o poeta do ciclo da morte e vida”, pois aos meus olhos os dois fenômenos estão inextricavelmente ligados, fazem parte de um só processo. “Poeta da evolução universal”, talvez, se isso não soasse grandiloquente demais.


BT – E a Paraíba? Dizem que o senhor saiu de lá magoado, e pediu para não ser enterrado naquele solo.
 

AA – Todos nós somos sujeitos a reações emocionais, a nevroses, a atitudes impulsivas que às vezes contradizem de forma cabal os ideais mais elevados que cultivamos. Tenho amor à Paraíba. Aquela terra é o húmus que alimentou minhas células desde a fase embrionária, considero-me parte dela. Tenho amor àquele povo, principalmente àquelas pessoas mais modestas, homens e mulheres anônimos e de pés descalços que velaram pela minha infância. Sabem ser solidários nos momentos de aperreio, vivem frugalmente por terem a percepção intuitiva de que não é via acúmulo de bens materiais que evoluímos, e sim no aperfeiçoamento de nossa disposição de espírito e no modo como ele se revela no trato com os nossos semelhantes.


BT – Não guardou mágoas, então.
 

AA – Não! Como poderia? Sou uma parte da Paraíba, sou feito daquela terra rica do meu engenho, e nunca o constatei tanto quanto ao chegar no Rio de Janeiro, com a ambição de ser reconhecido, ali, como um igual. E percebi logo que meu modo de trajar, de falar, de agir, provocava em todos um estranhamento imediato. Se um dia visitar minha sepultura, como o fazem muitos que aqui vêm, pode considerar aquela pequena campa um pedaço de terra paraibana. Dar-me-á alegria se o fizer.


BT – Por outro lado, parece que sua integração aqui em Leopoldina se deu de maneira mais harmoniosa. Excetuando alguns episódios talvez, que nem sei se são verdadeiros. Fala-se que as pessoas riam dos seus poemas...
 

AA – Leopoldina acolheu a mim e a minha família de coração aberto, foi um facho de luz em nossa vida. Quanto a esse episódio, é mais um exemplo de pequenas lições que a vida nos dá, sem nos aplicar a nulificação protetora de um anestésico. O fato é que certa noite, ao regressar para casa na hora da ceia, passei diante da residência de alguns conhecidos, e como a janela era próxima à calçada ouvi vozes lá dentro, e reconheci versos meus sendo recitados em voz alta. Entreparei para escutar, não sem um certo assomo de vaidade, e logo recebi o consentâneo castigo quando ouvi o trovejar de gargalhadas e de motejos que se seguiu. Paciência. Tenho, se me desculpa a pretensão, uma compreensão superior do mundo. Em momentos assim, creio ser a mim que cabe, na medida dos valores que me foram repassados e que procurei cultivar, tudo compreender, e perdoar o que for possível.


BT – Perdoou a Paraíba, então.
 

AA – Há muito tempo. Mas, o senhor que vai lá com certa frequência, o que me diz dela? Está muito mudada?


BT – É a mesma do seu tempo, e trocou de roupagem apenas. Continua a ser uma vasta propriedade rural administrada por um certo número de famílias alternadamente aliadas e antagonistas.
 

AA – Entre as quais, com toda certeza, umas estão minguando, e outras em franca expansão. Quer melhor comprovação da minha percepção da morte e da vida? As mangas e os cajus que não são colhidos caem e apodrecem no chão, e se desfazem em elementos químicos que por sua vez vão alimentar a relva e a própria árvore de onde vieram. As formas vegetais e animais são visões fugazes que temos de um lento processo de deterioração e renascimento.


BT – Sempre tive esta impressão diante de seus versos. Os outros poetas acham bonito o desabrochar de uma flor. O senhor vê beleza tanto no seu desabrochar quanto no seu
apodrecimento.
 

AA – A beleza está na dinâmica do processo transformativo. A ciência nos deu novas maneiras de enxergar. O microscópio pode nos revelar novas belezas, o telescópio, o espectroscópio. As transformações rápidas do mundo animal e vegetal, as transformações lentas do mundo mineral, tudo isso nos mostra um universo capaz de criar suas próprias leis e de segui-las. Como não se maravilhar diante de uma orquestração de efeitos tão vasta, e ao mesmo tempo tão perfeita em cada minúcia?


Despedimo-nos com novo aperto de mão. Da calçada, faço um aceno para D. Ester, que está à janela, com as duas crianças debruçadas ao seu lado, silenciosas, olhos grandes e atentos. Ele põe as mãos para trás, faz uma breve curvatura, formal, de despedida. Saio caminhando no friozinho de fim de tarde, rumo à estação ferroviária, e ao trem particular que está vazio à minha espera.

 

 

(Nota necessária: este série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.)