Entrevista com dois fotógrafos piauienses

ENTREVISTADO:

Paulo Gutemberg e Sérgio Carvalho

Rogério Newton - exclusivo para Entretextos

O Porto do Mucuripe, em Fortaleza, atraiu o olhar sensível do fotógrafo oeirense Paulo Gutemberg e do seu primo Sérgio Carvalho, natural de Simplício Mendes. Durante mais de quatro anos, em diversas andanças, eles produziram centenas de fotografias sobre aquele porto marítimo. Um dos resultados da parceria foi a publicação de “Docas do Mucuripe”, obra selecionada pelos editais de cultura FUNCET/Prefeitura de Fortaleza (2006) e Espaço Cultural dos Correios (2008). Apesar de ter sido apresentado na “orelha” como “documentário em preto e branco”, o livro é uma obra de arte, materializada numa edição primorosa, lançada em fevereiro deste ano no próprio porto, junto com a exposição das fotografias do livro, que ficou aberta à visitação pública até abril. Os autores preparam o lançamento em Teresina, previsto para o próximo mês de julho. “Docas do Mucuripe” expressa o refinamento da linguagem alcançado por Paulo Gutemberg e Sérgio Carvalho, resultado do apaixonado percurso de ambos no universo da fotografia.


As primeiras vivências de Paulo Gutemberg com a fotografia ocorreram durante sua infância, em Oeiras. Em meados da década de 1980, iniciou sua vida profissional como “free-lancer”, em Teresina, onde trabalhou como repórter fotográfico, editor, professor e assessor de comunicação. Com mais de 20 anos de estrada, fez várias exposições individuais, participou de eventos coletivos, fez pesquisas na Casa Anísio Brito, escreveu artigos e ensaios de crítica fotográfica e histórica. Em 2004, publicou o livro “Teresina”.


Sérgio Carvalho começou a fotografar em meados da década de 1990, registrando trabalhadores escravizados em fazendas do Norte do país. Em 2003, fez sua primeira exposição individual, “Colheita”, sobre as condições de trabalho nas fazendas de pimenta-do-reino do Sul do Maranhão. Além de “Colheita”, fez, entre outras, as seguintes exposições individuais: “Um olhar sobre o centro”, “Trilhos urbanos” e “Escravos”. Em 2005, ganhou o Prêmio de Fotografia Chico Albuquerque, com o trabalho coletivo “Gente do Delta”.


Nesta entrevista, Paulo Gutemberg e Sérgio Carvalho falam sobre “Docas do Mucuripe” e sobre o ofício de fotógrafo e revelam por que, em plena “era digital” e de “banalização da imagem”, elegeram a fotografia preto & branco como principal forma de exprimir sua arte.

Rogério Newton: Por que dois fotógrafos nascidos no sertão escolheram fazer um livro cujo tema é um porto marítimo?

Paulo Gutemberg: Talvez a escolha não tenha a ver com o sertão. Essa dicotomia (arre égua!) é antiga, vem dos reinóis portugueses que achavam um exílio ir pras brenhas, daí foi um pulo pra consolidar a imagem de isolamento-estranhamento do sertão que se tornou clássica com Euclides da Cunha. Mas, no fundo, parece que tudo partiu mesmo de um olhar estrangeiro: simplesmente percebemos a invisibilidade de um porto espremido entre o mar e a cidade, o que se juntou à vontade de explorá-lo e à possibilidade de revelar que o óbvio não é tão óbvio. Tudo isso acabou virando um livro de imagens.         

Sérgio Carvalho: Por ser do sertão só conheci o mar na adolescência, mas isso só aumenta a minha curiosidade para tudo que tenha relação com o mar. E todo fotógrafo é curioso por natureza, vive correndo atrás de novas imagens. O tema surgiu por acaso, de uma conversa sobre fotografia nas idas do Paulo a Fortaleza. Além disso, o Porto do Mucuripe está localizado numa região privilegiadíssima, num dos locais mais bonitos de Fortaleza e tem ligação com a cultura local, desde Chico Albuquerque, que publicou o livro “Mucuripe”, em 1954, sobre o cotidiano da pequena vila de pescadores. Na década de 40, Orson Wells também filmou na Vila do Mucuripe.  O que me causou estranheza é o fato de o tema não ter sido explorado ainda por fotógrafos locais, apesar da tradição fotográfica do Ceará, o que ajudou num reconhecimento do nosso ensaio desde o inicio.

Rogério Newton: Já se discutiu muito se a fotografia é arte ou não. Essa discussão está superada?

Paulo Gutemberg: Se está superada não sei. Ela tinha muito a ver quando prevalecia um conceito tradicional de arte e também de fotografia. Hoje, é até questionável falar em “fotografia” quando a imaginamos no ciberespaço. Acho que a arte está muito ligada à técnica, pois esta altera a percepção do mundo. Veja como soa esquisito a expressão “fotografia digital”, pois já não usufruímos das imagens fotográficas como dantes, vale dizer: a idéia que temos de fotografia não acompanhou a tecnologia de produção das imagens. Com a banalização da imagem, acho que essa discussão fica bem mais restrita.

Sérgio Carvalho: O reconhecimento artístico e cultural da fotografia ainda é muito recente. Nas ultimas décadas, a fotografia invadiu grandes galerias no mundo inteiro, alcançando preços inimagináveis.

Rogério Newton: Na orelha do livro, vocês o definiram como “documentário”, mas há evidente uso de recursos estéticos. Onde termina, no livro, o caráter documental e começa a arte?

Paulo Gutemberg: Essa pergunta remete à mesma dificuldade da anterior, e talvez tenhamos nos expressado de forma incompleta. O problema é que a idéia de documentário tomada ao pé da letra, como algo isento, objetivo, verdadeiro, que usa um código comum e universal para ser entendido, exclui a dimensão estética das imagens. O “estilo” documentário é também uma procura estética, seja na fotografia ou no cinema, sem dizer que todo documentário é sempre parcial. Como diria Diane Arbus, “A fotografia é um segredo do segredo”. No caso de “Docas do Mucuripe”, acho que a arte está no todo, já que é uma obra coletiva, desde a concepção, passando pela reunião de olhares, até a edição. O imponderável resulta disso.  

Sérgio Carvalho: É difícil definir até onde vai o documentário e onde começa a arte. Essa linha entre o documental e arte é muito tênue, mas creio mesmo que os dois caminham lado a lado. E essa tendência é muito bem vista. A fotografia passa a ser valorizada pelo que ela é em si, como expressão, muito mais do que documento. Acho que o livro traz permanentemente estes dois aspectos. È um registro documental, sem duvida, mas também traz toda uma concepção artística desde a sua concepção, com a utilização de recursos estéticos e gráficos.

Rogério Newton: Com a massificação da fotografia colorida, o preto-e-branco parece um elemento “arcaico”, mas, por outro lado, possui indiscutível potencialidade expressiva. A opção pelo preto e branco foi fundamentalmente estética?

Paulo Gutemberg: A gente entende e percebe melhor a força do preto-e-branco dentro da cultura fotográfica. Quando vemos uma foto p & b é como estivéssemos diante de uma enorme carga de significados que vão se acumulando na história da produção das imagens, na pintura, na fotografia e no cinema. A foto colorida é dispersiva, enquanto a p & b é síntese. Mas a escolha não foi só nossa, o próprio tema, o referente, como diriam os teóricos, pedia isso.  

Sérgio Carvalho: Foi uma opção estética, mas quase que imposta pelo próprio tema. O porto já é meio cinza, quase preto e branco, sem muita presença de cor. Além disso, o p & b permite fugir da relação imagem/realidade e criar composições mais dramáticas, mais plásticas, valorizando as linhas e as formas, o jogo entre luz e sombra, as expressões. Acho que por isso, por permitir esse rompimento com o realismo do simples registro, que meus trabalhos são na sua maioria realizados em p & b.

Rogério Newton: É possível afirmar que muitas fotografias do livro (como a dos pombos) sugerem pares de opostos (grande-pequeno, pesado-sutil, dado-construído, luz-sombra, opressão-liberdade) que “problematizam” dialeticamente o porto?  

Paulo Gutemberg: Me lembrei agora do Barthes. Ele dizia que a imagem de massa pra ser “entendida”, consumida, digerida, precisa de uma legenda. Num livro de imagens como o “Docas”, é prudente fazer poucas e gerais sugestões de significações, deixando ao leitor elaborar suas próprias legendas imaginárias. Essa leitura dicotômica (arre égua de novo!) pode ser válida, e ela parte de uma oposição maior que é a da natureza x cultura. Mas lembre-se: o olhar é ávido e chega a perfurar a superfície.     

Sérgio Carvalho: O livro expõe essa natureza ambivalente do porto em toda sua extensão: as jangadas e seus pescadores versus os grandes e modernos navios e seus operadores; os arranha-céus da beira-mar versus os galpões do porto; a aparente calmaria e o silencio versus a correria do cotidiano representada pela grande cidade à sua frente. Essas características foram se tornando visíveis com o tempo, com a nossa aproximação com o porto durante quase quatro anos de fotografia, fazendo uma fotografia com liberdade, subjetiva, com atenção nos detalhes, sem pressa.

Rogério Newton: A forma como o ser humano é retratado no livro sugere uma tensão permanente, não só estética. E sempre ele parece “pequeno” diante da “grandeza” dos navios, dos equipamentos, dos arranha-céus e (por que não dizer?) da economia que movimenta o porto. Uma das leituras possíveis é que há uma asfixia, quase um “esmagamento” do humano?   

Paulo Gutemberg: Algumas fotos do livro dialogam mesmo com a idéia de contraste homem-máquina, mas é quase impossível para quem vai ao porto e fique por lá por uns instantes que não perceba logo esse jogo de escala grande-pequeno, leve-pesado...  Isso é uma “imposição” do visual. O odor, por exemplo, que é uma coisa muito presente no porto, foi pouco registrado e passou batido na edição. Não traduzimos o cheiro forte do petróleo, do carvão, do trigo... Sei que isso é difícil, mas devíamos ter explorado mais essas coisas mais sutis como o som e o cheiro e sua relação com o visual. Depois de fotografar tanto o porto muitas impressões iniciais se esvaíram.

Sérgio Carvalho: Quando a fotografia deixa de ser vista e produzida apenas como documento, ela sugere, mais do que revela. E o ser humano, no livro, pode ser visto dentro dessa dicotomia de opostos do porto. O ser humano é a parte pulsante, que dá vida, ao mesmo tempo que é “engolido” pelos equipamentos, navios, o mar...

Rogério Newton: Admitindo-se que a fotografia pode (e deve?) servir como instrumento de politização, qual o sentido político do seu ofício de fotógrafo?

Paulo Gutemberg: A fotografia, como a imprensa, é servil. Ela serve a alguma coisa, a algum grupo econômico ou político, a uma idéia, à publicidade e à propaganda, aos governos e aos diversos tipos de ativismo político, desde os movimentos civis e de direitos humanos à ecologia... e por aí vai. Seu poder de prova, de verossimilhança, é geralmente usado para denunciar injustiças, a miséria, escândalos,  celebridades, etc., e ao mesmo tempo ancorar discursos políticos. Mas o uso social da fotografia nunca se dá fora de um contexto cultural, histórico e político. É muito difícil desvincular o uso da imagem de uma vontade, de uma intenção. O próprio ato de fotografar já é um recorte, uma seleção, imagine então a sua edição, manipulação, publicação... Acho que o ato fotográfico, o momento em que o fotógrafo faz uma síntese entre o olhar interno e o externo, pode viabilizar uma busca estética entre a arte e a política.            

Sérgio Carvalho: Não só a fotografia, mas toda e qualquer manifestação cultural, artística, pode e deve ser utilizada como instrumento de questionamentos, de mudança social, de denúncia... O meu começo na fotografia foi retratando trabalhadores escravizados no Norte do Brasil, na década de 90. Pessoalmente, me sinto mais a vontade fazendo uma fotografia mais humanitária, de valorização do ser humano.

Rogério Newton: Cartier-Bresson e Sebastião Salgado podem ser apontados como referências para seu trabalho de fotógrafo?

Paulo Gutemberg: Na área da fotografia documental há uma intensa troca de experiências, e ao mesmo tempo uma renovação, seja temática ou de estilos, como nos dois grandes fotógrafos referidos na sua pergunta. Enquanto o primeiro fez escola valorizando o momento e o cotidiano, tornando o vulgar invulgar, o segundo retomou uma tradição pictórica tomando partido da luz e da técnica. Desde que embarquei nessa viagem fotográfica, não me canso de ver e rever o que os outros fotógrafos de ontem e de hoje inventaram. Daí não me colocar numa escola específica, nem me importar de citá-los consciente ou inconscientemente. Um fotógrafo sempre saberá ver com os olhos de outro fotógrafo.

Sérgio Carvalho: Estamos num constante aprendizado. Leio e vejo fotografia diariamente. Somos influenciados pelos clássicos como Henry Cartier Bresson e por toda fotografia humanista francesa, da qual ele é o principal representante. Mas também por muitos fotógrafos contemporâneos como Tiago Santana, Celso Oliveira, João Ripper (com quem divido a minha próxima publicação) e muitos outros. Um dos fotógrafos que mais admiro é o piauiense José Medeiros (no casarão do antigo colégio Pedro II, em Teresina, há um museu com fotografias, livros e material utilizado pelo Zé Medeiros), que teve seu auge nas décadas de 40, 50 e 60, principalmente quando trabalhava na revista O Cruzeiro. Depois ele foi se dedicar ao cinema.


Maio/2010

Rogério Newton é escritor e defensor público