Entrevista a Clarice Lispector
Em: 15/05/2012, às 09H09
ENTREVISTADO:
Lygia Fagundes TelesEu pretendia ir a São Paulo para entrevistar Lygia Fagundes Telles, pois valia a pena a viagem. Mas acontece que ela veio ao Rio para lançar seu novo livro, Seminário dos Ratos. Entre parênteses: já comecei a ler e me parece de ótima qualidade. O fato dela vir ao Rio, o que me facilitaria as coisas, combina com Lygia: ela nunca dificulta nada. Conheço a Lygia desde o começo do sempre. Pois não me lembro de ter sido apresentada a ela. Nós nos adoramos. As nossas conversas são francas e as mais variadas. Ora se fala em livros, ora se fala sobre maquilagem e moda: não temos preconceitos. Às vezes, se fala em homens.
Lygia é um best-seller no melhor sentido da palavra. Seus livros simplesmente são comprados por todo o mundo. O jeito dela escrever é genuíno, pois se parece com o seu modo de agir na vida. O estilo e Lygia são muito sensíveis, muito captadores do que está no ar, muito femininos e cheios de delicadeza. Antes de começar a entrevista quero lembrar que na língua portuguesa, ao contrário de muitas outras línguas, usam-se poetas e poetisas, autor e autora. Poetisa, por exemplo, ridiculariza a mulher-poeta. Com Lygia há o hábito de se escrever que ela á uma das melhores contistas do Brasil. Mas, do jeitinho como escrevem, parece que é só entre as mulheres escritoras que ela é boa. Erro: Lygia é também entre os homens escritores um dos escritores maiores. Sabe-se também que recebeu na França (com um conto seu, num concurso a que concorreram muitos escritores da Europa) um prêmio. De modo que falemos dela como ótimo autor. Lygia ainda por cima é bonita (não sei se no retrato dá para perceber).
Comecemos, pois.
Como nasce um conto? Um romance? Qual é a raiz de um texto seu?
São perguntas que ouço com freqüência. Procuro então simplificar essa matéria que nada tem de simples. Lembro que algumas idéias podem nascer de uma simples imagem. Ou de uma frase que se ouve por acaso. A idéia do enredo pode ainda se originar de um sonho. Tentativa vã de explicar o inexplicável, de esclarecer o que não pode ser esclarecido no ato da criação. A gente exagera, inventa uma transparência que não existe porque – no fundo sabemos disso perfeitamente – tudo é sombra. Mistério. O artista é um visionário. Um vidente. Tem passe livre no tempo que ele percorre de alto abaixo em seu trapézio voador que avança e recua no espaço: tanta luta, tanto empenho que não exclui a disciplina. A paciência. A vontade do escritor de se comunicar com seu próximo, de seduzir esse público que olha e julga. Vontade de ser amado. De permanecer. Nesse jogo ele acaba por arriscar tudo. Vale o risco? Vale se a vocação for cumprida com amor, é preciso se apaixonar pelo ofício, ser feliz nesse ofício. Se em outros aspectos as coisas falham (tantas falham!) que ao menos fique a alegria de criar.
Para mim a arte é uma busca, você concorda?
Sim, a arte é uma busca e a marca constante dessa busca é a insatisfação. Na hora em que o artista botar a coroa de louros na cabeça e disser “estou satisfeito”, nessa hora mesmo ele morreu como artista. Ou já estava morto, antes. É preciso pesquisar, se aventurar por novos caminhos, desconfiar da facilidade com que as palavras se oferecem. Aos jovens que desprezam o estilo, que não trabalham em cima do texto porque acham que logo no primeiro rascunho já está ótimo, tudo bem – a esses recomendo a lição maior que está inteira resumida nestes versos de Carlos Drummond de Andrade: “Chega mais perto e contempla as palavras / Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra / e te pergunta, sem interesse pela resposta / pobre ou terrível que lhe deres: / Trouxeste a chave?”. Você, Clarice, que é dona de um dos mais belos estilos da nossa língua, você sabe perfeitamente que apoderar-se dessa chave não é assim simples. Nem fácil, há tantas chaves falsas. E essa é uma fechadura toda cheia de segredos. De ambigüidades.
Fale-nos do Seminário dos Ratos.
Procurei uma renovação de linguagem em cada conto desse meu livro, quis dar um tratamento adequado a cada idéia: um conto pode dar assim a impressão de ser um mero retrato que se vê e em seguida esquece. Mas ninguém vai esquecer esse conto-retrato, se nesse retrato houver algo mais além da imagem estática. O retrato de uma árvore é o retrato de uma árvore. Contudo, se a gente sentir que há alguém atrás dessa árvore, que detrás dela alguma coisa está acontecendo ou vai acontecer, se a gente sentir, intuir que na aparente imobilidade está a vida palpitando no chão de insetos, ervas – então esse será um retrato inesquecível. O escritor – ai de nós! – quer ser lembrado através do seu texto. E a memória do leitor é tão fraca! Leitor brasileiro, então, tem uma memória fragilíssima, tão inconstante. O Padre Luís (um padre santo que fez a minha primeira comunhão, foi ele quem me apresentou a Deus) me contou que um dia conduziu uma procissão no Rio. A procissão saía de uma igreja do Posto Um, dava uma volta por Copacabana e retornava em seguida. Muita gente, todo mundo cantando, velas acesas. Mas à medida que a procissão ia avançando os fiéis iam ficando pelas esquinas, tantos botequins, tantos cafés. E o mar? Quando finalmente voltou à igreja, ele olhou para trás e viu que restara uma meia dúzia de velhos. E os que carregavam os andores. “As pessoas são muito volúveis”, concluiu Padre Luís. Em outros termos, o mesmo diria Garrincha quando um mês depois de ser carregado nos ombros por uma multidão delirante, com o mesmo fervor e no mesmo estádio foi fragorosamente vaiado. Tão volúveis…
Isso não é pessimismo?
Não sou pessimista, o pessimista é um mal-humorado. E graças a Deus conservo o meu humor, sei rir de mim mesma. E (mais discretamente) do meu próximo, que se envaidece com essas coisas, o próximo que enche o peito de ar, abre o leque da cauda e vai por aí, duro de vaidade. De certeza, tantas medalhas, tantas pompas e glórias, eu ficarei! Não fica nada. Ou melhor, pode ser que fique, mas o número dos que não deixaram nem a poeira é tão impressionante que seria inocência demais não desconfiar. Sou paulista, e como o mineiro, o paulista é meio desconfiado. Então, o certo é dizer com Millôr Fernandes: “quero ser amado em Ipanema, agora, agora”. Em Ipanema vou lançar esse Seminário dos Ratos. O que já é alguma coisa…
Como nasceu esse título?
Houve em São Paulo um seminário contra roedores, lá acontecem diariamente dezenas de seminários sobre tantos temas, esse era contra os ratos. “Daqui por diante eles estarão sob controle”, anunciou um dos organizadores e o público caiu na gargalhada, porque nessa hora exata um rato atravessou o palco. Tantos projetos fabulosos, tantas promessas. Discursos e discursos com pequenos intervalos para coquetéis. Palavras, palavras. E de repente pensei numa inversão de papéis, ou seja, nos ratos expulsando todos e se instalando soberanos no seminário. “Que século, meu Deus”, exclamariam, repetindo o poeta. E continuariam a roer o edifício. Assim nasce esse conto.
Quais são os temas do livro?
- São quatorze textos que giram em torno de temas que me envolvem desde que comecei a escrever: a solidão. O amor e o desamor. O medo. A loucura. A morte – tudo isso que aí está em redor. E em nós. Quando fico deprimida vejo claramente essas três espécies em extinção: o índio, a árvore e o escritor. Mas reajo: não sei trabalhar sem a esperança no coração. Sou de Áries, recebo a energia do sol. E de Deus, o que vem a dar no mesmo, tenho paixão por Deus.
Há muita gente louca no Seminário dos Ratos.
Sim, há um razoável número de loucos nesse meu livro e também nos outros. Mas a loucura não anda mesmo por aí, galopante? “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco representaria uma outra forma de loucura”, disse Pascal.
O que mais lhe perguntam?
Eis o que me perguntam sempre: compensa escrever? Economicamente, não. Mas compensa – e tanto – por outro lado: através do meu trabalho fiz verdadeiros amigos. E o estímulo do leitor? E daí? “As glórias que vêm tarde, já vêm frias”, escreveu o poeta Dirceu de Marília. Me leia enquanto estou quente.