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 Nada pode durar tanto, não existe nenhuma recordação que, por intensa que seja, não se apague.

Juan Rulfo

 

Clarice não conseguia dormir. Angustiada, resolveu levantar da cama e abrir uma janela. Na rua, a escuridão era interrompida apenas pelos postes de luz acessos. O ar era úmido, pesado, prenúncio de uma chuva que não tardaria a cair. Respirando fundo algumas vezes, apoiou-se na janela, deixando-se levar pelos pensamentos que, assumindo vida própria, voaram para longe.

Pensou no tempo em que se sentira a mulher mais feliz do mundo. Uma época cheia de fantasias e certezas românticas. Lembrava-se, também, do quanto suas amigas a achavam ridícula, principalmente, por alimentar a ideia antiquada de querer um marido, filhos e uma casa só sua. Mas Clarice nunca se importou com essas opiniões ou mesmo com o fato de todos a acharem uma tola. Até que era tarde demais.

Um gosto amargo na boca e um aperto doloroso no peito fez com que fechasse os olhos. Reviu mentalmente o dia em que ele a procurou querendo conversar. Inocente, supôs que iriam tratar de algum detalhe, ainda não resolvido, do casamento.

Tudo aconteceu naquele mesmo quarto, diante daquela mesma janela. Ele quis ficar em pé; além de nervoso, parecia estar com medo. Quando, enfim, conseguiu falar, e a verdade veio à tona, Clarice compreendeu o quanto havia sido cega e o quanto seus sonhos foram ridículos. Não havia perdão para a tamanha ingenuidade e burrice. Como ele pôde enganá-la por tanto tempo era algo que não conseguia entender e, muito menos, superar. Tornou-se a piada da qual todos riam.

Clarice esforçava-se, todo o santo dia, para esquecer a vergonha e o constrangimento. Porém, em noites como esta, era difícil manter os pensamentos sob controle. As lembranças insistiam em ressurgir, agindo como fantasmas, prontas para assombrá-la.

Entretanto, estranhamente, na época não derramou uma única lágrima. Quem a visse não acreditaria na angústia que lhe apertava o coração. Clarice era assim, discreta, sempre preocupada com as aparências e tinha decidido não demonstrar seu desespero, não serviria de espetáculo para ninguém. Assim, não houve choros descontrolados ou crises nervosas como todos esperavam e até torciam. Mas, algo aconteceu. Clarice comprou um vestido.

De um vermelho vivo, extremamente provocante e sensual, era óbvio que fora feito com um único propósito: seduzir. Quando Clarice o viu, quis tê-lo. Até hoje não sabia, com certeza, o que a motivou. Desculpou-se, atribuindo essa compra excêntrica ao seu estado emocional. O vestido tornou-se desde aquele dia o seu pequeno e extravagante segredo.

Agora, nesta noite, diante da janela aberta, voltou a pensar nele. Estava guardado bem no fundo do guarda-roupa, próximo ao outro vestido, o branco. Ambos representantes silenciosos de dois momentos de sua vida, feitos de cores, tecidos, modelos e emoções diferentes. Qual deles usaria primeiro? Ela não sabia. Aliás, evitava pensar no assunto, pois a simples lembrança dos dois vestidos, guardados lado a lado, só lhe causava aflição e sofrimento.

Finalmente, sentiu o cansaço tomar conta do seu corpo. Espreguiçando-se, fechou a janela. No entanto, antes de ir para cama foi até o guarda-roupa. Com a mão trêmula aproximou-se do trinco e num gesto nervoso abriu a porta fechada.

Seus olhos procuraram as caixas. Elas continuavam no mesmo lugar. Belas, embrulhadas nos seus respectivos papéis de presente, e, ao mesmo tempo assustadoras. Sentiu medo.

O temor despertado pela caixa com o vestido branco era resultado das lembranças dolorosas que ele lhe despertava. Lembranças de um tempo no qual ainda era uma mulher ingênua e confiante. Um tempo de sonhos românticos e sem sentido. Contudo, o medo maior vinha da outra caixa, daquela que guardava o seu pequeno e extravagante segredo.

Assustada, Clarice recuou, fechando com pressa o armário. Quem sabe um dia. Quem sabe em outra vida. Era hora de voltar a dormir.