ANA MARIA BERNARDELLI
ANA MARIA BERNARDELLI

GESTA DA ÁGUA

 

 

Nesta grandíssima manhã de primavera,

as portas

da minha casa

estão abertas

para a visita

fluida da beleza.

 

Altair é a susana da minha poesia

e da minha vida.

 

A solidão habitava o feiume

dos meus gestos e

querençoso eu esperava

o tempo.

 

Hoje caminho tardo pelo vento oeste.

 

Meu coração vagueia

no mapa das ruínas e

infesto o campo dos silêncios.

 

Cada ruído pressentido,

diz da alma.

 

Cada rastro revelado,

diz da vidência, essa alegria

a se eternizar.

 

Mancham os céus de um cinza cruel

e morrem

os oceanos

em mim.

 

Eu que sempre

fui água,

mansidão

de peixes

e de siris.

 

Ser líquido

na chuva,

rio no mar naufragado.

 

Eu que sempre

fui água,

a escorrer

pelo sangue das marés.

 

Ó manhã

devastada no belo!

Assim é a ceia farta

dos maremotos escondidos!

 

Queda,

quebra,

estrondo

 

elegia da natureza

encantada,

sou água!

 

Poema de Diego Mendes Sousa

 

Conheça a leitura do poema "Gesta da água", de Diego Mendes Sousa, na voz de Ana Arguelho:

https://youtu.be/WEhbywux1fI?si=s-Q0mgH3spDNUbWW

 

 

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GESTA DA ÁGUA - Ensaio de ANA MARIA BERNARDELLI

 

 

O poema "Gesta da Água", de Diego Mendes Sousa, oferece uma rica meditação sobre a essência fluida e mutável da natureza e da própria identidade humana.

 

Abaixo, desenvolvo uma análise literária que explora estrutura, sintaxe, figuras de linguagem e intertextualidades.

 

A estrutura do poema é fragmentada, com versos livres que parecem fluir desordenadamente, refletindo a ideia central da água como um símbolo de transformação e de imprevisibilidade.

 

A disposição gráfica dos versos – com linhas breves e espaçadas – contribui para uma leitura pausada e contemplativa, que simula o movimento de uma corrente fluvial. Os cortes abruptos entre linhas e estrofes funcionam como pausas naturais, conferindo um ritmo que se assemelha ao fluxo e refluxo das marés.

 

A sintaxe do poema é marcada por um vocabulário simples, porém carregado de significação. Os versos apresentam uma relação quase sinestésica entre elementos naturais e subjetivos, em que a identidade do sujeito se funde com a natureza. A construção sintática em "eu que sempre fui água" cria uma repetição cíclica que reforça essa identificação entre o eu-lírico e o elemento aquático.

 

Metáfora: A água é uma metáfora central que atravessa o poema, representando tanto a identidade quanto a fragilidade e a força do eu-lírico. Em "eu que sempre fui água", a metáfora implica uma qualidade essencial e profunda do sujeito poético, enquanto "mansidão de peixes e de siris" evoca a paz e a organicidade que ele encontra em sua natureza aquática.

 

Personificação: A natureza é tratada como uma entidade viva e expressiva. Em "as portas da minha casa estão abertas para a visita fluida da beleza", a beleza é tratada como uma visitante, alguém que se manifesta de forma quase espiritual na casa do eu-lírico. A própria água, enquanto força da natureza, possui uma "ceia farta dos maremotos escondidos", humanizando o caos natural como um festim devastador.

 

Antítese: A oposição entre a "mansidão de peixes e de siris" e o "estrondo" final da natureza, que se revela na "queda, quebra, estrondo", reflete a ambivalência da água, que é ao mesmo tempo calma e devastadora. A antítese destaca a dualidade intrínseca ao ser humano e à natureza, capazes de nutrir e destruir.

 

Anáfora: O recurso aparece com força na repetição de "eu que sempre fui água", criando um efeito de reafirmação e pertencimento. A repetição imprime uma sensação de continuidade, reforçando a ligação inabalável do eu-lírico com a essência aquática.

 

Imagem sensorial: O poema utiliza imagens que despertam a percepção tátil e auditiva do leitor. Frases como "caminho tardo pelo vento oeste" e "estrondo elegia da natureza" sugerem tanto a sensação de lentidão quanto o impacto sonoro, aproximando o leitor da experiência visceral do sujeito poético.

 

O poema evoca a tradição literária que explora a água como símbolo de mutabilidade e de efemeridade, presente na poesia de autores como Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade.

 

Em Pessoa, a água frequentemente representa o fluxo constante da identidade e o questionamento existencial, como em "Ode Marítima".

 

Há uma proximidade temática entre o "caminho tardo pelo vento oeste" e a errância poética de Álvaro de Campos, onde o sentimento de estrangeirismo e fluidez ecoa o descompasso do sujeito com o mundo ao redor.

 

Além disso, pode-se estabelecer um diálogo com o poema "Águas do Mar" de Cecília Meireles, em que a água é também uma força vital e destrutiva, simbolizando a passagem do tempo e a inconstância da existência.

 

No poema de Sousa, assim como em Meireles, a água é um elemento que expressa tanto a paz quanto a potência destruidora do ser.

 

A referência à "ceia farta dos maremotos escondidos" remete, por sua vez, ao simbolismo bíblico de banquetes e de tempestades, como as ceias de celebração e de ruínas encontradas em livros como o Apocalipse.

 

Assim, a ideia de um “banquete” de maremotos sugere uma natureza excessiva e sublime que se entrega, e mesmo se autodevora, em uma celebração da destruição e de renovação.

 

Em "Gesta da Água", Diego Mendes Sousa constrói uma poética de fusão entre o sujeito e o elemento aquático, explorando a ambiguidade da água como símbolo de vida e de morte, de paz e de catástrofe. A fragmentação da estrutura e a riqueza de imagens intensificam o sentimento de conexão essencial entre o eu-lírico e a natureza, enquanto as intertextualidades com grandes poetas como Pessoa e Meireles enriquecem a leitura com múltiplos sentidos.

 

O poema destaca-se como uma alegoria da existência humana, que é, ao mesmo tempo, tranquila como um rio e tumultuosa como um mar em tempestade.

 

Ana Maria Bernardelli

Ensaísta

Da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras

Conheça a trajetória de Ana Maria Bernardelli:

https://acletrasms.org.br/portfolio-item/ana-maria-bernardelli/