Eng. Enrico Antônio Galluzzi
Por Reginaldo Miranda Em: 16/04/2020, às 19H57
Reginaldo Miranda[1]
Com a edição do Tratado de Madri, em 13 de janeiro de 1750, as nações ibéricas deram um passo decisivo para dirimir questões de fronteiras em suas colônias da América, assim reduzindo a possibilidade de conflito por disputas territoriais. De certa forma, este tratado reconheceu a expansão territorial portuguesa em mais de dois séculos de colonização, prestigiando o princípio uti possidetis, i. é., os que de fato ocupam um território possuem direito sobre ele. Foi firmado entre os reis de Portugal (D. João V) e de Espanha (D. Fernando I), baseando-se num mapa[2] elaborado especialmente para servir de base ao tratado, que prestigiava as fronteiras naturais, formadas por acidentes geográficos, inclusive, rios e serras. Assegurou a Portugal o domínio sobre os verdejantes campos cerrados de Mato Grosso, a zona pantaneira e a vasta região amazônica, que ficara fora do Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494.
Esse fato coincide com a morte do monarca lusitano e ascensão do diplomata Sebastião José de Carvalho de Melo, conde de Oeiras (1759) e depois marquês de Pombal (1769) na política portuguesa, na qualidade de ministro do novo rei, D. José I. Com o tempo esse déspota esclarecido enfeixou grande soma de poderes, sobretudo depois de sua enérgica reação no combate à peste e na reconstrução da cidade de Lisboa, destruída pelo terremoto de 1755. Sebastião de Carvalho sonhava transformar Portugal numa grande nação, numa potência econômica a brilhar no cenário europeu. E o assenhoramento, a integração, a colonização mais efetiva, a exploração das potencialidades desse novo território era questão vital para a implementação de seu audacioso plano de governo. Para isto era importante delimitar e consolidar essas fronteiras, assim como estabelecer bases sólidas e conceber uma estratégia de defesa. Portanto, a política pombalina para a região amazônica e adjacências era a de demarcar as fronteiras, fortificá-las, assim como ocupar e povoar o território. Para isto nomeou seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, para governador e capitão-general do Estado do Maranhão e Grão-Pará, tendo este tomado posse do cargo em 24 de setembro de 1751, em Belém do Pará e não em São Luís do Maranhão, como ocorria até então. Também, editou o diretório indígena de 1757, que integrava o ameríndio ao mundo colonial português, dando-lhe nomes cristãos, ensinando-lhe o idioma lusitano e a religião católica, bem como incentivando os casamentos entre indígenas e colonos, assim os integrando, ao menos na teoria, ao mundo colonial português. Nesse contexto diversas missões indígenas foram transformadas em freguesias e vilas, confiadas a militares e outros agentes da política pombalina. No entanto, para a execução de significativa parte dessa tarefa, sobretudo das delimitações de fronteiras, elaboração de cartas geográficas e construções de fortificações, era imprescindível a ação de engenheiros capacitados e jovens, nesse último caso para enfrentarem as distâncias prolongadas e as mazelas das doenças tropicais que infestavam a quase desconhecida selva amazônica. Mas onde encontrá-los? Evidentemente, foram se socorrer na Itália, berço do renascentismo, cujos estudos de matemática e astronomia voltados para a determinação de longitudes estavam muito à frente das demais nações europeias. Da mesma forma, os engenheiros italianos eram muito conceituados porque aliavam a esses estudos de matemática e astronomia, o aprofundamento das disciplinas de desenho e cartografia voltadas para a elaboração de projetos e plantas de cidades, prédios, estradas, pontes e fortificações.
Assim, para integrarem a Comissão Demarcadora dos Limites da região norte[3], foram arregimentados em Viena e vieram para a Amazônia os engenheiros militares italianos Enrico Antônio Galluzzi e Domenico Sambucetti[4], entre outros, responsáveis técnicos pela construção das duas maiores fortalezas da Amazônia e da América do Sul, a Fortaleza de São José de Macapá e o Real Forte Príncipe da Beira[5], em cujo afanoso trabalho vieram a óbito alguns anos depois, vítimas de malária. Eram dois engenheiros arrojados, que trouxeram para a Amazônia os mais modernos conceitos de engenharia, assim rompendo com a tradição medieval lusitana. Para esse estudo interessa-nos o primeiro deles, porque projetou importantes obras e elaborou a primeira carta geográfica do Piauí. Foi o primeiro engenheiro que prestou serviços e atuou na terra piauiense.
De origem judia, Enrico Antônio Galluzzi, nasceu no ano de 1720, na velha e romântica cidade de Mântua, situada na encantadora região da Lombardia, também pátria do notável poeta Virgílio[6], autor do insuperável poema épico denominado Eneida. Seguramente, em face dessa inspiração poética foi que o não menos consagrado William Skakespeare anotou em sua clássica obra Romeu e Julieta, que o apaixonado Romeu fugiu para Mântua e não para qualquer outro lugar, depois de ter matado Teobaldo e ser exilado de Verona. Todos esses fatos conferem certa aura romântica à cidade lombarda do vale do rio Pó, rica em cultura e arte
No entanto, nada se sabe sobre a vida estudantil de Galluzzi, o que não nos impede de pensar o óbvio, que ele estudou na terra natal, uma velha cidade com boas escolas e muito inteligentemente administrada pela rica e nobre família Gonzaga. Depois, para aperfeiçoar-se pode ter seguido os passos do poeta Virgílio, aprofundando seus estudos nas escolas das vizinhas cidades de Cremona e Milão[7], todas na Lombardia. Posterior aprofundamento de pesquisa vai esclarecer e preencher essa lacuna. Fato incontestável, porém, é que Enrico Antônio Galluzzi formou-se em Engenharia Militar, especializando-se em Astronomia e Cartografia.
Dotado de rara inteligência, acentuada competência e desenvoltura no trabalho, desde cedo foi arregimentado pelo Estado, sendo contratado logo depois de formado para prestar serviços de engenharia militar no Sacro Império Romano-Germânico[8], de que fazia parte o norte da Itália. Em pouco tempo, alcançou a patente de capitão com exercício de engenharia. Serviu inicialmente na terra natal, onde foi encarregado da revisão do armazém e fortificação da Fortaleza da cidade, trabalhando sempre com muita lealdade e atenção, preocupando-se com todos os detalhes do serviço, conforme atestaram seus superiores. No entanto, a sua competência e capacidade de trabalho haveria de projetá-lo para fora do Ducado, sendo chamado em pouco tempo a Viena, para servir diretamente à Coroa austríaca[9]. De fato, até o ano de 1749, prestou ali bons serviços, o suficiente para chamar atenção do diplomata Sebastião José de Carvalho e Melo, que respondia pela Embaixada portuguesa naquela Corte.
Depois da assinatura do Tratado de Madri, foi ele chamado de Viena, onde se encontrava entretido em afanoso trabalho. E chegando a Lisboa, onde se apresentou espontaneamente, foi contratado pelo governo português para tomar parte na expedição técnico-científica encarregada da demarcação das fronteiras que separavam as colônias de Portugal e de Espanha. Depois dos entendimentos necessários, por decreto de 1.º e carta régia de 5 de outubro de 1750, foi nomeado para ocupar o posto de Ajudante de Infantaria com exercício de Engenharia do Exército português, devendo servir pelo prazo de cinco anos desde a data em que chegasse à América. Com esta patente deveria servir no Reino e na América, tanto nos portos quanto em quaisquer partes dos sertões do Brasil e do Maranhão, percebendo soldo de trinta e dois mil e duzentos reis por mês e gozo de todas as honras, privilégios, liberdades, isenções e franquezas que ao dito posto pertencesse. Com esta nomeação ficava Galluzzi obrigado a servir nos lugares já ditos, tirando cartas geográficas do País ou quaisquer outros serviços de sua profissão; por outro lado, enquanto se mantivesse na cidade de Lisboa ou nos portos do Brasil, se sustentaria pelo seu soldo; no entanto, em saindo em expedição do Real serviço, na América, desde o dia em que se pusesse a caminho, seriam pela Real Fazenda custeadas todas as despesas com o sustento, conduções e auxiliares do serviço, se lhe subministrando os instrumentos necessários para as operações; também, dispunha o contrato que depois de concluídos com satisfação os serviços objetos da avença, poderia ele em querendo permanecer exercitando o mesmo posto e percebendo o mesmo soldo, tanto nos Estados da América quanto no Reino; que o transporte para a América e retorno para o Reino, seriam custeados pela Real Fazenda; e querendo retornar para o País de onde veio, receberia uma ajuda de custo, com patente, conforme a sua graduação; em caso de sofrer enfermidade ou outro qualquer impedimento que o inabilitasse, lhe seria concedida a reforma no mesmo posto, com a metade do soldo enquanto vivesse (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 65. D. 5652).
Possuía 30 anos de idade quando assinou o respectivo contrato e foi nomeado para o aludido posto militar. Em 21 de setembro de 1751, ainda residindo em Lisboa, onde se demorou pelo tempo de quase três anos, foi designado para compor a segunda tropa da expedição destinada ao norte da colônia.
Foi somente em 2 de junho de 1753, que Enrico Antônio Galluzzi ou Henrique Antônio Gallucio[10], como queiram, partiu do porto de Belém, na foz do rio Tejo em rumo de Belém do Pará, na companhia de diversos outros italianos e demais estrangeiros, entre os quais astrônomos, matemáticos e outros profissionais das ciências exatas, que formavam a indicada Comissão de Demarcações. Desembarcaram em Belém do Pará, onde foram recebidos em meio a muitas expectativas de trabalho, apresentando-se Gallucio na Vedoria da cidade em 1º de novembro daquele ano, quando tomou assento de seu posto militar. Segundo o historiador Antônio Gilberto Costa[11], citado[12] por Graciete Guerra da Costa[13] e Jorge Pimentel Cintra[14], integravam essa comitiva que desembarcou em Belém do Pará, no ano de 1753, além de Henrique Antônio Gallucio, alguns astrônomos, matemáticos e outros homens de ciências, entre esses: Giovanni Angelo Brunelli (italiano, astrônomo, lente de Aritmética e Geometria), Padre Ignác Szentmártonyi (croata, jesuíta, sargento-mor, astrônomo), os capitães João André Schwebel (alemão, era engenheiro militar), Gaspar Gerardo de Gronfeld (alemão, era engenheiro militar) e Gregório Rebelo Guerreiro Camacho (português, era engenheiro militar); os demais ajudantes engenheiros militares Domenico Sambucetti (italiano), Miguel Angelo Blasco (italiano), Adam Leopoldo de Breuning (alemão), Phelippe Frederico Stürm (alemão) e Sebastião José da Silva (português); o arquiteto e desenhador Antônio Giuseppe Landi (italiano), o tenente Manuel Fritz Goetz (alemão), os cirurgiões Daniel Panck e António de Matos, entre outros. Era, pois, uma comitiva respeitável, composta por homens de ciências, que vinha auxiliar os governantes portugueses na execução do projeto pombalino na Amazônia.
No entanto, os trabalhos demarcatórios sofreram significativo atraso em face da inércia dos espanhóis em se apresentarem para a tarefa conjunta. Por essa razão, Gallucio se demorou oito meses e meio entabulando planos e prestando serviços em seu quartel de Belém do Pará. Nessa fase inicial merece relevância a elaboração da planta da vila de Bragança, assim como o delineamento e abertura de um caminho por terra para dar acesso até a vila de Ourem, em cujos trabalhos se demorou pouco mais de vinte dias. Para o bom êxito dessa diligência para ali seguiu em companhia do desembargador e ouvidor-geral da comarca, em 15 de julho de 1754, retornando ao seu quartel em 8 de agosto do mesmo ano. Segundo Mendonça Furtado: “poucos meses depois de chegar a esta cidade, o mandei à vila de Bragança, para o efeito de delinear uma estrada por terra, para os moradores daquela vila se poderem comunicar com os da de Ourem, o que com efeito executou um Mapa exato, não só ao dito caminho, mas de todo o continente desta cidade àquela vila” (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 65. D. 5652).
Em 2 de outubro de 1754, o governador e capitão-general Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751 – 1759), partiu numa demorada entrada ao rio Negro. Para vencer com segurança os desafios da jornada formou uma comitiva de 796 pessoas, entre cientistas e militares, que foi distribuída em 35 barcos. Era um passo inédito para o descobrimento e revelação das peculiaridades regionais, dando a conhecer ao reino, através das cartas geográficas a serem elaboradas, a localização dos acidentes geográficos e das potencialidades do vale amazônico. Essa diligência constitui-se em ato efetivo de apossamento da terra pela Coroa lusitana, alargando os domínios da capitania do Rio Negro. Sob o comando de Mendonça Furtado, foram feitos levantamentos cartográficos, firmaram alianças com tribos indígenas, nomeando autoridades nas aldeias e construindo fortalezas no extremo norte do Brasil, a exemplo de São Gabriel da Cachoeira, no rio Negro e São Joaquim, na fronteira com a Guiana Inglesa. Nesses trabalhos foi significativa a participação de Schwebel, Szentmártonyi, Silva e Stürm. No entanto, o ajudante Henrique Antônio Galluzio ou Gallucio, não partiu imediatamente na comitiva governamental, tendo ficado em Belém com a incumbência de conduzir os marcos reais que deveriam servir para as mesmas demarcações. Para isto trabalhou arduamente na fabricação de embarcações condizentes e junto ao Porto da Alfândega de Belém, fabricou um engenho para se embarcarem os pesados marcos de pedra[15]. E, de fato, depois de resolver todos os embaraços os conduziu para o Arraial do Rio Negro, partindo em 10 de dezembro de 1755. Nessa diligência que demorou treze meses e quinze dias, findando em 25 de janeiro de 1757, ainda executou sem qualquer auxílio de terceiros, estudos cartográficos desde a partida e tirou um Mapa Geográfico do Rio Amazonas e do Rio Negro, até as fronteiras onde se localizavam os últimos estabelecimentos portugueses; assim como juntando outros mais estudos que fez e somando com o de outros estudiosos que seguiram na comitiva do ano anterior, elaborou um Mapa Geográfico das capitanias do Pará e Rio Negro, “conforme as regras de sua arte, em que é muito perito”, disse o governador Mendonça Furtado[16].
Findo seu trabalho no Rio Negro, retorna à cidade de Belém do Grão Pará. Ali, para espancar a solidão, esse diligente mancebo mantuano contrai núpcias com uma jovem donzela daquela cidade amazônica, por quem se enamorara antes da partida, d. Sebastiana Maria Gemaque. Não tiveram filhos, mas parece que viverem felizes até que a cruel parca levou o consorte varão. Por esse tempo, desejava retornar à Europa, levando consigo aquela que roubara seu coração. Para isto, pede licença a el-rei, nos termos seguintes:
“Diz Henrique Antonio Galuzio, Ajudante Engenheiro, que ele suplicante veio da sua terra servir a V. Maj., no dito emprego, e se acha ao presente no Estado do Pará, para onde foi servir por tempo de cinco anos na expedição das demarcações de seus Reais domínios da parte do Norte, exercendo no Arraial do Rio Negro, a sua obrigação com muita atividade em tudo o que lhe é ordenado. E porque na cidade do Pará tomou o estado de casado, e findos os cincos[17] anos porque foi mandado a servir nas ditas terras, determina recolher-se outra vez para esse Reino com sua mulher, o que não pode fazer sem licença de V. Maj., pelo impedimento que naquelas terras há para delas saírem mulheres sem a dita licença, o que ao suplicante causará grande incômodo e notável prejuízo. Pede a V. Maj., lhe faça mercê conceder a dita licença para poder recolher-se a este Reino com sua mulher visto o que alega, e a ser um homem estrangeiro que veio servir a V. Maj., e o tem feito com muita honra e acerto” (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 42. D. 3870).
Sobre esta petição consta o parecer favorável do Conselho Ultramarino, datado de 26 de abril de 1757, inclusive mandando pagar-lhe soldo de duzentos mil reis, retroativo ao tempo em que se lhe pagaram cem mil reis. A justificativa era de que era justo que ele percebesse o soldo e propinas correspondentes ao de capitão-mor do Pará[18]. Apesar das condições lhe serem favoráveis para o regresso à Europa, foi mimoseado para permanecer na Amazônia, pois era um profissional experiente e capacitado, sendo assim imprescindível para a execução do projeto de domínio lusitano na Amazônia dentro das diretrizes pombalinas. Permanecendo no Pará, seguiu para os confins do rio Tocantins em companhia do Sr. Bispo, D. fr. Miguel de Bulhões, saindo de Belém em 1º de maio de 1758 e somente retornando em 31 de dezembro daquele ano. Nessa viagem fez o levantamento de todas as vilas, lugares, povoações das freguesias, distâncias entre elas, dos rios e suas extensões, assim como das pessoas de comunhão, elaborando o Mapa Geral do Bispado do Pará. Esta obra notável foi uma solicitação do Bispo, atendendo a ordem de el-rei. É um trabalho de mérito, que diz da capacidade técnica de Galluzzi, tanto no campo da cartografia quanto da astronomia. O Bispo ficou encantado com a exação do trabalho, escrevendo ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Tomé Joaquim da Costa Corte Real, em 23 de fevereiro de 1759, nesses termos: “Nele verá V. Exa., os grandes e famosos rios, de que se compõe este Bispado, a origem deles, os seus nomes, e as suas distâncias, o número das freguesias, que são 83, e das povoações[19], que são 70, as suas distâncias e os seus nomes” (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 44. D. 4048).
Em seguida, partiu em diligência de trabalho para a cidade do Maranhão. Saiu de Belém em 22 de abril de 1759, integrando a comitiva do governador do Piauhy, João Pereira Caldas, que vinha tomar posse do cargo e instalar solenemente[20] a mesma capitania. Na comitiva vinha também o Bispo e diversas outras pessoas. É interessante ressaltar que durante toda a viagem marítima entre os portos das duas cidades, Gallucio veio trabalhando, ou seja, medindo, arrumando e configurando geometricamente toda a costa marítima, fazendo repetidas observações de latitude por método preciso em quase todas as baías de maior conta, que segundo ele, chegavam a trinta. Nisso, corrigia as informações anteriores. Na cidade de São Luís do Maranhão, onde se demorou, examinou toda a baía e o terreno da ilha, fazendo diversas sondagens e elaborando planta e projeto de nivelamento[21], inclusive “delineando um projeto para a melhor passagem do Boqueirão[22]”.
Depois desse trabalho, em outubro daquele ano seguiu para a capitania do Piauhy, navegando pelo rio Itapecuru, até Aldeias Altas, hoje Caxias, e dali continuando pelo sertão, montado em lombo de animais, por estradas íngremes. Durante o percurso foi sondando o rio e o caminho por terra, observando os rumos, medindo as distâncias, tomando as alturas por latitude e observando longitudes. Chegando à Mocha, no final daquele ano ainda foi ao norte e no início do seguinte ao sul, pelo Gurgueia acima até os confins de Parnaguá; Depois da Páscoa, seguiu para os partes do Nascente, atravessando as cabeceiras de muitos rios por caminhos não praticados, subindo pelo Canindé e descendo pelo rio Piauhy, diz ele “acabei de adquirir todos os elementos precisos para a construção do Mapa Geográfico de toda a Capitania, o qual logo entrei a pôr em medida, e arrumar, e a reduzir três vezes, não obstante uma grave doença adquirida na derradeira viagem, e finalmente delineei em limpo dois exemplares, que entreguei ao Ilmo. Sr. Gov. desta Capitania” (AHU. ACL. CU. 016. Cx. 7. D. 437).
Esse Mapa Geográfico da Capitania do Piauhy, é de um valor incontestável, assinalando com bastante precisão toda a sua conformação, os acidentes geográficos, tais quais: rios, riachos, lagoas, serras, as vilas, cidade, freguesias, lugares, fazendas com e sem capela, sítios ou roças, as distâncias e outros aspectos interessantes. Constitui-se num documento de suma importância para a nossa terra, inclusive subsidiando o conselheiro ultramarino Francisco Marcelino de Gouveia, no levantamento de todas as fazendas do Piauhy e de seus possuidores, sendo ambos parte de um conjunto informativo sobre a situação agrária da capitania. Galluzzi ainda projetou a planta para construção da casa do governador do Piauhy.
Para enriquecer as informações sobre essa importante diligência de Galluzzi no Meio-Norte, acompanhemos alguns depoimentos de autoridades da época. O governador e capitão-general do Pará, Manoel Bernardo de Mello de Castro (1759 – 1763), assim anotou:
“E sendo por mim nomeado para ir na companhia do governador do Piauhy, que foi desta cidade pela do Maranham, nesta se empregou em várias diligências, fortificações e mais precisos para a defesa da mesma cidade e conveniência das gentes; e na do Piauhy obrou, igualmente com o mesmo desvelo, as diligências de que era encarregado por me constar do mesmo governador, sondando os mares que distam do Maranhão ao Piauhy, para total segurança das embarcações, e conveniência da Fazenda Real, por se evitar o perigo do perdimento de alguma canoa” (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 65. D. 5652).
Sobre o mesmo assunto também atestou o governador do Piauhy, João Pereira Caldas, em 17 de outubro de 1760:
“que havendo-me Sua Majestade nomeado governador desta Capitania a tempo que me achava exercitando o posto de Ajudante das Ordens do Governo deste Estado, devendo passar por mar da cidade de Belém do Gram Pará à de São Luís do Maranhão para dali me encaminhar a esta vila, e devendo também passar à mesma cidade do Maranhão o Ajudante Engenheiro Henrique Antonio Gallucio para nela executar algumas ordens de Sua Majestade, o trouxe em minha companhia presenciando por isto o grande desvelo com que este oficial se aplicou a arrumar toda a costa que permeia entre as duas cidades sobreditas, e em observar as suas latitudes, assim como tem praticado nesta Capitania a respeito do Mapa Geográfico que dela tirou em observância da Real determinação do mesmo senhor, em medir e determinar o rumo dos caminhos, e fazer as precisas observações de latitude e longitude, obrando tudo não menos com Engenheiro, que como Astrônomo, e sem que para isto tivesse o auxílio de outra pessoa, e poupasse a sua ao grandíssimo trabalho que tem experimentado em semelhante diligência, na qual se tem conduzido com honra, préstimo e acerto, com qual costuma empregar-se em todas as que se lhe encarregam” (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 65. D. 5652).
Ainda sobre seu trabalho na capitania de São José do Piauhy, concluído no limitado tempo de um ano[23], em 31 de dezembro de 1760, atestou o conselheiro de ultramar, Francisco Marcelino de Gouveia, nos termos seguintes:
“Faço saber em como Henrique Antonio Gallucio, Ajudante de Infantaria com exercício de Engenheiro, me acompanhou em a maior parte desta vasta capitania do Piauhy, e examinou toda ela, para o efeito de satisfazer a obrigação em que o constituí por ordem de Sua Majestade Fidelíssima, de fazer um Mapa Geográfico de todo o território da mesma, o que executou com o primor que publicam os exemplares, e em menos de um ano, em cujo tempo só o seu grande desembaraço o podia finalizar, no que economizou muito a Real Fazenda, porque veio a cessar sem grande demora a despesa com o dito Oficial fazia nas conduções, e assistência de sua pessoa, que nesta diligência se esqueceu dos perigos que lhe ameaçavam as jornadas repetidas, e em tempo que devia justamente recear as enfermidades, e os assaltos do gentio, que infestam os caminhos, que o dito Oficial seguiu a fim de lhe poder dar, e se portou em termos que se faz digno e merecedor de toda a graça que o dito senhor for servido fazer-lhe” (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 65. D. 5652).
Depois desse importantíssimo trabalho desenvolvido no Piauí, Henrique Antonio Galluzzi ainda volta por São Luís do Maranhão, onde conclui algumas tarefas. Retorna a Belém e se apresenta em seu quartel no dia 21 de abril de 1761, depois de dois anos no Meio-Norte brasileiro.
Nessa altura, por decreto de 10 de junho de 1761, foi promovido ao posto de Capitão de Infantaria com o exercício de Engenheiro e soldo dobrado (PT/TT/RGM/D/0020. Registo Geral de Mercês de D. José I, liv. 20. Fl. 471; AHU. ACL. CU 013. Cx. 49. D. 4489; Cx. 51. D. 4646; Cx. 57. D. 5146).
Em 18 de abril de 1762, por ordem do capitão-general do Estado, Manoel Bernardo de Mello de Castro, o capitão Henrique Galluzzi seguiu em diligência para fortificar a vila de S. José de Macapá. Nesse tempo receavam ataque inimigo, em face de guerra que se desenrolava na Europa. Ali permaneceu até 21 de outubro de 1763, trabalhando em sua fortificação.
Em 7 de julho de 1764, foi promovido ao posto de sargento-mor[24] de infantaria com o mesmo exercício e soldo dobrado (PT/TT/RGM/D/0020. Registo Geral de Mercês de D. José I, liv. 20. Fl. 471; AHU. ACL. CU 013. Cx. 49. D. 4489; Cx. 51. D. 4646; Cx. 57. D. 5146).
Retornou definitivamente à vila de São José de Macapá, em 21 de setembro de 1764, desta feita em companhia governador e capitão-general do Estado, Fernando da Costa de Ataíde Teive, aonde ficou empregado por ordem do mesmo governo nas obras da fortificação da dita vila. Nessa ocasião, disse Teive, “desenhou de ordem minha a planta de uma nova Fortificação para a Praça de São José de Macapá, e assim mais outra planta geométrica e o mapa geográfico em que se demonstrava o estado atual da referida praça e a situação das terras a ela adjacentes”. Sobre o mesmo assunto, também anotou Galluzzi: “E da mesma sorte, ordenando ao suplicante o governador e capitão-general do Estado, em o ano de 1763, delineasse uma planta de uma nova e regular Fortificação no sítio mais vantajoso da sobredita Praça de S. José de Macapá, e formasse Mapa dos terrenos a ela propínquos, a tudo deu o suplicante pronto cumprimento com duas Plantas e um Mapa Geográfico” (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 65. D. 5652; Cx. 55. D. 5074; Cx. 58. D. 5221).
Pelo conjunto das informações, percebe-se que o govenador encomendou a planta da nova fortaleza de S. José de Macapá no ano de 1763 e em janeiro do seguinte foi com o engenheiro responsável pelo projeto técnico, escolher o local mais adequado para a sua construção. Escolheram um ponto elevado à margem esquerda da foz do rio Amazonas, no propósito de protegerem a sua entrada do ataque de tropas inimigas, sobretudo a francesa, que estacionava na vizinha Caiena. A pedra fundamental da construção foi lançada em 29 de junho de 1764, prosseguindo a construção a partir de setembro daquele ano. Constituía-se num marco da política pombalina na defesa da Amazônia e consumiu muito tempo, recursos e mão-de-obra. Embora nunca tenha sido utilizada em guerra efetiva, transformou-se em elemento dissuasivo do inimigo, residindo aí a sua importância. É uma fortaleza militar das mais importantes. Projetada por Galluzzi em forma de um quadrado com baluartes pentagonais, tem no interior uma praça rebaixada, onde foram projetados e construídos oito prédios, sendo um deles a capela. Grosso modo, na parte interna havia esgotadouro de águas pluviais e na externa era circundado por um fosso seco.
Foi na laboriosidade dessa lida que, em 27 de outubro de 1769, vítima de malária, faleceu o sargento-mor e engenheiro militar Henrique Antônio Galluzzi. Encontrava-se no auge da vida, com 49 anos de idade, executando obra de relevância para a preponderância dos interesses de Portugal na Amazônia. Deixou o serviço bem adiantado, sendo sucedido na administração da obra pelo sargento-mor e engenheiro de nacionalidade alemã, Gaspar João Gerardo de Gronfeld. De imediato este elaborou planta do estado em que ficara a obra, que foi encaminhada ao reino em 13 de janeiro seguinte. Segundo o governador que o nomeou sucessor, Galluzzi “serviu a Sua Maj., com muito préstimo, e foi um completo professor de arquitetura militar”[25]. Faleceu pobre[26] e no real serviço, razão pela qual a viúva justifica seus serviços e pede ajuda régia em forma de pensão, para sustentar-se. No entanto, deixou obra notável, estudando nossa geografia e a registrando em importantes cartas geográficas, ainda hoje bastante atualizadas. Sondou e delineou rotas de navegação fluviais e marítimas, assim favorecendo as relações comerciais do norte da colônia. Fez demarcações, projetou estradas, portos, prédios públicos, fortificações militares e, assim, contribuiu para o progresso de Portugal e do Brasil. Sua obra é importante e imorredoura, merecendo figurar em nossa história com maior grandeza. A obra de Galluzzi ainda não recebeu o merecido reconhecimento luso-brasileiro, embora tenha sido fundamental para os interesses de Portugal dantanho e do norte-nordeste do Brasil atual. Que sua memória não pereça!
[1] REGINALDO MIRANDA, advogado, escritor, membro da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI.
[2] Mapa das Cortes (1749).
[3] Foram criadas duas comissões, sendo uma para o norte e outra para o sul, sendo contratados na Itália e na Alemanha (tinha também um coata), diversos engenheiros militares, matemáticos, cartógrafos, desenhistas, geógrafos e astrônomos para bem desempenharem as atividades impostas pelo marquês de Pombal, para demarcar, identificar e fortificar o imenso território. Na verdade, independentemente de nacionalidade até a data de sua contratação esses engenheiros encontravam-se trabalhando em Viena, para o Sacro Império Romano-Germânico.
[4] Domingos Sambucetti, na forma aportuguesada.
[5] Situado na margem direita do rio Guaporé, no atual território de Rondônia.
[6] Publius Virgilius Maro (15.10.70 a. C. – 19 a. C.), conhecido por Virgílio, poeta, autor do clássico Eneida, obra épica em que exalta as origens e tradições romanas. Estudou Retórica, Astronomia e Medicina, em Cremona e em Milão, depois retornando a Mântua, onde dedicou-se inteiramente à literatura.
[7] Em 1708, o Ducado de Mântua foi anexado ao de Milão, ambos pertencentes ao Sacro Império Romano-Germânico.
[8] O Eng. Henrique Antônio Galluzzi, em carta ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, datada de 21 de novembro de 1760, assim se pronunciou: “Diz Henrique Antonio Gallucio, que movido ele suplicante pelo brio e desejo de servira V. Maj. Fidelíssima, cujas grandezas enchem a Europa toda de seu gloriosíssimo nome, se ofereceu voluntariamente em tempo que se achava servindo no Império para passar ao real serviço de V. Maj., na ocasião que daquela Corte foram mandados alguns Engenheiros e Matemáticos em o ano de 1750, para o mesmo Real serviço de V. Maj., separando-se para sempre com isso de seus pais e parentes, e da fertilidade da deliciosa sua pátria. Depois de transportar-se para esta Corte e assistir nela o decurso de quase três anos, foi V. Maj., servido mandar ao suplicante para o Estado do Pará, na frota de 1753, com a obrigação de servir a V. Maj., cinco anos naquele País com o posto de Ajudante de Infantaria com exercício de Engenheiro, mas com soldo dobrado de Capitão, que foi o mesmo posto com que ficou do serviço do Império para o de V. Maj” (AHU. ACL. CU. 016. Cx. 7. D. 436).
[9] “Diz Henrique Antonio Gallucio, que estando ele suplicante ocupado no serviço da Maj. Austríaca, teve a honra de ser mandado servir a V. Maj. no exercício de engenheiro no ano de 1750, com o posto, soldo e condições que se declaram na Patente fl. 1. E depois de ter sido demorado na Corte de Lisboa o tempo de três anos, foi V. Maj., servido ordenar, que o suplicante se embarcasse para o Estado do Pará no ano de 1753” (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 58. D. 5221).
[10] Aparece unicamente no idioma pátrio a expressão Galluzzi; mas em português: Galluzio, Galuzio, Gallucio e Galucio.
[11] COSTA, Antonio Gilberto (Org.). Roteiro Prático de Cartografia: da América portuguesa ao Brasil Império. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
[12] Os engenheiros militares italianos na Amazônia do século XVIII: Antônio Galluzzi e Domingos Sambucetti. In: 3º Simpósio brasileiro de cartografia histórica. Belo Horizonte: 26-28.10.2016.
[13] Da Universidade de Brasília (UnB).
[14] Da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).
[15] Quem assim atesta é Dom frei Miguel de Bulhões, Bispo do Grão-Pará, que respondia interinamente pelo governo na ausência de Mendonça Furtado, conforme atestado firmado em 18.2.1856. Também, Galluzzi em carta à Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar.
[16] Sobre o Mapa Geral do Estado, feito por Galluzzi, Mendonça Furtado cita informações de Monsieur de La Condamine. Charles Marie de La Condamine (Paris, 1701 – 1774), cientista e explorador francês, desceu o rio Amazonas publicando na Europa, um conjunto de descrições geográficas da bacia amazônica em que, pelo que observa, serviu-se do trabalho de Galluzzi. Mais tarde, também Galluzzi se reporta a todos esses trabalhos.
[17] Essa assertiva comprova que ele trabalhou para a Coroa lusitana, em execução do contrato, nos quase três anos em que permaneceu em Lisboa.
[18] Conforme foi dito, ocupava ele o posto de capitão no Sacro Império Romano Germânico e pelo contrato celebrado com a Coroa lusitana deveria receber soldo correspondente.
[19] Na correspondência explicou porque as povoações eram em menor número que as freguesias, dizendo que dividiu todos os rios em paróquias.
[20] Foi feito em 20 de setembro de 1759, na vila da Mocha, depois cidade de Oeiras.
[21] Correspondência de Gallucio à secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, datada de 23 de novembro de 1760.
[22] Atestado do governador do Maranhão, Brigadeiro Gonçalo Pereira Lobato e Souza. Em carta Galluzzi também se reporta a esse trabalho.
[23] Sobre o assunto disse o Eng. Henrique Antônio Galluzzi, em carta ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, datada de 21 de novembro de 1760: “e dali passando à capitania do Piauhy, correu o suplicante e palmilhou toda aquela extensa largura experimentando infinitos trabalhos e vendendo inumeráveis dificuldades, medindo exatamente as distâncias, determinando os rumos dos caminhos e fazendo repetidas observações da latitude e de longitude, obrando não menos como engenheiro que como astrônomo, assim requerendo a natureza daquela empresa que cumpriu e concluiu cabalmente com a sua pessoa somente sem o auxílio de outro professor no limitado tempo de um ano, como se prova da certidão do governador da mesma capitania” (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 65. D. 5652).
[24] No ato de nomeação aparece a forma portuguesa de Henrique Antônio Gallucio.
[25] Ofício de Fernando da Costa Ataíde Teive à secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, datado de 13 de janeiro de 1770.
[26] Em 22 de agosto de 1767, Galluzzi levou ao conhecimento do secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que estava sofrendo cobrança indevida, verdadeiro anatocismo por parte da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Tudo isto porque comprara em Londres, por seu intermédio, três instrumentos matemáticos ali fabricados, para seu uso e exercício das ciências. E a referida Companhia, além de apresentar-lhe um valor irreal, ainda cobrava juros exorbitantes, trazendo-lhe em dependência financeira.