Na caixa de papéis antigos, no envelope onde costumamos levar documentos, numa página de um livro, n os deparamos, de repente, com um endereço, tendo, além do nome completo, tudo o mais: a rua, o número, o apartamento e, para sintetizar, uns trinta anos de distância no tempo.
                            Nesse endereço dado às pressas, num instante de euforia ou de desabafo, ou apenas por mero gesto de cortesia demonstrada no átimo  de um relacionamento que não se materializou porque os desencontros da vida não o consentiram por mil razões, impediu-se, talvez, que uma amizade sólida se estreitasse, um conhecimento grandioso se travasse.
No entanto, ali está impresso um endereço de uma pessoa qual mal conhecemos, com quem, um dia, ou melhor, em algum momento, conversamos com a perspectiva de algum aprofundamento de amizade. Que foi feito dela durante todas essas décadas? Será que ainda existe? Quais foram seus progressos profissionais, sua evolução social, intelectual, seu papel na vida? Nada sabemos e, a esta altura da vida, não mais nos interessa sabê-lo. Os telefones mudam, os endereços, idem. Aquele encontro incidental não tem mais valia, virou fumaça.  

                    Entretanto, lembramo-nos claramente de que com ela uma vez , ainda que por instantes, cruzamos nossos destinos. Quem sabe, ela, agora, se viva, já passou por mim numa rua do centro do Rio de Janeiro, e não mais me reconheceu. Mudamos física e espiritualmente. Começamos a envelhecer, nossos projetos de vida que resta são outros. Nada temos a ver mais com aquela pessoa simpática, educada com quem, certo dia, esbarramos quando houve uma possibilidade concreta de que aquele instante de conhecimento mútuo podia vingar. Mal podemos recordar-nos do seu rosto, da sua fisionomia. Mantiveram-se os gestos. As imagens, quase diluídas.
                    Isso demonstra que a visão que temos da vida é incompleta se dependermos apenas da realidade empírica, se somente nos ativermos ao que está ao nosso limitado e frágil alcance. Razão tinha  Tristão de Athayde (1893-1983) ao definir a abordagem de sua crítica literária ,a qual, por extensão, se poderia estender a uma visão mais completa da vida: “... a crítica literária seria uma visão da vida através das obras alheias, e, simultaneamente, uma concepção das obras alheias através da vida.”
                 Da vida real que conhecemos temos só fragmentos, visões inconclusas, instantes descontínuos, sem contarmos com a complexidade de uma visão fenomenológica dos objetos, sem contaramos ainda com o entendimento da natureza humana, das subjetividades, do indevassável universo da interioridade dos seres humanos. Vivemos com alguém da nossa intimidade durante largos anos e, mesmo assim, qual a fração real do conhecimento que temos dela? Somos esfinges, criaturas enigmáticas. Jamais atingiremos o “eu profundo” deque nos fala o estilo literário dos simbolistas. Esse lado hermético da criatura humana nunca será plenamente desvelado. Somos seres destinados ao mistério. Por isso tanto nos agradam a ficção, a poesia, as peças trágicas dos gregos, as artes em geral. O destino humano será sempre a busca do enigma final.

            Não vamos, só agora,  procurar-lhe o endereço. Afinal, em tanto tempo decorrido, nunca fomos demonstrar o nosso exemplo de cavalheiro. Seria melhor deixarmos em paz  aqule endereço que os anos teimam em apagar para sempre.