Baseado em fatos reais...

ENCERRAMENTO DE PRAZO

Miguel Carqueija


    Cláudio Autuori levou a sua vida acumulando dívidas que jamais amortizava, passando cheques sem fundos, tendo o seu nome protestado e postergando sempre as soluções ou providências cabíveis. Desentendeu-se com a família, casou, descasou, amigou e desamigou, não tinha carteira assinada e nem plano de saúde mas achava que daria um jeito. Até o dia em que viu que tudo o que tinha no mundo era um terreno sem construções na vastidão sertaneja, longe de qualquer cidade. Conseguiu um calhambeque e foi inspecionar o local, sem muito entusiasmo, pensando se conseguiria vendê-lo e por quanto. Só que, ao lá chegar, deparou com um disco voador.
    Esclareço que era um disco voador de verdade, com domo e trem de aterrissagem triplo, e que no seu interior estavam quatro alienígenas do tipo “gray”, vindos lá do sistema de Aldebaran. Eles notaram a aproximação de Cláudio e saíram ao seu encontro; como este estava de porre, nem chegou a se assustar. Caminhou cambaleando até os etês e disse: “Oi, rapaziada! Vocês devem estar com malária! Não estou gostando da cor de vocês...”
    Eles se entreolharam e conduziram o rapaz para o interior do UFO. Cláudio percebeu que um dos etês era uma mulher, que aparentemente chefiava a equipe. O mobiliário no interior do aparelho era funcional e elegante. Fizeram-no sentar numa poltrona de cor maravilha e serviram-lhe uma bebida quente, que se encarregou de dissipar a sua ressaca.
    — Então vocês existem mesmo — murmurou ele. — Mas o que estão fazendo na minha propriedade?
    — Sua propriedade? — indagou a capitã, com voz de quem fala debaixo d’água.
    — Querem ver a minha escritura? — ele abriu a mochila e exibiu a documentação, o registro do imóvel, tudo o que tinha como prova.
    — Foi seu pai quem comprou este terreno há quarenta anos terrestres — disse ela, depois de examinar impassivelmente os documentos.
    — Não importa, este terreno é meu.
    — Vamos fazer o seguinte — falou a “gray”, ríspida. — Nossa nave está com um sério defeito. Nós seremos resgatados dentro em breve, e levaremos tudo o que pudermos. Mas deixaremos nossa kistraya.
    — Sua o que?
    — Talvez seja melhor falar disco voador, como vocês têm a mania de nomear nossos aparelhos.
    — Ah, sim... a sua “kistraya”... entendi. Mas, dona alienígena, como é que vocês falam o meu idioma?
    — Faz parte do nosso treino.
    — Às vezes pode ser útil — disse o “gray” de bigode azul.
    — Mas — prosseguiu a comandante — como eu disse nós iremos embora, mas voltaremos um dia para pegar nossa nave de volta.
    — Um dia, a senhora disse?
    — Vamos marcar um dia pelo seu calendário. E nesse dia estaremos aqui sem falta e pegaremos a nossa kistraya de volta. Até lá...
    — Até lá...
    — Você poderá habitar nela, pois vamos implantá-la no solo e não haverá como removê-la. Você a disfarçará para não chamar atenção dos seus semelhantes... é do seu interesse, visto que as autoridades do seu país a confiscariam. E não tente nos enganar, pois o seu DNA já foi devidamente registrado e poderemos achá-lo em qualquer canto do seu orbe.
    — Bem, bem... mas quanto tempo eu vou poder ficar morando em sua... em seu disco?
    — Quinze anos — disse outro dos “grays”. — Já vamos lhe dizer a data certa — acrescentou, digitando um laptop holográfico.
    
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    Cláudio tratou de aproveitar a chance dada pela Capitã Alox. Construiu uns muros de terra batida e tijolos em torno do UFO, contando com a cumplicidade de uns capiaus da redondeza. Transformou o disco num amplo porão exceto a parte superior, onde habitou. O domo tinha as dimensões de um imóvel de um quarto e isso para ele foi suficiente, com o auxílio da fossa e da água filtrada proveniente de um aqüífero lá do subsolo. Tudo graças à tecnologia alienígena.
    Mas o tempo foi passando. Cláudio arranjou empregos malucos, perdeu-os, envolveu-se com novas mulheres, ausentou-se longos períodos mas sempre era chutado pelas amantes e tinha que voltar.
    Oito anos depois deu-se consigo mesmo a pensar assim: “Puxa, já passou mais da metade do prazo e ainda não arrumei a minha vida. Mas tudo bem, ainda tenho sete anos”.
    E ele continuou a beber, a comer entre as refeições, a pedir dinheiro aos parentes, a enrolar os credores, a se meter em negócios obscuros que raramente lhe davam algum lucro (e quando davam ele torrava o dinheiro em poucas semanas) e um belo dia parou para pensar e atinou que mais quatro anos haviam decorrido.
    “Oh, bem... — pensou, estendido numa rede, assistindo a televisão ao ar livre e estendendo a mão para pegar biscoitos waffle colocados na mesinha, ao lado da laranjada — afinal ainda faltam três anos. Até lá eu compro o meu imóvel”.
    E assim se passaram mais dois anos.
    “Puxa vida! Se aquele negócio tivesse dado certo... eu já teria comprado imóveis até para os meus filhos... pior é que eles nem completaram os estudos, mas afinal a culpa não é minha, é da mãe deles... eu nem estava por perto!”
    E lá ia ele para a cidade, envolvendo-se com produções teatrais, venda de imóveis, despacho de documentos e outras atividades “free-lance” que não apresentavam continuidade porque as pessoas facilmente cansavam da sua inconstância, dos atrasos de quem dorme até tarde porque fica vendo tv até de madrugada, da sua arrogância de quem se acha mais sabido que todo mundo... e volta e meia tinha de ser socorrido pela irmã, e pelo compadre, porque os demais parentes já não queriam saber dele.
     Seis meses antes do término do prazo Cláudio sentia-se meio inquieto:
    — Puxa, ainda estou aqui a zero! Nem comprei o material de construção para fazer a casa! Mas estou tão sem dinheiro!
    E ligou para o amigo Clayton, para pedir um dinheiro emprestado.
    — Infelizmente não posso, Cláudio. Eu também estou cheio de dívidas e afinal você não me pagou nem uma fração daquela bolada que eu te emprestei há dois anos...
    — Eu sei, mas já te expliquei que quando sair aquela herança da família que está na Justiça eu pago tudo e ainda com juros...
    — Você me fala a mesma coisa há vinte anos — respondeu o outro, seco.
    — Ninguém gosta de ajudar os outros — monologou Autuori, depois de desligar o aparelho. — São todos uns egoístas!
    “Mas afinal — procurou se tranqüilizar — quem foi que disse que eles voltarão? Sabe-se lá quantos trilhões de quilômetros separam o seu mundo do meu! Provavelmente nem vão encontrar o caminho...”
    E assim se passaram mais seis meses...


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    Um belo dia Cláudio acordou com insistentes batidas na porta. Ele se espreguiçou no leito e olhou para o despertador na mesa de cabeceira.
    — Seis e dez da manhã! Pombas! O padeiro está passando muito cedo!
    TOC! TOC! TOC!
    — Não quero comprar nada! Passe mais tarde!
    Mas as batidas não cessaram. Agastado, ele soergueu-se e cambaleou até a porta, abriu-a sem se lembrar de espiar pela janelinha...
    E deparou com a Capitã Alox e mais cinco “cabeças de cebola”.
    Cláudio fechou a porta de sopetão e encostou-se nela, com uma expressão de total incredulidade.
    — Abra! Somos nós!
    As batidas continuavam e Cláudio resignou-se ao inevitável e abriu a porta.
    — Oi, Capitã Alox... que prazer em vê-la... tem passado bem ultimamente?
    — Dá licença — e assim ela afastou Cláudio e adentrou seguida pelos outros cinco etês, e todos eles se acomodaram nas cadeiras e poltronas da sala.
    — Você já conhece Alf, Tink e Sill — disse ela. — E aqui estão Astria e Vina, que você ainda não conhecia.
    — Bem, bem... a que devo a honra de tão ilustres visitantes?
    — Você sabe muito bem. Viemos executar a reintegração de posse da nossa kistraya.
    — Mas... mas... mas...
    — O nosso disco voador, se prefere.
    — Não é isso, é... já acabou o prazo?
    A Doutora Vina mostrou um aparelho comprido, cheio de luzes e teclas, e respondeu:
    — Segundo o nosso calendário eletrônico, o seu prazo terminou ontem à meia-noite. Portanto o lugar já deveria estar desocupado!
    — Mas não é possível... eu ainda não consegui um lugar para ir...
    — Sinto muito, mas isso não é problema nosso — disse a comandante.
    Olhando para os lados, aflito, desesperado, ele ainda balbuciou:
    — Eu... eu... eu peço uma prorrogação do prazo. Mais uns cinco aninhos...
    — Eu lhe dei quinze anos. Gastamos muitas galobetas de nicromium para chegar aqui e não podemos manter a outra kistraya nas proximidades, camuflada, por muito tempo. Você tem uma hora para colocar todos os seus móveis e objetos fora do nosso veículo. Agora mexa-se!
     — E se eu me recusar? — exclamou ele, em estéril bravata.
    — Nesse caso — respondeu Alf, mostrando uma arma escura — com grande pesar seremos obrigados a vaporizar todos os seus pertences.
    Cláudio teve de aceitar o inevitável.
    Horas depois, após a decolagem das duas naves, Cláudio foi encontrado sentado no meio dos seus haveres, chorando pelos quinze anos perdidos em ociosidade.