Quando era menino, correndo atrás de várias espécies de plantas que me fascinavam (tanto quanto presépios) pelo seu formato, pelas suas cores e seu desenho interno, sua textura, eu tinha a visão social meio diluída de que não era rico e de que não era tampouco pobre, daqueles que moravam nos arrabaldes (hoje periferias) e em casas de palha de chão batido. Ricos eram aquelas pessoas que viviam nos belos palacetes ou casarões sobretudo da Avenida Frei Serafim de Teresina ou de algumas de suas ruas transversais. Ricos seriam aqueles meninos que podiam freqüentar, sem medo de serem barrados, o Clube dos Diários da Rua Álvaro Mendes nos dias de reuniões festivas ou sociais e sobretudo nos dias do eletrizante carnaval teresinense. Ricos era aqueles meninos cuja família morava em casa de dois andares, com assoalho de taco luzidio, com geladeira, um ou dois carros na garagem, merenda compostas de um copázio de leite vindo fresquinho das fazendas, ricos eram os meninos de casas elegantes e com telefone. Só vim a usar telefone aos dezoito anos e aqui no Rio. Ricos eram aqueles meninos ou meninas cujos pais podiam comprar-lhes elegantes e vistosas roupas e sapatos de moda nas melhores lojas do centro da cidade, de preferência perto da velha Praça Rio Branco. Ricas eram aquelas meninas de olhos verdes que passavam por mim sem me perceberem embora eu fosse um jovem de boa aparência. Ou seriam todos aqueles meninos pertencentes à classe média piauiense, enquanto eu seria apenas pobre ou remediado? Seguramente não formaria o grupo da arraia-miúda ou do zé- povinho.

               Esses, sim, eram os pobres, os despossuídos, Entretanto, abaixo desses só havia lugar para os esmoleres, como se dizia naquela época. Então, em que classe social me incluiria? Não era rico, nem ricaço, nem abastado nem nobre, nem aristocrata para usar termos de outras idades da história da civilização ou de formas de governo.

               Se fosse por nível intelectual o fator determinante da minha classe social familiar, estava nas alturas ou, pelo menos, na classe média mesmo, pois papai era um intelectual, um homem culto, um jornalista, um professor catedrático do ensino médio, um ex-diretor da Biblioteca Anísio Brito”, um ex-diretor do Liceu Piauiense. Por falar nele, se recuasse à sua infância, em Amarante, estava entre as crianças abastadas, visto que meu avô Manuel Alexandre e Silva era comerciante de destaque na terra de Da Costa e Silva.

            Essas digressões me vêm à tona porque fiquei perplexo com um estudo oriundo de técnicos da FGV que, por uma estranha e estrambótica metodologia, de pesquisa estatística espalhou, ou melhor, divulgou à imprensa que o país recebeu há pouco tempo um forte contingente de pessoas que da pobreza passaram ao ambicionado reduto dos privilegiados, dos afortunados indivíduos da classe média. Ora, pertencer à dita classe média é quase um título de nobreza no conceito comum dos excluídos. Estamos, portanto, no melhor dos mundos possíveis. Agora a justificativa: quem passou a este seleto grupo de classe média foi quem conseguiu reunir uma renda familiar entre R$ 1.064,00 até R$ 4.591,00. O regabofe é tremendo. Isso é que é socialismo tupiniquim via PT em conluio com os wheel dealers da riqueza nacional, casamento perfeito entre Karl Marx e Rockfeller.

           A explicação do especialista nesse terreno de mudança social sem necessidade de luta de classes em nosso país do homem cordial não me convenceu. Antes, me pareceu confusa. Pela metodologia ou mágica utilizada pelo especialista me surpreendo ao saber que me tornei, da noite para o dia, um membro da elite, i. e., medeio salarialmente entre as subdivisões das classes A e B. “Quel plaisir!"  Quel privilège!”, como dizia aquele texto ginasiano de Marcel Debrot.

          Estou me orientando pela reportagem do Caderno Dinheiro da Folha de São Paulo, de 10/08/2008. Porém, na página anterior a esta reportagem, moradores com renda familiar de R$ 1.060,00, de Vila Kennedy, bairro pobre da zona oeste do Rio de Janeiro, que abriga uma população formada de antigos favelados para ali deslocados durante o governo de Carlos Lacerda, ficaram indignados com a classificação deles como pertencentes agora ao grupo de classe média. Um deles perguntou com ar de reprovação e espanto: “- Como classe média. O que sou mesmo é pobre, mesmo reunindo salários de todos os membros de minha família. Ora, -- prosseguiu o morador queixoso -, como ser classe média se moro distante, em rua sem calçamento e com esgoto a céu aberto?”.

         Pelo visto, quem sai ganhando com tais estatísticas é o governo Lula, campeão em divulgar, com certo exagero, notícias favoráveis às condições sociais do brasileiro, tirando bons dividendos políticos para a sua sigla partidária, auto-proclamada de esquerda, até mesmo por apressados analistas estrangeiros..O que, por outro lado, tem-se evidenciado na práxis política brasileira é um aumento significativo de novos milionários, os quais, em muitos aspectos, já ostentam padrões de vida iguais aos milionários de países ricos.

       A suposta inclusão dos novos contingentes no grupo da classe média não é bom termômetro por si só, porquanto o que conta para um bom governo é dar mais condições de infra-estrutura às camada menos favorecidas da população brasileira.

      O conceito de classe média, que, aliás, é um tanto abstrato em muitos ângulos de prospecção, ainda guarda um halo de bem-estar social, de desfrute em alguns itens do consumo capitalista, como ter casa própria, um carro, algum dinheiro investido, uma possibilidade de um lazer limitado, que lhe dá uma ar de parentesco com os modos de vida das classes abastadas, ou seja, da vida burguesa, desses indivíduos vítimas da irreverência de um poeta como Mário de Andrade (1893-1945) tipificado no poema “Ódio ao burguês”, de Paulicéia Desvairada(1922), ou, mais tarde, já na ficção de João Antônio(1937-1996) quando da sua virada da crítica à pobreza para a crítica à classe média, a se ver no conto “Tatiana pequena”, de Abraçado ao meu rancor (1986).

       Essas pesquisas de aferição de classes sociais antes lançam ao leitor mais confusão do que indicações corretas para uma visão clara e isenta dos problemas crônicos deste país de modernidades assimétricas que ainda  aguardam   mudanças de mobilidade social  só alcançáveis através de  uma melhoria de sua  capacitação de mão-de-obra em todos os níveis, do aperfeiçoamento do seu sistema de saúde pública, de reais possibilidades de propiciar tanto o consumo das necessidades fundamentais de vida como de uma expansão do nível de instrução dos brasileiros, levando-os a poder adquirir livros, tomar gosto pela leitura, usufruir dos bens culturais em geral até hoje privilégio só de uma minoria, como freqüência a teatros, espetáculos musicais, concertos, consumo de música erudita e popular, possibilidade de viajar por prazer e como forma de aprimoramento cultural. Uma classe média nestes moldes seria, sim, um dado estatístico digno de figurar na imprensa brasileira.