Em memória de Nélida Piñon
Em: 17/12/2022, às 21H29
"Muitas vezes confessei que sou brasileira recente. Minha família, no Brasil, é mais jovem que as palmeiras imperiais do Jardim Botânico. Carrego comigo a sensação de haver, eu mesma, desembarcado na Praça Mauá, no início do século, no lugar dos meus avós, em busca da aventura brasileira, a única saga que ainda hoje estremece meu coração.
Temo, muitas vezes, haver chegado ao Brasil com irreparável atraso, não podendo, por isso, contar com uma memória familiar que me permita ir, com a frequência desejada, ao nódulo da nossa História e conhecer seus recônditos segredos, bater à porta do nosso advento e recolher os fios de ouro da narrativa brasileira, ali embaralhados para sempre.
Ninguém do meu sangue me legou a certeza de haver abalado os fundamentos constitutivos da formação do Brasil. Ou me cobrou, por meio dessa referida memória, o irrenunciável dever de traçar o País para que seu passado não se esvaísse em vão. Ou me imprimiu a marca da legitimidade, de modo que meus sonhos fossem hoje o eco dos devaneios de outros brasileiros vencidos pela desilusão.
Trago, pois, na imaginação, vestígios de uma viagem que não fiz – com meu corpo – e o gosto do sal inerente à travessia atlântica. Trago, sim, comigo, junto à atração pelo novo, as hesitações típicas de quem penetra um país pela primeira vez e desconhece os costumes locais implantados há mais de quatrocentos anos.
Graças, no entanto, a essa inexperiência e à curiosidade sempre incensada por um país que olho com paixão, que a vida não arrefece e os dias renovam na pira do cotidiano, respondo por encargos e sortilégios provenientes, muitos deles, dos sentimentos que habitaram meus avós, Amada e Daniel, e meu pai, Lino. Todos eles originários de uma Galícia povoada de lendas e de seres ansiosos por partir para longe e marcados, ao mesmo tempo, pelo instinto da volta à terra, por cujas montanhas circulavam os fantasmas dos celtas, esses indomáveis desbravadores do imaginário.
Não sei a que intriga e ardil do destino meus familiares obedeceram quando apontaram no mapa de suas aldeias o desenho febril e exaltado do Brasil.
Afinal, cada homem viaja em busca de uma estrela que recebe o nome caro aos seus sentimentos. E traz às costas a sacola da ilusão e da intranquilidade. Escassos pertences que aquecem a vida e norteiam os rumos. E habilitam-nos ainda a dar o passo inicial nesta interminável errância pela terra. Para que, assim, sem reservas e temores, abandonemos os recursos que a própria vida se encarrega de substituir. E não é ela, esta carne inquieta, este coração de corça e touro que nos compra o amor, o instinto, a coragem, a traição? E irriga ainda nossas veias com o sangue da aventura?
Foram, pois, esses seres galegos, amorosamente acomodados à realidade brasileira, que me ofertaram um país de presente. Concederam-me os sentimentos iniciais de Pátria – esse conjunto de aspirações, de amargas e de frustradas coincidências. Esse território dos suspiros travados, de um Finisterra além do qual existem o abismo e o degredo. Sobretudo, entregaram-me eles a majestade de uma língua que inaugurou a minha humanidade.
Não sei que mestre, que mágico, que mãe misericordiosa, que amor desfeito na aluvião das montanhas me transmitiram a caprichosa convicção de que a palavra, espúria e nômade, tinha o dom de costurar todos os sentimentos. E que a palavra ainda, associada à história secreta das nações e ao enredo indevassável do destino humano, se tornava a única chave com que forçar a porta do mundo, lacrada com cera e enigmas.
Arrasto comigo seres arcaicos e memórias coercivas. A caravela que navega no meu imaginário, como herança, insiste em que levantemos as velas. O vento que assopra conduz-nos pelas grotas de geografia indômita, vistoria palavras e sentimentos cravados no peito alheio. Espinhos de uma roseira que pende sob o fardo de juras e queixumes solitários. O Brasil, saído dessa fornalha, alimenta a fome verbal de seus filhos."
-- Nélida Piñon em discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (3/5/1990)