Cunha e Silva Filho

 

          No meu ensaio de introdução à Lira dos cinquentanos, [1] de Elmar Carvalho, antologia poética, não levei em conta o conjunto de poemas da seção “Poemas Inéditos,” porque só fui conhecê-los depois de publicada a antologia. São nove poemas inseridos no corpus de poemas enfeixados na antologia.
         Desses poemas quatro aparecem com data de composição, ou seja, “Chuva” (p.97), de 2002; “A cova do palhaço” ( p.107-108), de 2005 e “Simbolismo” (p.111), de 1978, curiosamente, como se vê, um poema antigo.
     “Pinheiros vistos da janela” (p.109), “A um ganancioso morto” (113), “Guernica” (p.105-106), Autoantropofagia” (p. 110), “Te(n)tação (p. 112) e “Viagem” (p. 114-118) não vêm com a data da escrita  dos poemas.À vista desses dados informativos, me cabe fazer algumas ponderações de ordem crítica acerca desse conjunto de poemas e ao mesmo tempo procurar situá-los no conjunto geral da produção poética do autor.
        Da leitura desses inéditos há um aspecto que devo apontar na poética de Elmar Carvalho, i.e., vejo com satisfação que, excetuando “Simbolismo,” de datação bastante antiga, segundo assinalei atrás, embora seja um poema de bom nível, os oito poemas mais novos – pois me parece que os não datados são também de fatura recente – se me afiguram   sinalizar uma ultrapassagem de nível no trato do autor com o exercício da poesia. Vejamos por quê..
     Na ordem em que os poemas aparecem na seção de “Poemas Inéditos,” vemos, inicialmente, “Chuva,” um longo poema, verdadeiro hino à natureza, particularmente exemplificada no elemento “Chuva.” O poema me sugere uma sinfonia, uma orquestração formada de estrofes nas quais a extensão do olhar do sujeito lírico abrange a paisagem humana e sobretudo o conjunto de objetos e seres da natureza em todos os seus ângulos e espaços considerados.
      Entretanto, é na dimensão da linguagem poética - fator determinante da sua qualidade – que, a meu ver, o poema se qualifica como peça literária original e de acabamento refinado. Não hesitaria em considerá-lo um grande momento da lírica de Elmar, da mesma forma que no poema “Viagem,” que mais adiante comentarei, me deparo com outro grande instante de puro e profundo mergulho lírico conseguido pelo poeta. Em “Chuva”, todo o poema se assenta nas suas múltiplas possibilidades rítmicas, melódica,, musicais e sinestésicas.
     Aqui o poeta me parece ter logrado o enlace perfeito entre o significado das ideias e sua forma de expressão linguística, É bem verdade que Elmar, em poemas anteriores,  já tenha empregado alguns recursos estilísticos que se constituem em marcas inconfundíveis de sua poética, como o ludismo sonoro-plástico-gráfico-sinestésico., o gosto pelas paronomásias, a palavra-puxa-palavra, a obsessão, às vezes, exagerada pelas aliterações.
     O poema “Chuva” se distingue, segundo acentuei anteriormente, pela sua riqueza de sonoridades, de onomatopeias, sem se falar no recorrente uso intertextual, quer dizer, do diálogo com outros poetas, como é exemplo o verso “foi-não foi, foi-não foi tirado do poema de Manuel Bandeira (1886-1968), “Os sapos” da obra Carnaval (1919),[2] através do qual, no Modernismo de 1922, o poeta pernambucano ironizava o Parnasianismo e principalmente, segundo Mário da Silva Brito, “ o pós-parnasianismo,” visando a alguns poetas  conhecidos, inclusive Olavo Bilac (1865-1918)), numa das noites da Semana de Arte Moderna , no Teatro Municipal de São Paulo.
    A propósito, esse poema bandeiriano, naquela Semana modernista, foi declamado pelo também poeta, diplomata e historiador literário Ronald de Carvalho (1893-1935). Numa declamação feita sob os assobios, as zombarias do público reacionário que repetia em coro “foi, não foi.” O fato é narrado pelo próprio Bandeira n o seu Itinerário de Pasárgada. [3]
   No segundo poema, “Canção Pastoiril de um Urbanóide,” o poeta põe-se em choque com a modern idade estabelecendo, ao final do poema, um contraponto a um tempo irônico e elegíaco entre as delícias e naturalidade da vida do campo e a solidão do concreto armado das grandes cidades.
     Em “Guernica”, defrontamo-nos com outra alusão intertextual, numa veemente crítica ao absurdo das guerras e da insanidade dos homens, destacando-se a estrofe com palavras iniciadas, iconicamente, pelo fonema velar sonoro, formando uma inventiva estrofe aliterada quase por inteiro, à semelhança do célebre verso “vozes, veladas, veludosas vozes,” que fazem parte de Faróis (1900) de Cruz e Sousa (1861-1898).
      Em “Pinheiro visto da janela,” de volta à natureza e a seus elementos multifários, encontramos o lirismo como sinônimo de musicalidade, de sonoridades, em versos cuja arquitetura vai ao encontro de imagens focadas nos seres inanimados, à procura de um sentido, cuja chave se encontra no próprio jogo das palavras pelas palavras.Em “Autoantropofagia,” a lírica se desliriciza num poema de corte surreal.
      No poema “Simbolismo”, com data, conforme indiquei anteriormente, de 1978, tem-se uma peça que se utiliza do recurso intertextual de cunho histórico, em que a longeva e milenar imagem da Esfinge egípcia, cuja figura aprendemos nos livros de História, ou mesmo nas telas do cinema, serve como pretexto para uma reflexão derivada de uma motivação também surrealista.Em “A cova do palhaço,” recorrendo também à citação alusiva (Heine), Elmar põe em cena a figura de um palhaço eslavo reduzida a um destino nostálgico e irremediavelmente solitário.
    O poemeto “Teia de te(n)tação, de recorte concretista, chama a atenção  pelos recursos grafemáticos e espaciais, cujo epicentro do significado repousa na exploração de uma lubricidade porosa, solta, mas de grande efeito semântico-humorístico: “tateando/tenteando/tintilando/tuas tetas/caí em te(n)tação/ entrei em tantação.” De resto, essa dimensão jogando com erótico- humorístico já aparece em outros poemas de sua obra. Vejam-se-lhe os poemas “Sex Appeal” (p51) “A ero moça” (p.56), “Sexo”(p.66) [4]
     “A um ganancioso morto.” nos defrontamos com um poema de clave filosófica, no qual se fala de alguém que, sendo ambicioso, de nada lhe valeu o apego à matéria.
        No último poema da seção “Viagem”, o poeta, mais uma vez, escreve um longo e denso trabalho de dimensão cósmica, universal. Poema abrangente, de andamento épico - recurso por ele já testado com sucesso mais de uma vez – no qual o sujeito lírico empreende uma “viagem” que vai dos elementos minimamente divisíveis da matéria física, dos átomos, dos minúsculos recantos da natureza animal, vegetal e mineral, das superfícies da Terra às profundezas oceânicas, da solidão do nosso planeta às culminâncias planetárias, do profano ao sagrado, da realidade histórica aos mitos. Não satisfeito, o poeta adentra o universo misterioso e encantatório da astrologia, criando magníficas imagens para cada signo do Zodíaco.
      São tantas as incursões em universo vários que esse poema n os lembra o complexo universo das partículas quânticas. Penso que esse bem urdido poema, pela ascendência literária tem um pouco a dever, mutatis mutandi, em inspiração e tema ao Zodíaco (1917) de Da Costa e Silva (1885-1959).
      Digo isso porque o poema de Elmar consegue combinar componentes e aspectos diversos da natureza, emprestando-lhes alcance universal e sentido de ubiquidade. Entretanto, essa “viagem” cósmica, entremostrada pela sua poesia, não o leva a uma postura cética de criação do Universo. Sua poesia vai - célere - a um encontro de natureza confessadamente cristã. Sua viagem é cósmica – devemos reconhecer -, mas seu encontro é com Deus.
      Os poemas que aqui apenas esquematicamente comento dão, sim, sinais evidentes de que Elmar Carvalho – um dos melhores poeta contemporâneos do Piauí - , ainda demonstra muito vigor e veia poética para novas incursões nos domínios do verso de qualidade.

* O presente estudo originalmente foi publicado no jornal Diário do Povo, Teresina, Piauí, em 2007, em três partes. Agora, a par de lhes melhorar  um pouco a construção escrita,   juntei-as e lhes  dei uma forma mais acadêmica.

 

[1] CARVALHO, Elmar. Lira dos cinquentanos. 1. ed. Teresina: Fundação de Apoio Cultural do Piauí – FUNDAPI, 2006.
[2] BANDEIRA, Manuel. “Os sapos.” In: ___. Carnaval. (1919). Cf. BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa . Org. pelo autor. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A, 1986. p. 158-159.
[3] Idem, p. 59.
[4] CARVALHO, Elmar. Rosa dos ventos gerais. 2. ed. rev. aumentada e melhorada. Teresina: SEGRAUS – Serviços Gráficos do Tribunal de Justiça do Piauí, 2002.