Ela fez Paraty chorar
Em: 01/09/2006, às 09H12
A mineira Adélia Prado tem sua obra relançada pela Record e emociona a platéia da da 4.ª Flip com sua voz poética
SÃO PAULO - Muita gente chorou quando a escritora mineira Adélia Prado leu seu poema "As Mortes Sucessivas" para a platéia da 4.ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Confira:
Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu, me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua,
cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu, nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza.
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
´deixa, tá bom assim´.
Quem me consolará desta lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória.
Poema integrante do livro "Bagagem", de Adélia Prado, publicado pela Editora Record
Antonio Gonçalves Filho
Se a escritora mineira Adélia Prado estivesse em campanha política, certamente teria conseguido, em menos de duas horas, 700 votos no último domingo, quando emocionou a platéia da 4ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) ao ler seu poema As Mortes Sucessivas em homenagem ao pai morto e, depois, enfrentar mais quatro horas de autógrafos. Muita gente chorou, porque a explicação teórica da poeta para a beleza e transcendência da obra de arte estava sendo colocada à prova naquele exato momento. Por uma dessas razões que a razão não explica, o choro catártico traduzia, enfim, o choque de uma manifestação teofânica, uma revelação a que já estão acostumados os leitores de Adélia Prado, de quem a Record está relançando toda a obra poética e em prosa.
Pouco antes da primeira palestra no último dia da Flip, ela recebeu o Estado para uma entrevista exclusiva no hotel onde estava hospedada. Simultaneamente, a duas mesas de distância, outra mulher falava com um repórter, a escritora americana Toni Morrison, ganhadora do prêmio Nobel de literatura de 1993. Surpresa, Adélia perguntou, curiosa, qual era o tema de sua literatura. Foi o bastante para que tivesse início uma conversa sobre militância política, intolerância e globalização.
Para surpresa de quem a quer presa numa sacristia, por ser uma escritora católica, Adélia não escapou de perguntas sobre terrorismo, corrupção no governo e até sobre Sade. Como o marquês, a brasileira assume que a condição existencial é mesmo miserável. Estamos condenados a descobrir a beleza do mundo. Para isso, diz, temos de aceitar a alteridade, a diferença que nos torna iguais. Em outras palavras, a cultura do outro.
Foi esse o fio condutor da conversa em que revelou seu desapontamento com Lula e sua admiração pelo radicalismo de homens-bomba. Na página seguinte, a explosiva entrevista da poeta traz seus argumentos a favor dessa figura odiada que, segundo a poeta, impõe um limite a nosso mundo sem freios.
Fonte> O Estado de S. Paulo, 18 de agosto de 2006