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E SOMENTE A NOITE COMPREENDIA AS SUAS PALAVRAS
 
Rogel Samuel
 
 
- E tu, última sombra, demais não será para saltares do chão pedir e pelo bosque voares? Em ti já as figuras sutis se delineiam das finais invisíveis. O do rastro não é senão o de meu desatinado rumo.
- Aonde foram eles, aonde, aonde? Ao fim do mundo?
            «...et la nuit seule entendit leurs paroles...» - cantava Verlaine.
- Gruta de luz! Gruta de luz!
Lá fora, gigantes chamam para a luta.
- Que gigantes? Avança, prepara o combate, as grandes armas já ouço, que rolam, pesadas como bolas, de aço e no vácuo tempo de entrechocarem-se. Avança! O que está cumpra-se de imediato, escrito, o cortinado abra-se da cornija do luar,  que a fina roupagem de gaze a veste, que seja desnudado o limbo, vai. Vai, e a vida valerá teu grito de socorro. E a angústia tua nos gigantes clama para a luta?
            Mas nada. O bosque morto, daquele halo de leite impregnado, de lua e o seu silêncio como diáfano véu circulando como cobra que serpenteia entre as árvores...
«A lua branca, no bosque brilha. De cada ramo, parte uma voz: Oh, bem amada!»
Lá bem longe, sopram os gigantes grandes tubos e escudos dos ventos. Mas não aqui, nessa calma, massa lassitude plácida. A gruta se enviesa em si. Velam-se as paisagens em harmonia oblíqua. Desço a ladeira, saio da massa da paisagem, intocado. Passo. Em vão. Cruzam-me ruas, calçadas em diagonal, lusco-fusco, molhadas da madrugada, vitrificadas do nada, amassadas por grandes árvores escuras que se curvam no meio do vento como comadres assanhadas. As folhas escorregam pelo chão. Não é rua, mas o Bois de Vincennes, Paris. Os lencinhos das folhas das árvores caem. Flutuam, gélidos.
Um vulto cabisbaixo sob as formidáveis árvores passa, envolto em manto preto, desaparecendo mergulhado na neblina de luz da lua. É uma velha. Que prossegue. Ela fala baixinho e sozinha gesticula (balbuciando talvez suas coisas do passado, referindo-se a seres que já morreram, ou será uma prece repetida em murmúrios por aléias velhas ali mesmo onde talvez ela conhecera seu jovem amor, talvez).
Eu a sigo. Vejo-a esconder de mim umas notas velhas, amassadas, amarradas em nó de pano. Talvez pense que sou um ladrão (e talvez eu mesmo seja), do tempo, do passado, de histórias de narrativas... aquilo não é dinheiro, mas algo mais precioso, mais raro, as velhas cartas de amor, sobras daquela era curva de preto. Ela já não me vê, mas pressente, eu a sigo, como um assassino. Ela prossegue, figura embaçada, saída das brumas do seu desconhecido passado.
            Agora chove.
            Pois na face da paisagem (aquelas árvores encurvadas sob a chuva fina, aquelas aléias e o lago por cuja superfície lisa onde cai a gélida geada) aquela mulher prossegue já coberta pela sombrinha... eu estou perto daquele templo tibetano karma-kagiu, a velha meio torta, resmunga alguma coisa para um invisível ser a seu lado, apontando-o, acusando-o com o dedo indicador, em ameaça: «você me abandonou», parece gritar.
Mas, louca, um sorriso se esmalta, e depois a estranha gargalhada, sardônica, louca teatralidade, que se espalha, por todo o espaço do mundo daquele bosque se espraia... a vera, a realidade da horrível comédia... o sorriso...
            Oh, poucos puderam presenciar tão rara de face para o meio da noite escura, naquela facetada madrugada, pois a senhora parou, sem me ver, ria-se tragicamente para a capa do copa daquelas grandes árvores altas, falando aquelas incompreensíveis coisas naquele idioma histórico, desusado, arquivado e raro... e desapareceu como a sombra da neblina onde fiquei à espera de que os grandes gigantes aparecessem para a minha luta.