É melhor algum livro do que livro algum
Por Chagas Botelho Em: 16/11/2023, às 22H05
[Chagas Botelho]
Acordei com enorme vontade de ler “A terceira margem do rio”. Fui até a estante, de lá arranquei o meu já gasto Guimarães Rosa e disparei a lê-lo:
“Sem alegria nem cuidado, decidiu um adeus para a gente. E a canoa saiu se indo”.
“Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só escutava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não soltar, nunca mais”.
Ao final da leitura do trecho acima, me lembrei do encontro que tive, outro dia e ao acaso, com o professor Gilberto Campelo. Do quanto ele incentivava os alunos a lerem os relevantes mestres da literatura nacional.
Digo isso, porque fui seu aluno na década de 1990. Como não tenho, felizmente, memória de peixe que dizem durar de dois a três segundos, me lembro muito bem das suas aulas descontraídas.
Ali, no meio da rua, sob a sombra de uma marquise, começamos a conversar e a relembrar do pré-vestibular daquela belle époque. Evocamos momentos marcantes do uso das apostilas, das inúmeras xerox e, claro, dos volumosos livros tanto de gramática como de literatura.
Relembrei um fato que até então estava acinzentado na sua memória. Numa das aulas acerca de leitura, o professor Gilberto perguntou a cada aluno o que lia no momento. A pergunta era bem didática, simples e objetiva.
“Joãozinho, o que você está lendo?”, o garoto então respondia: “Memória Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis". "E você Joaninha, o que você está lendo?”, sorridente, a jovenzinha dizia, “Vidas Secas” de Graciliano Ramos”. Assim, vários cânones foram citados.
Ao chegar na minha vez, Gilberto me indagou: “Você Botelho, qual leitura ocupa a sua mente?”. Com ar compenetrado, respondi: “Professor, estou lendo O Outro Lado da Meia Noite, de Sidney Sheldon”.
A sala inteira riu da minha resposta. Meninos e meninas achavam que Sidney Sheldon era um escritor menor. Que nunca na vida cairia uma questão no vestibular que abrangesse as obras do escritor americano. Seria impossível.
Foi quando Gilberto interpelou: “Gente, o que é isso? Qual o motivo da risada? É melhor ler algum livro do que livro algum, percebem?”. A frase caiu como uma luva. Silenciou a turma. Safou-me. Jamais me esqueci dela.
A canoa do tempo já se ia distante, quando nos demos conta da hora. Depois de tantas lembranças revisitadas, nos despedimos com imensa alegria que o reencontro merece e aplaude.
Porém, antes do Gilberto partir, lhe presenteei com o meu livro de crônicas "Olhar de Casca de Banana". Era o mínimo do presente que eu poderia dar a quem tanto me deu: o conhecimento. Aquilo que ninguém consegue nos roubar.
A despeito do autor do também “Nada Dura Para Sempre”, os colegas de turma não sabiam que ele foi a maravilhosa porta que se abriu para a minha convivência duradoura com outros incontestáveis escritores, inclusive Guimarães Rosa.