Donde estés, Benedetti...

José Ribamar Bessa Freire
24/05/2009 -
Diário do Amazonas
 
Donde estés / si es que estás / si estás llegando / será una pena que no exista Dios.
Mas habrá otros / claro que habrá otros / dignos de recibirte / comandante.
Os versos acima – do poema ‘Consternados, Rabiosos’ - escrito para Che Guevara ainda sob o impacto de sua morte, em outubro de 1967, se volta agora, como um bumerangue, para homenagear seu autor, Mário Benedetti, falecido domingo passado, em Montevidéu, aos 88 anos.
Poeta, escritor, jornalista, militante político, o uruguaio Benedetti nos deixa 80 livros de poesia, romances, contos e ensaios, além de roteiros cinematográficos e um sem-número de artigos em jornais e revistas. Sua morte se chora até em Mangueira.
“Em Mangueira, quando morre um poeta, todos choram”, assegura outro poeta, Nelson Cavaquinho. Fico me perguntando: por que será que esse verso mexe tanto com a gente, cala tão fundo dentro de nós? Será que é porque ele evoca a nossa relação com quem é capaz de despertar em nós algo cuja existência sequer desconfiávamos? Alguém que adivinha e dá forma ao que sentimos?
Posto que a poesia, como o pão-nosso-de-cada-dia, é tão indispensável à vida, padeiros e poetas fazem uma falta danada quando se ausentam. A morte de quem manuseia o trigo e a palavra não decreta o fim da poesia e do pão, é verdade, mas nos deixa saudosos do sabor de ambos. Choramos, então, a nossa fome, o poema ausente.   
E aí o mundo, de repente, se converte numa imensa Estação Primeira.  Mangueira é Paso de los Toros, onde ele nasceu, ou as ramblas de Montevidéu, onde viveu; é uma universidade qualquer no Rio de Janeiro ou um bistrô de Paris, às margens do Sena; uma biboca na beira de um lago chileno; uma comunidade campesina dos Andes; uma esquina de Buenos Aires ou um barranco de Barreirinha, no Amazonas; uma querência dos lhanos venezuelanos ou um bohío da Colômbia; o malecón de Havana ou uma alameda limenha. Tudo é Mangueira, todos os lugares em que o poeta foi pranteado.
O cangaceiro doce
Foi em Lima que conheci Mário Benedetti no exílio, em 1974, em circunstâncias insólitas, no meio de uma enorme confusão armada dentro de um hospital. O nosso poeta Thiago de Mello, que vivia exilado na Alemanha e estava de passagem pelo Peru, teve um piripaque no coração. Foi internado às pressas. Corri pra clínica. Lá, me deparei com um senhor de bigode de vassoura, um doce cangaceiro, cuja cara lembrava Miguel Arraes, e cujos gestos eram de Gianfrancesco Guarnieri. Ali, na maca, ofegante, o poeta amazonense nos apresentou.
Enquanto se realizavam os procedimentos de praxe para a internação, ficamos os três à espera do cardiologista. Apareceu, então, um médico e, ali mesmo, na portaria, colocou a aparelhagem de oxigênio no Thiago que passou a respirar mais aliviado. Instantes depois, uma enfermeira advertiu: - “Doutor, foi um equívoco. Seu paciente não é esse, é o outro na sala ao lado. Esse daí é do doutor Fulano”. Acreditem, juro que é verdade: o esculápio – tinha cara de esculápio - tentou retirar os aparelhos. Benedetti e eu ameaçamos sentar a porrada nele. Seguramos as pontas, até o doutor Fulano chegar.
O quarto do Thiago dava direito a acompanhante. Nós dois nos revezávamos, velando o amigo. A troca de turno era sempre um momento de conversa prazerosa. Numa madrugada, depois do show em uma peña, a cantora Chabuca Granda invadiu a Clínica Italiana com seus músicos. Quem tinha peito para barrá-la? O porteiro só faltou beijar os pés dela, deixando-a entrar.
Aí, em hora inapropriada, dentro do hospital, Chabuca fez serenata para Thiago. Derramou ‘lisuras’ e, com sua voz rouca e sensual, deu uma ‘canja’ para os doentes, cantando Fina Estampa’, naquela quase ‘mañanita alegre, con luz de luna y de sol’. No final, deu seu diagnóstico, olhando o amigo poeta, cujo coração estava sob cuidados médicos: “Eso te pasa por tener un corazón muy grande”.
Eu tinha consciência do privilégio de conviver, naqueles intervalos, com aquele exilado uruguaio asmático, tímido, bom de papo, com senso de humor, que já era internacionalmente conhecido e que professava a crença “na vida e no amor, na ética e em todas essas coisas fora de moda”, como ele mesmo escreveu. O período do meu exílio no Peru coincidiu com o dele: de meados de 1973 até o final de 1976.
Agora, há dias, na última segunda feira, bem cedo, eu havia acabado de ler no jornal a noticia de sua morte, quando o telefone tocou. Era um interurbano de Thiago de Mello, recém-chegado da Europa. – Você viu o que aconteceu com Benedetti? – perguntei. Thiago ficou engasgado. Não sabia ainda da morte do seu querido amigo, para quem enviara um e-mail dias antes.
Depois disso, dezenas de artigos sobre o poeta uruguaio transitaram pela internet. Uns lembravam que ele combateu a ditadura, amargou a prisão e o exílio. Outros focaram sua obra “a serviço da raiva que lhe produziam as ditaduras”, como escreveu Juan Cruz: “Morreu o poeta do compromisso, do amor e da alegria, o homem que iluminou com seus versos (de amor, de política, de terra, de ar) a vida de qualquer um. Era um homem insubornável, o mais comprometido de seu tempo. Sua morte deixa num silêncio melancólico sua época, seu exemplo e a raiz de seus versos”.
Seus poemas, que “oscilaram sempre entre um lirismo tocante e um compromisso social permanentemente reafirmado, como destacou José Carlos Ruy, muitas vezes conseguiram unir habilmente estas duas dimensões: a lírica e a social. Um exemplo é o poema ‘Consternados, Rabiosos’, dedicado a Che Guevara”.
Onde quer que estejas, se é que estás, se estás chegando, Benedetti, será uma pena que não exista Deus, uma pena, de qualquer forma haverá outros, claro que haverá outros, dignos de te receberem, poeta, porque como o comandante "estás muerto / estás vivo / estás cayendo /  estás nube / estás lluvia / estás estrella”.