Cedinho. A moça pedala uma bicicleta na paisagem desolada. Faz um esforço extra carregando uma mochila a tiracolo e subindo a serra marrom: a vegetação rala, retorcida, espinhenta, desfolhada; os cactos, empoeirados. Mais acima, coisa de meia légua, fica o povoado aonde ela vai passar o dia na casa de um velho lavrador. 


      A moça chega ofegando e pára a bicicleta no terreiro debaixo de um pé de juazeiro. O lavrador está limpando algodão dentro do casebre. Ela entra, faz-lhe um aceno, tira da mochila uma garrafa de conhaque e um pacote de fumo e os dá ao velho. Ele gargalha contente e afirma:


      - Esse sertão é forte! Não chove, não goteja, nem mato brota! Parece castigo. É assim mesmo – e ri sacudindo a cabeleira branca, mascando lascas de fumo.


      - Temos cutia no  almoço; matei na espera. Raimunda foi catar algodão na roça, não respeita nem dia santo. Precisa se aposentar – diz, e depois, fitando a moça, pergunta:


      - Já falou com a dona do cartório?  
      A moça responde que sim, que a papelada foi encaminhada, e se senta num banco de madeira, enxugando o suor do rosto. Está feliz e relaxada. O velho toma um trago do conhaque. Ele é tagarela. A bebida lentamente vai-lhe soltando a língua e as fantasias da memória.
      - Tempo de revolução, de grande chafurdo. Um dia chegam à cidade dois sujeitos bem vestidos, o automóvel brilhando na luz do sol. Eles, muito ladinos, fazem um acordo com o presidente do sindicato e fundam uma liga para proteger os trabalhadores. Tudo quanto é roceiro entra para a tal liga. Até eu entrei. Aquilo era comunismo, era contra o governo, mas o dinheiro, que é bom, chegava todo mês. A gente só fazia participar das reuniões, que muitas vezes eram escondidas. O presidente lia um montão de papel. Eu estava com a cabeça atrapalhada.


      Uma galinha cacareja por perto. Uma brisa quente percorre o casebre. A moça com a mão espalmada seca o suor do rosto. O velho toma mais uma talagada e continua de língua solta.


      - O dinheiro caía do céu. Aí, tudo muda. Corre uma notícia de que o Exército vem prender os camponeses e dar sumiço. O presidente faz uma reunião de madrugada e manda a gente fugir. Me chama a um canto e me entrega um saco cheio de papéis, de documentos, para eu jogar dentro do Tanque. Fugimos para o mato. Passei mais de mês escondido na mata. Depois soubemos que os homens prenderam o presidente e o levaram para a capital. Nunca mais apareceu. Dizem que deram um fim nele.


      O velho pica o fumo na palma da mão. A moça remexe uns fiapos de algodão entre os dedos, tecendo uma trança. As histórias ganham outros rumos fantasiosos. A moça grava numa fita a voz rouquenha do lavrador.


      A manhã se esvai e a roda do sol paira em linha reta, acima da cumeeira da casa. Raimunda retorna da roça, traz um fardo de algodão na cabeça e o deposita no chão. Passa as mãos no vestido para limpar o suor, abraça a moça sorrindo e dirige-se à cozinha. A carne da cutia chia no fogo e se encolhe na panela.


      A moça sai ao terreiro para espairecer e se abriga na sombra do juazeiro. Dali, dá para enxergar, ao longe, apenas as torres da Igreja, porque a cidade está submersa num vale abaixo dos morros e da mata seca que a circundam.