Dois perfis de intelectuais
Por Cunha e Silva Filho Em: 24/08/2021, às 19H14
Dois perfis de intelectuais
Cunha e Silva Filho
Após uma já longa experiência de vida, de leitor e de quem lida com a escrita, seja no meio acadêmico, seja fora dos muros da universidade, posso distinguir dois tipos principais de intelectuais: a) os que só vivem para a literatura; b) os que, no seu labor intelectual, imbricam literatura e prática política. Ao me referir à prática política, quero significar aquele estudioso das questões literárias, seja no campo poético, seja, no da ficção ( romance, conto, novela, seja finalmente na dramaturgia), que se expõem a seus leitores por escrito ou verbalmente, nos ensejando sua visão das realidades brasileira ou estrangeira tomadas em todos os seus ângulos. Não somente se expõem de corpo e alma sobre temas que afligem e dizem respeito à condição de ser brasileiro ou não, de cidadanias, de posições filosóficas, ideológicas, religiosas ou políticas.
Não é preciso citá-los todos, nem no passado nem no presente. O leitor, que acompanha a história da literatura brasileira, ou estrangeira, sabe a quem me reporto. Ele há de perceber que a minha preferência recai sobre os escritores, não diria apenas engagés, segundo costumavam ser rotulados autores como um Sartre, um Jorge Amado, um Oswald de Andrade, um Álvaro Lins na crítica, um Camus, um Máximo Gorki, um Zola, um Plínio Salgado, um João Antônio, um Plínio Marcos, um Otávio Paz, apenas aqui citando a esmo algumas figuras de destaque, mas escritores que, na sua atividade intelectual, em jornais e livros, dão conta de questões que dizem de perto sobre as condições em que vive o povo, uma sociedade.
A vida intelectual estritamente isolada das discussões que afetam a sociedade, o mundo, o destino dos povos me parece incompleta, como se ainda se apresentasse presa a uma “torre de marfim.” Respeito, no entanto, o comportamento desses escritores. Questão de opção de cada um. Não desconheço que alguns ficcionistas propõem questões que estão intimamente conexionadas com problemas sociais e de condições de vida de seus personagens nos vários níveis sociais, ou que ensaístas, ao discutirem temas humanos e mesmo filosóficos, se mostrem neutros a posições críticas da sociedades ou de sociedades vistas através de abordagens comparativas. Não é possível que o intelectual se restrinja a parâmetros teóricos exclusivamente de ordem estrutural e técnica.
Contudo, não vejo com bons olhos uma posição de um escritor meramente considerando a obra literária como artifícios técnicos, um produto pensado nos escrínios do laboratório seco e insensível( me lembrando aqui de um comentário de T.S.Eliot a esse tipo de análise crítica sem alma, de um crítico frio e profundamente impessoal, no que foi acompanhado pelo crítico brasileiro Álvaro Lins (1) Por ser a obra literária fruto da imaginação humana e criadora, o conjunto de elementos que a constituirão não pode perder de vista o seu fundamento individual, social e existencial, forjado na experiência, na memória e na formação literária por que passou o criador da obra.
O que a velha crítica definia como autêntica criação literária seria que esta fosse resultante de visões do mundo e do homem numa determinada sociedade e em tempo demarcado. Se ainda se fala do mistério da criação literária, é porque tal “mistério” está indissoluvelmente associado a estratégias de composição da linguagem literária e da mesma forma da predisposição do autor para criar mundos fictícios que nos dão a insuperável impressão de que estamos, enquanto leitores, vivenciando fatos, ações, conflitos de situações determinadas e convincentes da existência humana a ponto de embarcarmos na aventura da narrativa - um mundo que se sustenta por si mesmo - ou no conjunto de imagens poéticas elaboradas que nos emocionam, nos fazem refletir sobre a vida, os outros e nós mesmos.
A denominada catarse grega vale igualmente para a ficção, a poesia e mesmo para o ensaio, o qual pode provocar o sentimento da emoção estética e a identificação ou dissenso teórico-conceitual com o autor. Veja-se o exemplo que encontramos na afirmativa do velho crítico Agripino Grieco ao comentar personagens de Jorge Amado: o romance ou qualquer outro tipo de ficção forçosamente teria que ter personagens de “carne e osso.”
Ora, essa expressão, atualizada aos nossos dias de multiplicidade de abordagens críticas, elucida bem a questão crucial do que faz um romance um artefato pleno de vida, de experiência e de convencimento de uma invenção, pelos múltiplos recursos da linguagem literária, de uma sociedade, e do indivíduo particularmente, como realidades “possíveis.”
Se o leitor, o receptor, não é atraído para mundos criados com tanto discernimento e que permitem um aprendizado, uma fruição, um acompanhamento, passo a passo, do que ocorre com a narrativa e a vida de seus personagens e não se confunde com a referencialidade chã e simplista do cotidiano da realidade temporal, espacial e psicológica, então a composição desse mundo inventado se nos afigura artificial, nos causa dúvida sobre a sua “veracidade” tanto da história narrada quanto do arcabouço ficcional construído com o que Vitor Manuel de Aguiar e Silva chama de “competência literária” diferenciando-a da “competência linguística.” (2)
Existe um atributo, um dado pré-determinado que chamamos de talento, ou de vocação, ou de predisposição inata que, no meu juízo, não pode ser desprezado no conjunto do conceito geral de criação artística em todas as suas modalidades. E esse talento não se cinge apenas à criação literária; pode-se localizá-lo igualmente nas vocações de outros talentos: nos ofícios, no campo tecnológico, no campo científico, nas profissões liberais, na política, nos estudos filosóficos, enfim, em inúmeros campos da atividade humana.
Um oficina de criação literária não faz um grande escritor se este não traz em seu intelecto a chama de criador inescapável. Não se é escritor porque o queiramos, mas porque somos tragados para os braços do mundo da criação, da linguagem com fins estéticos, na luta do escritor com o trabalho espinhoso da formalização do objeto literário.
A técnica da criação literária é valiosa e deve ser cultivada, aperfeiçoada e, ademais, desenvolvida com a observação das leituras dos grandes escritores de todos os tempos. A consciência do ofício da criação deve estar sempre presente no ato de escrever vidas, problemas humanos, aos quais se juntam questões de toda ordem e em terrenos múltiplos: a natureza, o espaço físico, o tempo, a arquitetura da obra.
NOTAS:
(1) LINS, Álvaro. Teoria literária. Rio de Janeiro: Edições de Ouro. 1970, p.150. Ver, também, o que exponho sobre este assunto no meu ensaio para a obtenção do Certificado de Pós-Doutorado em Literatura Comparada pela UFRJ: SILVA FILHO, Francisco da Cunha e. Álvaro Lins e Afrânio Coutinho: dois críticos e uma polêmica. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2014, 167 p. Trabalho de Pós-Doutorado em Literatura Comparada.
(2) AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Competência linguística e competência literária - sobre a Possibilidade de uma Poética Gerativa.Coimbra: Livraria Almedina, 1977, 159 p.