Dois perfis de intelectuais                                                                                          

Cunha e Silva Filho              

 

            Após uma  já longa   experiência de vida, de leitor e de quem lida  com a  escrita, seja no  meio  acadêmico, seja fora dos muros  da universidade, posso distinguir dois  tipos  principais de  intelectuais: a) os que  só vivem  para a literatura; b) os que, no seu labor  intelectual,    imbricam  literatura  e  prática   política.                   Ao me   referir à prática política,   quero significar  aquele  estudioso das questões literárias, seja no  campo  poético, seja, no da ficção ( romance, conto,  novela,   seja finalmente na dramaturgia), que  se expõem a seus leitores  por escrito  ou  verbalmente, nos ensejando   sua visão  das realidades brasileira ou estrangeira     tomadas em todos os seus  ângulos. Não somente se expõem de corpo e alma  sobre temas  que afligem e dizem respeito  à condição  de  ser brasileiro ou não,    de cidadanias,   de  posições  filosóficas,   ideológicas, religiosas  ou  políticas.            

           Não é preciso citá-los  todos, nem no passado nem  no presente. O leitor,  que acompanha  a história  da literatura brasileira, ou estrangeira,   sabe a  quem me  reporto.  Ele há de  perceber que  a minha preferência recai  sobre  os  escritores,    não diria  apenas engagés, segundo   costumavam ser rotulados  autores  como  um Sartre,  um  Jorge Amado,  um Oswald de Andrade,  um  Álvaro Lins na crítica,    um Camus,  um Máximo  Gorki,  um Zola,   um Plínio Salgado,   um  João Antônio, um Plínio Marcos,    um Otávio  Paz,  apenas aqui  citando a esmo algumas figuras de destaque, mas escritores  que,  na sua atividade   intelectual,   em jornais e livros,   dão conta   de questões  que   dizem de perto   sobre  as condições  em que vive o  povo, uma sociedade.        

             A vida  intelectual  estritamente   isolada das discussões  que  afetam  a sociedade,  o mundo, o destino  dos povos  me parece  incompleta, como se ainda  se apresentasse presa a uma “torre de marfim.” Respeito,  no entanto,   o comportamento   desses escritores. Questão de opção de cada um.   Não desconheço  que alguns  ficcionistas propõem  questões  que  estão   intimamente  conexionadas  com  problemas sociais  e de condições de vida  de seus  personagens nos vários  níveis  sociais, ou que  ensaístas,   ao  discutirem   temas  humanos   e  mesmo  filosóficos,  se mostrem  neutros  a  posições críticas  da sociedades   ou de   sociedades    vistas    através de  abordagens  comparativas. Não é  possível  que  o intelectual   se  restrinja  a parâmetros  teóricos     exclusivamente    de ordem   estrutural e técnica.

           Contudo,  não  vejo  com  bons olhos   uma  posição    de um escritor    meramente    considerando   a obra literária   como  artifícios  técnicos,  um   produto pensado   nos  escrínios   do laboratório seco  e insensível( me lembrando   aqui de um comentário  de T.S.Eliot   a  esse tipo de análise crítica sem alma,  de um crítico frio  e profundamente  impessoal, no que foi acompanhado  pelo  crítico  brasileiro  Álvaro Lins (1)  Por ser a  obra literária   fruto  da imaginação   humana e criadora, o conjunto  de  elementos  que  a constituirão não  pode  perder de vista  o  seu  fundamento   individual,  social   e existencial, forjado na experiência,  na memória  e na formação   literária  por que  passou  o criador da obra.        

           O que  a velha crítica definia  como    autêntica   criação  literária  seria   que  esta   fosse  resultante   de  visões  do mundo e do homem numa  determinada   sociedade   e em tempo  demarcado. Se ainda se  fala do mistério  da criação literária, é porque  tal  “mistério”  está   indissoluvelmente  associado  a estratégias  de  composição  da linguagem   literária  e da mesma forma  da predisposição  do autor  para   criar mundos  fictícios  que nos dão   a insuperável    impressão   de que estamos,    enquanto  leitores,  vivenciando   fatos,  ações,   conflitos de  situações   determinadas e convincentes  da existência humana a ponto de  embarcarmos  na aventura da narrativa -  um mundo que  se sustenta por si mesmo -   ou  no conjunto de imagens   poéticas   elaboradas  que nos emocionam,  nos fazem   refletir  sobre  a vida, os outros e nós mesmos.      

          A denominada catarse grega vale  igualmente  para  a ficção,  a poesia e mesmo  para o ensaio, o qual  pode  provocar  o sentimento da emoção   estética e  a identificação ou dissenso    teórico-conceitual  com  o autor.  Veja-se o  exemplo  que  encontramos  na afirmativa  do velho  crítico  Agripino  Grieco ao  comentar   personagens de Jorge Amado: o romance ou  qualquer outro  tipo de ficção forçosamente teria  que  ter  personagens  de “carne e osso.”            

          Ora,  essa expressão, atualizada  aos nossos dias  de  multiplicidade  de abordagens  críticas, elucida   bem  a questão  crucial   do que  faz um   romance  um artefato  pleno de vida,  de  experiência  e de convencimento  de uma  invenção,  pelos múltiplos  recursos da  linguagem   literária, de uma  sociedade,  e do  indivíduo particularmente, como  realidades  “possíveis.”        

          Se o leitor,  o receptor,  não  é atraído  para  mundos   criados   com   tanto  discernimento e que  permitem  um aprendizado, uma fruição,  um  acompanhamento, passo a passo,   do que  ocorre  com  a narrativa  e a vida de seus  personagens e não se confunde com   a referencialidade   chã  e  simplista  do cotidiano  da  realidade    temporal, espacial  e psicológica, então  a composição  desse  mundo   inventado se nos afigura   artificial,   nos causa    dúvida  sobre a sua  “veracidade”  tanto  da história narrada  quanto   do arcabouço   ficcional  construído  com  o que  Vitor  Manuel  de Aguiar e Silva chama de “competência literária”  diferenciando-a da “competência linguística.” (2)    

         Existe um atributo,   um dado  pré-determinado  que chamamos  de talento, ou de vocação,  ou  de predisposição  inata que, no meu  juízo,  não pode ser  desprezado  no conjunto  do conceito  geral   de  criação artística  em todas as suas modalidades. E esse  talento   não se cinge apenas  à criação   literária; pode-se  localizá-lo  igualmente  nas vocações   de outros  talentos: nos ofícios,  no campo  tecnológico,  no campo  científico,  nas profissões liberais, na política, nos estudos filosóficos, enfim, em  inúmeros  campos  da atividade  humana.        

          Um oficina de  criação  literária  não faz um grande  escritor se este não traz em seu  intelecto  a chama  de criador   inescapável. Não se é escritor  porque  o queiramos, mas  porque  somos   tragados  para  os  braços   do mundo  da criação,   da linguagem com fins   estéticos,  na luta  do escritor   com  o trabalho   espinhoso  da formalização   do  objeto  literário.      

          A técnica  da criação  literária  é valiosa  e deve ser  cultivada,   aperfeiçoada e, ademais,   desenvolvida  com   a observação   das leituras  dos  grandes  escritores de todos os tempos. A consciência do ofício  da criação  deve estar sempre  presente no ato de escrever   vidas,  problemas  humanos,   aos quais  se  juntam   questões de toda ordem e em  terrenos   múltiplos: a natureza,  o espaço físico,  o tempo,   a arquitetura  da obra.

NOTAS:

 (1) LINS, Álvaro. Teoria literária. Rio de Janeiro: Edições de Ouro.  1970, p.150. Ver,  também,  o que exponho sobre este assunto no meu ensaio  para a obtenção do  Certificado  de Pós-Doutorado em  Literatura  Comparada pela UFRJ: SILVA FILHO, Francisco da Cunha e.   Álvaro Lins e Afrânio Coutinho: dois críticos e uma polêmica.      Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2014, 167 p. Trabalho de  Pós-Doutorado em Literatura Comparada. 

(2) AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Competência  linguística e competência literária - sobre a Possibilidade de uma Poética Gerativa.Coimbra: Livraria Almedina, 1977, 159 p.