Dizer o que de ti, Fortaleza?

[Caio Porfírio Carneiro]

Em 1997, o poeta Arthur Eduardo Benevides, presidente da Academia Cearense de Letras, promoveu uma bela sessão solene na Academia para homenagear uns cinco cearenses ilustres. E lá me meteu o grande poeta entre os ilustres. Fomos saudados pelo meu querido e saudoso amigo Dorian Sampaio. Cada um de nós recebeu um belo diploma. Ao chegar a minha vez, de improviso e para a minha própria surpresa, que não preparara nada, pronunciei as seguintes palavras: “Transferi-me para São Paulo há quarenta e dois anos. Creio que retornei ao Ceará, nesse espaço de tempo, umas sessenta vezes. Então não saí do Ceará. Apenas mudei a minha residência para um lugar mais distante.” Fosse hoje aquela generosa homenagem, eu alteraria o final do meu elíptico discurso: “Transferi-me para São Paulo há cinqüenta e três anos. Creio que retornei ao Ceará, neste espaço de tempo, umas oitenta vezes.”


Não é exagero. Retorno à minha querida cidade praticamente de seis em seis meses. Eis porque acompanhei o seu crescimento e acompanhei e acompanho a vida dos amigos da minha geração, muitos deles já em plagas desconhecidas. Fiz amigos novos, participo ou tomo conhecimento de perto da vida literária e cultural de Fortaleza e colaboro em suplementos e revista locais.


Por que este meu amor à cidade que me viu nascer, em 1928, dia 1º de julho, às onze horas da manhã, uma quinta-feira, na Rua 24 de Maio, entre as ruas Clarindo de Queirós e Antonio Pompeu, lado da sombra? Saudade da Praça São Sebastião, para onde me mudei aos seis anos de idade, e me deslumbrava com aquele areal enorme e aquelas mungubeiras farfalhantes, com desocupados dormindo à sombra delas? Saudade da minha religiosidade junto aos padres sacramentinos, da igreja de São Benedito? Saudade do meu tempo de liceísta e das aventuras amorosas? Saudade do meu ateísmo meio desvairado e dos vivas a Luís Carlos Prestes, que deixaram os padres sacramentados danados da vida? Saudade do meu tempo de jornalista d’O Democrata, do Partido Comunista? Saudade dos comícios lá para os lados dos bairros do Pici, do Cocorote e de Maraponga, em cima de um tamborete, sem um tostão no bolso, falando para meia dúzia de pessoas humildes e perplexas, procurando derrubar o imperialismo americano? Saudade dos cabarés baratos? Saudade das namoradas? Saudade das discussões sobre política e literatura, com os amigos da Faculdade de Filosofia, dos irmãos Maristas, período particularmente rico na minha vida? Saudade da Agência da Panair do Brasil (firma Celso Nunes), onde comecei no balcão, despachando encomendas, e três anos depois assumia a gerência do escritório, com bom ordenado, metido sempre no linho S-120 e na casimira inglesa? Saudade das serenatas à janela das Julietas? Saudade da efervescência literária da minha geração, que nos levava a ler e a admirar os maiorais da terra?


Uma vida que teve tudo para golpear estas saudades. Quando eu pensei que estava lá em cima, vim abaixo num escorregão só. Fiquei tuberculoso aos vinte e quatro anos de idade. Quatro meses no sanatório de Messejana e três anos em casa tomando pneumotórax. Fui jogado às traças. Todos tinham medo do contágio. A minha doença era uma AIDS na época. Poucos amigos me visitavam. Perdi o emprego, perdi namorada, tudo. Na Rua Princesa Isabel, onde eu residia, eu era quase um leproso para os moradores dela. Eu dava uma voltinha na Praça de Ferreira, centro da cidade, e voltava ligeiro, porque os conhecidos só me saudavam de longe.


Um irmão, bem situado no Sul, foi a Fortaleza e trouxe para São Paulo toda a família. Lembro-me bem que falei aos poucos amigos que não me abandonaram: “Nunca mais ponho os pés nesta cidade.”
Aqui na paulicéia, cercado pelos cuidados familiares, morreu o burocrata aeroviário de Fortaleza e nasceu o escritor. E veio de mansinho, nas noites frias paulistanas, uma inexplicável saudade de Fortaleza. Uma saudade diferente, que ia além de toda a minha vida vivida nela. Uma saudade da alma da cidade, que não tinha culpa das minhas vitórias e reveses. Então, com poucos meses aqui, falei para o mano que eu queria rever Fortaleza. Ele se espantou: “Já?!”


E voltei. Os amigos, e eram muitos, voltaram. A doença, que me abalou tanto, ficou esquecida no passado. O que me importou, na primeira volta, foi tomar uma cerveja e uma sopa de cabeça de peixe no Passeio Público.


E a ponte se fez, a lançadeira vai-e-volta continuou ininterrupta até hoje e irá em frente até não sei quando. Tal como afirmei no início: nestes cinqüenta e três anos de residência em São Paulo voltei a Fortaleza umas oitenta vezes.


Evoluí muito, ao correr dos anos, nas minhas produções literárias, para melhor ou para pior, não sei. Mas as minhas raízes perduram, como um contra-espelho, nas terras do meu sertão, lá para os lados de Santana do Acaraú, e em Fortaleza, cidade dos meus amores (um pouco de romantismo piegas até que é bom...).


É tão marcante essa presença que grande número de contos dos meus livros foram escritos em Fortaleza. Em Maiores e Menores (contos, 2002), publico, no final, uma “Oração a Mim Mesmo”, onde firmo, quase que numa prece, o tripé da minha vida: a fazenda, herança dos avós paternos, com muito da geografia e da alma do Trapiá, meu livro de estréia e do coração; Fortaleza, onde nasci e me fiz homem; São Paulo, onde resido desde o dia 17 de novembro de 1955. O segundo tripé, referente à Fortaleza, aqui vai: “Segundo Mistério”: “À cabeceira desta mesa, cercada de cadeiras silentes de encostos altos, deixo que os olhos vagueiem no trecho da cidade lá fora, carros deslizando no asfalto, lancetear de alucinações, espraiando e subindo aos céus dentro do tempo que avança. Do borralho do passado emerge o berço da infância entre ruas sonolentas, da Fortaleza dormitante e cochilante, no colchão quadriculado do areal que a cercava, pontilhado de casebres derreados, o mar quebrando mais distante.


E eu me vejo aqui, só aqui, que o passado é o passado, o presente uma abstração, e o futuro se encurta e se encolhe, que pouco para mim será.”


No meu livro Gramíneas, quase todo escrito em Fortaleza, publico um poema sobre a cidade. Não importa que Dante me amaldiçoe com as suas cinzas multi-seculares; não importa que Camões ordene que eu “cesse tudo”, que o valor dele mais alto se alevantou; não importa que o espírito de Drummond ponha pedras no meu caminho; não importa que todos os poetas da minha terra, dos maiores aos menores, do passado ao presente, gritem que poeta não sou.


Meu estro é quase nada, que as musas não me ajudam, mas o poema que me palpita no coração é enorme, em palavras mudas. Então esta mensagem (poesia?) fica aqui registrada. Minha homenagem (e quem sabe meu pedido de perdão por ser tão pequena e pálida) à Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção:

Fortaleza

De ti, o que dizer, Fortaleza?
O que valem palavras?
Tão nulas.
Abri os olhos no teu seio,
que acolheu o meu suspiro.

Dizer o que de ti,
se te integraste à minh’alma,
és essência de mim mesmo?
Trocaríamos palavras nulas.
O silêncio é a solução.

Todos cantam sua terra...
Como vou cantar a minha
se eu cantaria a canção eterna
que vive dentro de mim?

Não cantarei as raízes que vêem dos avós. Leiam o Trapiá. Ele, em prosa, dirá tudo.