Discurso em apresentação a Teodoro Bicanca
Em: 28/08/2016, às 15H07
[Dilson Lages Monteiro]
Senhores e senhoras,
Saúdo a todos, lembrando a figura do notável romancista Orlando Geraldo Rêgo de Carvalho (O. G.); de suas palavras em memorável palestra para numerosa plateia de estudantes secundaristas e alguns curiosos, entre os quais me incluía, nos idos de 1990. No auditório do Liceu Piauiense, ao falar sobre sua formação como literato, O. G. fez um apanhado dos traços que definiam a prosa de ficção quando publicou Rio Subterrâneo.
Em dia de iluminação, daqueles em que as ideias têm asas, de voz firme em sua energia que respirava literatura quando se pronunciava sobre ela, a sua literatura notadamente, citou, para minha surpresa, eu que já o ouvira manifestar-se várias vezes sobre como se fez escritor, Teodoro Bicanca, de Renato Pires Castello Branco.
O nome do autor já me era conhecido dos compêndios de literatura. Também o mesmo nome sobre quem, em menino, ouvira minha avó materna falar em algumas ocasiões, aludindo saudosamente à sua tia – e também do esposo - Antônia Pires Rebello (Tunica), avô do escritor; a tia acolhedora a quem visitava quando estudante em Parnaíba e sobre quem se enchia de felicidade ao falar. A obra, porém, somente naquele dia, percebi tratar-se, segundo revelava O. G. Rego, valiosa, porque precursora do modernismo na Literatura Piauiense.
Em objetivas palavras, Orlando Geraldo resumiu o cerne do romance; traçou-lhe apanhado de sua mímese e dos elementos identitários que a tornavam única. Então, recém-egresso ao curso de Letras, vasculhei as bibliotecas de Teresina, para sorver de Bicanca a atmosfera de que o nosso notável prosador havia falado com um entusiasmo sincero de que se tratava de um livro especial.
Minha curiosidade logo se arrefeceu. Em nenhuma delas, encontrei o livro. Tive de me contentar com as referências apropriadas e oportunas de Herculano Moraes em Visão Histórica da Literatura Piauiense, embora não me desse por satisfeito da frustração de, naquele momento, não ler livro tão fundamental para nossa história literária. Muitos jovens interessados em literatura piauiense, creio, vivenciaram a minha insatisfação e esperam até hoje o momento para conhecer o romance que insere o Piauí na prosa moderna de ficção.
Em meu caso, particularmente, quase uma década depois da palestra de O. G., meu desejo materializou-se em presente a mim encaminhado pelo sociólogo e genealogista Edgardo Pires Ferreira. Ele desfrutara da amizade com o autor, a quem muito estimava, e me concedera a surpresa de fazer com que os livros mais valiosos de Renato Pires Castello Branco me chegassem às mãos. E, assim, surgia a oportunidade de conhecer Teodoro Bicanca e Civilização do couro, há muito ausentes de nossas bibliotecas.
No caso de outros curiosos e interessados em nossas letras, a quem não foi concedido ainda o privilégio da leitura de Renato Castello Branco, o momento chegou: Teodoro Bicanca, agrupada em edição com o clássico estudo sociológico Civilização do Couro, integra a centena de obras basilares da história cultural do Estado, reunidas em esforço histórico, para comemorar, em 2017, os cem anos deste Cenáculo de Letras.
Senhores e senhoras,
Escrevendo sobre o romance de 30, o crítico literário José Hidelbrando Dacanal reúne alguns elementos comuns aos romances produzidos em torno do ideário regionalista:
a)”O que é narrado é verossímil, é semelhante à verdade”;
b)”Em termos de estrutura narrativa, isto é, a forma como são apresentados os fatos narrados, é fundamentalmente linear”, em geral;
c)A linguagem “é filtrada pelo chamado código urbano culto”,
d)”O romance fixa diretamente estruturas históricas perfeitamente identificáveis por suas características econômicas e sociais;
e)”As estruturas históricas são geralmente agrárias (...) As personagens vivem no espaço urbano, mas procedem do espaço agrário, do que resultam conflitos não poucas vezes centrais no desenvolvimento do enredo”;
f)”O romance de 30, está impregnado de um otimismo que poderia ser qualificado de um ingênuo. (...) E, portanto, reformável, se preciso e quando preciso. Basta a vontade dos indivíduos e/ou grupo para que a consciência, que domine o real o transforme”;
A par disso, em Teodoro Bicanca, cuja primeira e única edição é de 1948, Renato Castello Branco narra o drama da divisão de classes, expressa na exploração dos trabalhadores braçais na fazenda Areia Branca, nos lugares sociais pré-demarcados na sociedade parnaibana, na exploração do capital sobre vareiros, canoeiros e embarcadiços do Parnaíba.
Esta seria na literatura piauiense a primeira obra a conjugar os traços temático-estilísticos a que se refere Dacanal, os quais servem como pano de fundo para denunciar as injustiças sociais, ideário comum a toda essa literatura produzida com sucesso entre 1928 e 1960, ainda que calcada em grande preocupação com a ambientação social e humana, herdada do realismo. Ainda que, como lembra Antônio Cândido, em Iniciação à literatura brasileira, ocorram os riscos expressos “pela redução da humanidade dos personagens, pelo pitoresco superficial e pela dificuldade de ajustar a linguagem culta aos torneios populares” .
A estrutura do romance regionalista, entretanto, conforme explica Alfredo Bosi, citando Lucien Goldmann, apresenta um “herói que se opõe e resiste agonicamente às pressões da natureza e do meio social”:
“Os fatos assumem significação menos ingênua e servem para revelar as graves lesões que a vida em sociedade produz no tecido da pessoa humana: logram por isso alcançar uma densidade moral e uma verdade histórica muito mais profunda. Há menor proliferação de tipos secundários e pitorescos: as figuras são tratadas em seu nexo dinâmico com a paisagem e a realidade sócio-econômica. (...) E dessa relação que nasce o enredo. Passa-se do tipo à expressão; e, embora sem intimismo, talha-se o caráter do protagonista”.
Nesse sentido, Bicanca, o primeiro protagonista, é um resistente. Resiste, ou tenta resistir, à reprodução do ciclo de arbitrariedade que cerca o destino do pai, explorado na roça, explorado na extração da cera de carnaúba. Resiste ao aventurar-se na venda de água de porta em porta em Parnaíba. Resiste no brutal esforço de vareiro valente. Resiste ao abraçar a causa da consciência do amigo e advogado Abedias – este, talvez alter ego de Renato. Resiste, enfim, ainda que sem sucesso, a reproduzir silenciosamente as engrenagens da opressão.
Em Teodoro Bicanca, a fusão entre lirismo e preocupação social consiste em fator que torna a narrativa envolvente, ressaltando traço a que a crítica é unânime em afirmar: há um alto grau de associação entre o eu do escritor e a sociedade que o formou, de tal modo que a memória rompe como elemento vital do processo de escritura até nos efeitos de sentidos alçançados por termos próprios do falar regional.
Essa fusão é mais determinante, a nosso ver, em passagens que recuperavam os hábitos da vida na fazenda, ou a estratificação social na Parnaíba representada. Nesse ponto, marcam a leitura a lembrança das regras que regem a distribuição do trabalho no mundo rural e o “sereno” na porta da associação festiva parnaibana. Marcam, principalmente, pela imposição da memória sobre a ficção em perceptível carga de lirismo.
Em dissertação de mestrado sobre Teodoro Bicanca, de leitura recomendável, a professora Arlene Soares, em lúcida e inteligente interpretação discursivo-estilística da obra, diz que
“Renato Castello Branco Jamais abandonou as reflexões que o despertaram na juventude as questões humanitárias, mostrando-se sempre atento às injustiças sociais e às transformações do Mundo”.
É nesse ponto que, a nosso ver, compromissado com o ideário do regionalismo, o escritor alcança seu ponto mais elevado. Revela-se aqui a incorporação do marxismo como fundamento para a gênese de seu projeto literário no romance. Ao incorporar postulados marxistas para a tessitura das ações do romance e do perfil dos personagens de maior relevo, age em defesa, no fundo, do próprio humanismo, alcançando efeitos próximos aos alcançados por Graciliano Ramos em São Bernardo.
Neste, Paulo Honório, para manter sob controle os agregados, utiliza-se dos mais variados meios de controle social, inclusive do extremo da violência física. A esse propósito, essa aproximação ideológica é cabível em passagens como:
(...) Uma tarde surpreendi no oitão da Capela (...) Luís Padilha discursando para Marciano e Casimiro Lopes:
-- Um roubo. O que tem sido demonstrado categoricamente pelos filósofos e vem nos livros. Vejam: mais de uma légua de terras, casas, mata açude, gado, tudo de um homem. Não está certo.
Marciano, mulato esbodegado, regalou-se, entrochando-se todo e mostrando as gengivas banguelas:
-- O senhor tem razão, seu Padilha. Eu não entendo, sou bruto, mas perco o sono assuntando nisso. A gente se mata por causa dos outros. É ou não é, Casimiro?
Casimiro Lopes franziu as ventas, declarou que as coisas desde o começo do mundo tinham dono.
-- Qual dono! Gritou Padilha. O que há é que morremos trabalhando para enriquecer os outros.
(São Bernardo, p.44)
Analogamente, em Teodoro Bicanca, deparamo-nos com passagens como esta:
“Com a convivência de Abedias, Teodoro ia compreendendo coisas que nunca lhe passara pela cabeça. O mundo começava a se apresentar a seus olhos de modo diferente.
E os coronéis, também, tinham outros coronéis ainda maiores acima deles, os que compravam a cera, ou o babaçu, ou as peles, para mandar para a estranja. E Abedias dizia que também dependiam de gente ainda mais poderosa.
O mundo de Teodoro tornava-se cada vez mais complexo, - era o mundo do bicho maior comendo o menor: o coronel comendo o agregado, o exportador comendo o coronel, a estranja comendo o exportador.”
(Teodoro Bicanda, p. 135).
Senhores e senhoras,
Resumindo a resistência literária em Teodoro Bicanca, de Renato Castello Branco, cabe dizer sobre o autor, o que disse Antônio Cândido ao analisar a obra de Graciliano Ramos:
“A literatura é o seu protesto, o modo de manifestar a reação contra o mundo das normas contritoras. Como em quase todo artista, a fuga da situação por meio da criação mental é o seu jeito peculiar de inserir-se nele, de nele definir um lugar”.
Muito obrigado!
Discurso proferido pelo escritor e ocupante da cadeira 21 da Academia Piauiense de Letras, Dílson Lages Monteiro, em apresentação de Teodoro Bicanca, durante lançamento do volume 81 da Coleção Centenário, na Academia Piauiense de Letras, em 25.08.2016.