Discurso de posse na Academia
Em: 10/11/2012, às 11H10
26 de outubro de 2012.
Desejo nesse momento manifestar minha satisfação em tomar posse na Academia Amazonense de Letras e dizer a todos os presentes dos motivos de minha alegria. Isso por que de certa maneira, desde que passei a viver em Manaus quando tinha 19 anos, tive a oportunidade de começar a viver experiências que posso claramente reconhecer como situações relacionadas com a vida literária e artística de Manaus. Foi nessa época que tive a feliz ocasião de conhecer os meus dois primeiros amigos amazonenses, que já eram então escritores reconhecidos. Estou me referindo a Elson Farias e Luiz Bacelar. O fato de conhecê-los, tão logo que passei a viver aqui, é algo que devo certamente reconhecer como um privilégio.
Ambos freqüentavam as sessões musicais na casa de meu avô, o também poeta Raimundo Freitas Pinto, e foi nesse ambiente que tive a oportunidade de conhecê-los. Foi por intermédio desses dois escritores - que me impressionaram primeiramente pelo conhecimento que possuíam de literatura em seu sentido mais universal – e que aos poucos fui conhecendo também seu domínio do fazer poético, e a partir do que tive uma impressão extremamente positiva do ambiente artístico e cultural da cidade.
Se é verdade que a biblioteca de meu pai já me despertara um certo gosto pela leitura, foi em Manaus e através desses amigos que passei a conhecer melhor não apenas o campo literário, mas também o de outras artes com as quais fui travando contato, sobretudo através do Movimento Madrugada. Foi então a partir dessa experiência ampliada que tive a oportunidade de conhecer os artistas plásticos Moacir Andrade, Álvaro Páscoa, Getúlio Alho, Afrânio de Castro, que eram juntamente com outros mais novos como Gualter Batista, Enéas Valle, Zéca Nazaré, Van Pereira e Hahnemann Bacelar, os responsáveis pela criação de um novo modo de ver e representar o mundo através do desenho, da gravura, das ilustrações e de tintas e pincéis, conectando a Amazônia com movimentos de renovação que estavam em curso em outras cidades brasileiras.
O Movimento Madrugada, em associação com outros movimentos culturais da cidade como o representado pelo Grupo de Estudos Cinematográficos, do qual guardo a lembrança do lançamento do Mostrador de Sombras - primeiro livro de Márcio Souza sobre cinema -, assim como das críticas sobre filmes escritas por Luiz Ruas, que para nós era um decifrador de filmes. A combinação da ação desses movimentos exerceu a importante tarefa de difundir os artistas e movimentos de vanguarda, entre os quais deve ser lembrado o Concretismo e o neoconcretismo e mesmo movimentos como o cinema novo, a nouvelle vague francesa, o neo-realismo italiano, o Nouveau Roman, assim como de outras tendências no campo das artes visuais que aqui de algum modo se refletiam no trabalho de artistas da geração mais jovem.
Esse contato com escritores e artistas do Clube da Madrugada foi de extrema importância para minha aprendizagem em sentido abrangente, pois em torno do grupo principal de artistas plásticos e escritores gravitavam jovens ligados a um tipo de ativismo cultural e político. Sim, porque havia também uma clara compreensão de que o campo da cultura e da arte estava fortemente em conexão com os ideais políticos, em particular aqueles relacionados com as possibilidades de resistência contra o regime autoritário que se instalara em 1964. A arte e o campo cultural apareciam entre as últimas possibilidades de se desenvolverem atividades de resistência ao regime ditatorial e de luta pela reconquista da democracia e do estado de direito. Isso para lembrar que apesar de todas as dificuldades típicas das regiões mais afastadas do epicentro cultural do país, Manaus estava conectada culturalmente e de um modo particular com o Rio de Janeiro.
Com vários incidentes que envolveram artistas e intelectuais, o movimento madrugada conseguiu habilmente sobreviver aos anos mais duros anos da ditadura, sem deixar obviamente de sofrer as restrições que eram impostas à vida cultural do país. Conseguiu na verdade conectar a produção literária e artística de modo amplo com as principais correntes e tendências da arte brasileira, sendo esse papel provavelmente o mais importante de sua história. Uma história que, em certo sentido, durou enquanto durou o fechamento político do país, de uma vez que, com a abertura e a recomposição lenta, prolongada da vida democrática, na verdade, ainda em curso, o movimento como que perdia sua força inicial até praticamente se diluir na dispersão de seus componentes.
São essas as primeiras impressões que tive da vida intelectual e espiritual do Amazonas, as quais foram se acrescentando outras igualmente marcantes que passo a mencionar de forma necessariamente breve e que tem muito a ver com o contato com algumas personalidades singulares da vida cultural local, das quais devo destacar em consideração a este momento de meu ingresso na Academia, aqueles que tive a oportunidade de conhecer pessoalmente. Entre essas personalidades, todas elas tendo seus nomes identificados com a Academia, lembro com especial deferência João Chrysóstomo de Oliveira, Agenor Ferreira Lima, André Araújo, Mário Ypiranga Monteiro, Arthur Cézar Ferreira Reis, Djalma Batista e Samuel Benchimol, com os quais aprendi diversas lições quer como professores, desde o Colégio Estadual até a Universidade do Amazonas, quer como autores de obras fundamentais para o conhecimento da Amazônia. Todos esses nomes fizeram história na Academia amazonense de Letras e imprimiram a ela a marca de seus pensamentos originais que fazem parte da formação de um pensamento sobre a Amazônia que, por sua vez, está fortemente integrado ao pensamento social brasileiro.
Ao nos referirmos à representatividade das obras e das idéias de alguns desses intelectuais que acabamos de mencionar para a formação e o desenvolvimento do pensamento brasileiro temos claramente em perspectiva a convicção de que esse pensamento vai se constituindo com a participação não apenas dos pensadores situados nos centros culturais e políticos mais densamente atuantes, mas nos centros mais distantes, espalhados pelas diferentes regiões do país, ou seja, a idéia de que a cultura brasileira pode ser representada pelas imagens do arquipélago formado por ilhas maiores e menores ou mesmo pela idéia de constelações que confere ao conjunto a condição de um sistema em conexão, e no qual cada um dos elementos é imprescindível para formar a idéia de totalidade.
Assim, a literatura, como a cultura de um país não é só aquela que se desenvolve e se propaga nos grandes centros metropolitanos, mas também aquela que tem sua origem em locais afastados desses centros, como tem demonstrado fartamente o processo de formação da literatura e da cultura brasileira em seu sentido mais abrangente, desde seus momentos inaugurais até o presente. Sabemos entretanto, das dificuldades existentes para rompermos com as desigualdades existentes entre as regiões, em especial quanto ao reconhecimento de formamos uma constelação de diferenças e que essas diferenças constituem o nosso maior potencial criativo.
Dos autores mencionados destacarei apenas aqueles com os quais já tive algum tipo de participação, seja escrevendo sobre eles e sobre alguma de suas obras, seja empreendendo ou acompanhando pesquisas no ambiente da Universidade, onde praticamente desenvolvo até o presente o trabalho de professor e pesquisador. Devo mencionar a respeito desse trabalho de pesquisa na Universidade que um dos nossos empenhos maiores tem sido o de compreender e interpretar o pensamento que tem se produzido na Amazônia como parte constitutiva e representativa do pensamento brasileiro. É portanto, nessa perspectiva que estamos tomando alguns desses autores e de suas obras e respectivas contribuições.
Vou começar mencionando André Araújo, cuja obra para nós das Ciências Sociais possui um particular interesse, pois foi reconhecidamente o autor das primeiras obras de sociologia sistemática da Amazônia. Como orientador de pesquisas no âmbito de mestrados da UFAM, orientei dois trabalhos de pesquisa envolvendo, o primeiro, seu pensamento educacional e o segundo, o pensamento sociológico do autor de Introdução à Sociologia da Amazônia, obra que tive a oportunidade de participar de sua reedição quando me encontrava à frente da Editora da Universidade Federal do Amazonas, a EDUA, em trabalho de co-edição com a Editora Valer cujo programa editorial encontrava-se sob a direção de Tenório Teles e hoje membro da Academia. Do professor André Araújo, guardamos a viva lembrança de um professor e intelectual sem qualquer tipo de vaidade ou arrogância. Era um homem de fácil convivência, desprendido, que possuía um humor irreverente e que apreciava manter com seus alunos, uma boa conversa em torno de leituras e de autores sobre os quais recomendava as obras.
Ocupou várias posições e cargos na estrutura do poder local, mas preferimos destacar o que existe de original em sua trajetória de homem de ação, porque os cargos de secretarias de governo e outros da vida pública, podem ser ocupados, como de fato acontece, sem que haja qualquer mérito , muitas vezes significando exatamente o contrário, quando se trata de simplesmente deter fatias do poder, do que resulta em boa parte no descompromisso, mediocridade e irresponsabilidade que, hoje como ontem, estão presentes na vida pública brasileira, muitas vezes de forma vergonhosa.
Portanto, André Araújo não era apenas um professor dedicado a estudar e escrever sobre as questões fundamentais da formação social amazônica, trabalho que realizava através de uma escrita rigorosa e reveladora de um sentido crítico presente em suas abordagens dos problemas investigados. Era também o que chamamos de homem de ação. Foi o primeiro Juíz de Menores do Amazonas e em relação aos menores e a família e a questão social em sentido amplo, produziu não apenas obras importantes, mas foi responsável por várias iniciativas no campo da educação voltadas para crianças e adolescentes necessitando de atenção especial. Na condição de presidente da Cruzada Nacional da Educação ajudou a fundar perto de 100 escolas de alfabetização no interior do Estado.
Dedicou-se ao estudo da cultura popular amazônica, sobre a qual deixou registros relevantes em sua obra Sociologia de Manaus e sobretudo através de documentação fotográfica que produziu pessoalmente. Uma parte substancial de sua obra dedicada aos problemas da infância e da família vendo sendo recuperada através de edições promovidas pela Secretaria de Cultura do Estado.
Fui aluno do prof. Mário Ypiranga Monteiro no Colégio Estadual do Amazonas, onde ele dava aulas de geografia. Poucos anos depois fui seu aluno de Literatura no Curso de Letras da Universidade do Amazonas, ocasião em que também fui aluno de outro professor que pertenceu à Academia Amazonense de Letras, o prof. João Chrysóstomo de Oliveira. A contribuição de ambos certamente ainda não foi devidamente avaliada, mas já podemos registrar no âmbito da pós-graduação da Universidade Federal do Amazonas, dissertações de mestrado que tem como objeto de investigação a obra de Mario Ypiranga Monteiro e podemos prever que a contribuição de João Chrysóstomo para os estudos filológicos da língua portuguesa não tardará em ser inventariada e interpretada em pesquisa de cunho acadêmico.
A contribuição de Mário Ypiranga Monteiro para o conhecimento da Amazônia se manifesta em diferentes campos de investigação. Há contribuições originais para a história social e cultural, em estudos sobre tipos urbanos de Manaus, a história das ruas, a gastronomia, da mesma forma que sua ampla contribuição para a história da literatura regional, para os estudos etnográficos e da cultura popular.
Djalma Batista – sobre quem cultivamos uma admiração particular, possui um lugar especial na história cultural da região amazônica e sua vida devotada aos estudos da Amazônia inclui a Academia como uma das expressões da vida intelectual local que mereceu uma dedicação especial de sua parte. Ele reconhecia na Academia um papel fundamental para uma nova organização da cultura no Amazonas, sobretudo porque via na produção intelectual de escritores, historiadores e artistas a ela vinculados, a manifestação das mudanças que estariam ocorrendo em termos de desenvolvimento, ou mais precisamente, segundo seus próprios termos, da superação do subdesenvolvimento que era fundamentalmente um problema cultural.
A Amazônia só se desenvolveria – essa é tese principal de sua obra maior, O Complexo da Amazônia - através de mudanças estruturais no âmbito da educação e da cultura, na medida em que só poderemos conseguir mudar aquilo que conhecemos em profundidade. Esse conhecimento profundo da região não acontece apenas através das ciências aplicadas, mas também através da literatura, das artes visuais do jornalismo crítico e comprometido com as questões fundamentais da região, do país e do tempo presente. Jornalismo que ele praticou com especial talento e sensibilidade, abordando temas muitas vezes surpreendentes. Em um desses artigos, ao concluir a leitura do manuscrito de Galvez, o Imperador do Acre, que lhe fora entregue por Márcio Souza, prenuncia o surgimento de um escritor que está propondo um novo marco para a literatura brasileira a partir da Amazônia.
Djalma Batista vivenciou o ideal de homem de ciência e homem de ação. Como médico foi exemplo do compromisso do cientista com as questões sociais que a perspectiva da saúde pública põe em destaque, em especial em uma região como a nossa, marcada pelas desigualdades profundas entre as grandes cidades e as pequenas aglomerações humanas do interior da região.
Sua obra O Complexo da Amazônia inaugura em alto estilo a perspectiva de se perceber a Amazônia como um tema a ser tratado não apenas por disciplinas autônomas e pesquisadores ciosos de suas especializações. Ela exemplifica que é através do reconhecimento de sua complexidade que devemos buscar desvendá-la, decifrar seus enigmas passados e presentes.
Sobre essa obra tive a satisfação de ser um dos responsáveis por sua reedição, juntamente com Tenório Telles da Valer e o Jorge Rebelo, que na ocasião era o coordenador editorial do INPA. Devo mencionar ainda que o acadêmico que nesse momento me recepciona em nome dos demais membros da Academia, o médico de trajetória exemplar que é Marcus Barros, também participou dessa reedição do Complexo da Amazônia, escrevendo seu posfácio, na condição de alguém que aprendeu o sentido comprometido da medicina ao trabalhar durante vários anos como assistente do Dr. Djalma.
Temos sempre, quando acontece a oportunidade, o compromisso de lembrarmos a importância do prof. Samuel Benchimol para o desenvolvimento do pensamento brasileiro a partir das reflexões de intelectuais da Amazônia. Ele nos legou com as suas aulas e suas obras o exemplo do pensador profundamente comprometido com o destino de sua região e de seu povo. E nesse sentido sua obra apenas começa a ser devidamente revelada através de estudos mais pacientes, sobretudo graças ao ambiente de pesquisa que se desenvolve na experiência da pós-graduação. E é do professor Samuel Benchimol a afirmativa de que, com o novo movimento de pesquisas em curso na Amazônia, que estamos deixando de nos ver a nós mesmos através do olhar dos autores estrangeiros para nos vermos com os nossos próprios olhos
Como está previsto nos discursos de posse da academia, aquele que está sendo investido da condição de novo membro, deve traçar um breve retrato daqueles que o antecederam buscando acentuar os traços mais singulares de suas personalidades e as suas mais relevantes contribuições para a sociedade de seu tempo. As três personalidades a quem devo me reportar por estarem na condição dos ocupantes anteriores da cadeira 32 da Academia Amazonense de Letras possuem perfis bem diferenciados que devem aparecer em seus breves retratos que tenho neste momento a satisfação de esboçar em seus principais traços.
Como já existem registros de suas biografias em publicações como o Dicionário Biográfico dos Acadêmicos: Imortais do Amazonas, de autoria de Almir Diniz de Carvalho, obra fundamental para o estudo da história e da formação espiritual da Academia, buscarei imprimir às minhas referências sobre as três personalidades, aqueles elementos que resultam da leitura das informações facilmente disponíveis e que distinguem o contexto em que atuaram, mas sobretudo, no sentido em que devem buscar acentuar a marca distintiva de suas respectivas idéias e ações. Cada um a seu modo, é possível afirmar, pode ser lembrado como uma personalidade representativa de seu tempo. A começar por Bernardo Ramos, escolhido como patrono da cadeira no. 32. Sobre ele recorremos às informações reunidas por Agnello Bittencourt em seu Dicionário Amazonense de Biografias : vultos do passado. Edição da Academia Amazonense de Letras e Editora Conquista do Rio de Janeiro, 1973.
Bernardo Ramos tornou-se conhecido como o colecionador cujo acervo de sua propriedade deu origem ao Museu de Numismática do Amazonas, coleção essa que possui até o presente, entre as existentes no país, o reconhecimento de se constituir em uma das mais amplas coleções de moedas de várias épocas e procedências. Entretanto, não se limitou apenas a colecionar moedas e o que restou de seu acervo, além da coleção de moedas, foi destinado a constituir o patrimônio do IGHA, do qual foi também um dos fundadores e seu primeiro presidente.
A atribulada história dessa coleção reflete, de diversos modos, a ausência de uma percepção clara de seu valor e importância como patrimônio cultural brasileiro por parte de nossos governantes e autoridades do campo da cultura, pois ao longo de sua existência, como indicam vários registros historiográficos, ficou encaixotada ou sob a guarda do Tesouro estadual, e só em data relativamente recente foi restabelecida como uma coleção organizada segundo os procedimentos técnicos indicados e exposta ao público. Poderíamos reconhecer portanto, em se reconhecimento tardio, um caso típico de falta de uma consciência museológica, que poderia ajudar-nos a compreender em termos mais abrangentes a ausência de continuidade de uma política de museus como uma das marcas de nossa história cultural.
Nasceu em Manaus em 1858, no seio de uma família pobre e ficou órfão de pai muito cedo. Começou a trabalhar no Correio local. Aos 21 anos passou a trabalhar como amanuense na Comissão de Limites Brasil-Venezuela e dessa época há lembranças de histórias com lances romanescos, mencionadas brevemente por Agnello Bittencourt.
Um fato certamente digno de registro é que Bernardo Ramos viveu no Amazonas a transição do regime monárquico para a República, tendo sido eleito vereador de Manaus, recusando nessa condição de representante político da cidade, a receber qualquer remuneração.
Vai se dedicar ao comércio numa época em que a cidade vivia uma situação excepcional de riqueza. Tornou-se um comerciante de moda, um setor que prosperou na proporção das necessidades dos consumidores de acompanharem o estilo de vida e de consumo das metrópoles européias,mas em especial de Paris.
A riqueza adquirida com o sucesso e a expansão dos negócios lhe deu a chance de empreender viagens à Europa e Oriente Médio. E as informações disponíveis indicam que percorreu a Palestina e o Egito, lugares em que permaneceu tempo suficiente para adquirir algum conhecimento de línguas antigas como o hebreu, o fenício e o sânscrito. A nosso ver a descrição dessas viagens possui elementos fantasiosos, mas, de qualquer modo, parece certo que sua coleção de moedas tem a ver com essas viagens e o próprio perfil intelectual que se beneficiou e se acentuou a partir de suas atividades proporcionadas pela situação financeira conquistada.
Bernardo Ramos nos lembra um daqueles personagens sugeridos pelos escritos de Baudelaire e Walter Benjamin sobre o homem da metrópole e o colecionador, típicos da modernidade particularmente presentes na passagem do século XIX para o século XX. É sempre bom lembrar que Manaus era parte, mesmo que se encontrasse distante e no coração da floresta equatorial, desse universo retratado em textos como Paris Capital do século XIX.
Sobre o fato de ser Bernardo Ramos um comerciante de moda e, portanto, ser alguém diretamente ligado a um dos signos dessa época de mudanças no comportamento da sociedade, tal fato a nosso ver, pode ser tomado como uma evidência de que ele personifica como comerciante, juntamente com outros personagens como o planejador urbano, o engenheiro, o jornalista e propagandista, os principais responsáveis pelo sentido que tomavam as principais transformações da época, que tem sua clara expressão na fisionomia de Manaus de seu tempo.
Em função de sua atividade de comerciante de moda tornou-se um viajante, percorrendo o caminho inverso das mercadorias que importava da Europa. Era atraído, portanto, pelas cidades que alimentavam as principais rotas de mercadorias destinadas aos locais mais distantes de seus centros de produção e irradiação.
A moda retrata melhor do que os outros elementos as tendências de uma época e de uma sociedade, concordando com a convicção do filósofo Walter Benjamin, para quem “o aspecto mais interessante da moda é a sua extraordinária capacidade de antecipação” . Ou seja, a idéia de que a moda já encerra em sua manifestação, traços do que acontecerá no futuro.
Bernardo Ramos, ao se tornar um bem sucedido comerciante de moda se transforma também em um dos agentes da modernidade de Manaus, perfil que se completaria com sua condição de viajante e colecionador. E sobre o colecionador nada mais apropriado do que as passagens e fragmentos colhidos por Walter Benjamin para compreendermos o significado tanto do impulso do colecionador como dos objetos capturados pelo sentido de descobrir em cada um deles sua história e a de seus possuidores anteriores. Como assinala Walter Benjamin,
“ o colecionador retira o objeto de suas relações funcionais e sobre ele lança um olhar incomparável, um olhar que vê mais e enxerga diferentes coisas do que o olhar do proprietário profano e o qual deveria ser melhor comparado ao olhar de um fisiognomista”. Para o colecionador, anota ainda, este olhar se fixa a cada instante de uma maneira mais aguda, na medida em que (p.241) para o colecionador, o mundo está presente em cada um de seus objetos e ademais, de modo organizado. E citando textualmente Walter Benjamin:
“Organizado, porém, segundo um arranjo surpreendente, incompreensível para uma mente profana. Este arranjo está para o ordenamento e a esquematização comum das coisas mais ou menos como a ordem num dicionário está para uma ordem natural. Basta que nos lembremos quão importante é para cada colecionador não só o seu objeto, mas também todo o passado deste, tanto aquele que faz parte de sua gênese e qualificação objetiva, quanto os detalhes de sua história aparentemente exterior: proprietários anteriores, preço de aquisição, valor etc. Tudo isso, os dados “objetivos”, assim como os outros, forma para o autêntico colecionador em relação a cada uma de suas possessões uma completa enciclopédia mágica, uma ordem do mundo, cujo esboço é o destino de seu objeto” (p.241).
E concluímos essa referência a Walter Benjamin retirando dos seus apontamentos sobre o colecionador a observação segundo a qual seu motivo mais recôndito seja a luta que ele empreende contra a dispersão em que se encontram as coisas no mundo. Ao contrário do alegorista que desistiu de elucidar as coisas através de seus nexos e que as desliga de seu contexto e desde o princípio confia na sua meditação para elucidar o seu significado, o colecionador reúne as coisas que são afins e consegue deste modo, informar a respeito das coisas através de suas afinidades ou de sua sucessão no tempo. Mas, o mais importante que todas as diferenças que possam existir entre eles, é que em que cada colecionador se esconde um alegorista e em cada alegorista, um colecionador” (p.245).
O Cônego Walter Nogueira é o personagem que passamos retratar em seus traços essenciais. O que caracteriza os acadêmicos que nos coube destacar é que possuem entre si elementos que os aproximam, e o principal deles é que, cada um em seu contexto de época, são intelectuais fundadores e organizadores de instituições que se tornaram marcos e referências para o desenvolvimento da Amazônia. Se destacamos em Bernardo Ramos o fundador do Museu Numismático e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, o Cônego Walter Nogueira é lembrado como o fundador e organizador do curso de filosofia da então Universidade do Amazonas.
. O escritor Almir Diniz que editou o Dicionário Biográfico: Acadêmicos Imortais do Amazonas, nos oferece um verbete contendo as informações essenciais para compormos um retrato que certamente se apresenta como elemento de leitura norteadora para futuros estudos sobre o Cônego Walter Nogueira. Dessas informações nos valemos para aqui traçar seu breve retrato intelectual.
Nascido no município de Coari em 1926, iniciou seus primeiros estudos em sua cidade natal. O secundário cursou-o no Colégio Dom Bosco em Manaus e o Salesiano em Belém, onde também ingressou no Seminário Nossa Senhora, aí cursando Filosofia. Em Belo Horizonte – Minas Gerais cursou Teologia.Foi ordenado sacerdote secular em 1949 por Alberto Gaudêncio Ramos, na Catedral de Manaus, depois do que, cursou Direito Canônico na Universidade Gregoriana na Itália e concluiu também o curso de Direito na Universidade do Amazonas. Cursou também Ciências Sociais e Econômicas no Ateneu Romano. Realizou estudos pós-graduados na Universidade Internacional de Estudos sociais de Roma, com estágio em Colônia, na Alemanha.
Dedicou-se às atividades do magistério tendo sido professor de latim, grego, francês e filosofia no Colégio Estadual do Amazonas e no ensino superior foi professor de História Econômica e Princípios de Sociologia Aplicada na Faculdade de Ciências Econômicas da então Universidade do Amazonas, atividades que conciliou com o exercício de várias funções públicas, dentre elas a de Secretário de Educação.
Provavelmente, entretanto, sua maior realização como intelectual e homem de ação foi a de idealizar e colocar em funcionamento o curso de filosofia da Universidade do Amazonas, contribuindo assim para consolidar um dos fundamentos essenciais dos estudos humanísticos em nível superior em seu Estado, experiência que ele mesmo documentou com rara riqueza de detalhes em livro intitulado Sindérese sobre a Faculdade de Filosofia do Amazonas.
Há alguns aspectos do perfil de Ruy Alberto dos Santos Lins que se aproximam em alguns traços daquele que acabamos de esboçar da trajetória do Cônego Walter Nogueira. E certamente o mais evidente deles é o de que contribuíram, cada um em seu campo de atuação, para consolidar o projeto da Universidade do Amazonas, ao mesmo tempo em que se afirmavam como homens de ação desempenhando funções públicas ligadas à administração de instituições, na maior parte dos casos, identificadas com o propósito de promover o desenvolvimento do Amazonas. Portanto, mais do que mencionar o cargos e funções que ocupou, como já afirmamos há pouco, a nosso ver, é mais importante assinalar que ele foi um dos representantes típicos de toda uma geração envolvida com um processo de mudanças, responsável por um novo modo de perceber o papel das organizações, tanto do Estado como da esfera empresarial, na implementação do que se transformou no atual modelo de desenvolvimento regional.
No caso de Ruy Lins, ele personifica mais intensamente a crença de que as instituições tem um papel especialmente forte a cumprir no processo de desenvolvimento da região. Em outras palavras, sua experiência e sua própria formação estão identificadas com a Amazônia vista na perspectiva do planejamento e das políticas públicas de governo caracterizadas por grandes investimentos federais na região, mas também da criação de uma nova mentalidade empresarial identificada com a necessidade de formação de novos quadros para dirigir as instituições regionais e locais a partir de um novo fundamento que envolve a globalização econômica, a mundialização da cultura, uma nova estratégia geopolítica e sobretudo um novo significado da Amazônia como parte do país e do mundo.
A Universidade do Amazonas era pensada como uma dessas estruturas modernizadoras que deveria assumir a condição de formadora de uma nova geração de administradores e gestores em sentido bastante amplo. Era necessário capacitá-la prioritariamente para transformá-la nesse instrumento formador de uma nova elite dirigente. E foi esse o perfil que predominou na Universidade do Amazonas, ou seja aquele projeto de Universidade que Ruy Lins, sob muitos aspectos personifica, até que ela fosse reorientada pelo projeto de desenvolvimento da pesquisa e da pós-graduação, projeto esse na verdade, pelo menos naquele momento, mais induzido pela política federal de ensino superior vinculado ao fomento de ciência e tecnologia, do que concebida por iniciativa da própria universidade.
Traçado esse breve quadro em que vão ocorrer mudanças significativas na idéia de desenvolvimento regional, torna-se mais fácil e mais clara a compreensão do perfil intelectual de Ruy Lins e de toda uma geração de profissionais que personificaram e ainda personificam essa mudança na orientação do desenvolvimento regional, no qual o Amazonas tem um papel de condutor e de representante típico no contexto do conjunto dos estados da região norte. Ruy Lins vivenciou praticamente todos os momentos mais marcantes desses processos.
Tenho lembrança de convite que recebi da CODEAMA para participar de um levantamento sócio-econômico dos municípios do Amazonas de cujo conjunto seria possível a realização de um diagnóstico das necessidades de cada uma das áreas pesquisadas e do Amazonas em sentido abrangente. Ruy Lins foi um dos responsáveis por esse trabalho de pesquisa, que deveria na verdade ser um novo ponto de partida para o mapeamento dos problemas responsáveis pelo subdesenvolvimento do Estado.
Concluídas essas breves referências aos nossos ilustres patronos e antecessores resta-nos um breve e final pronunciamento sobre o significado que para nós, possui a Academia Amazonense de Letras.
Estou convicto de que a Academia Amazonense de Letras tem sido uma instituição aberta e que adota processos claros para o ingresso de seus membros. E que tem sido também uma instituição cultural que tem acompanhado e vivido as transformações que se processam na sociedade, as vezes de modo bastante rápido. O seu diálogo com outras instituições tem sido permanente, o que tem servido para o seu fortalecimento e sobretudo ,a sua presença no cenário cultural, o que fica evidenciado pela importância de sua biblioteca, de suas edições de livros, revistas e informes, da atuação de seus membros como conferencistas e participantes dos eventos culturais da cidade e da região. Dessa forma sua contribuição tem sido fundamental para o conhecimento da Amazônia em termos de sua história intelectual, o que tem sido feito através do conjunto da produção de seus membros no passado e no presente, com alguns de seus autores especialmente, transbordam as próprias fronteiras de seu marco institucional, dentre os quais traçamos há pouco rápidos retratos.
Sob certos aspectos a sua história já está sendo escrita através de estudos e pesquisas que tem como objeto os autores que figuram em estudos e pesquisas desenvolvidos em programas de pós-graduação em âmbito regional e nacional. Ou seja, já participamos como personagens de nosso tempo, de um momento em que a Academia se transformou em fonte de conhecimento da cultura regional e brasileira.
Eu pertenço já algumas décadas, de uma outra academia, a universidade. Essa academia, é necessário lembrar, sempre esteve associada à Academia Amazonense de Letras de várias maneiras, como indicamos há pouco, através de seus representantes e de pesquisadores de diferentes campos de investigação. É preciso insistir no fato de que essas ligações estão hoje mais presentes do que antes, pois com a expansão mesmo que tardia da pós-graduação, várias áreas de conhecimento como a literatura, a história, a geografia, a filosofia, a antropologia, a medicina vem alargando seus campos de interesse, o que invariavelmente implica na necessidade de inclusão de autores pertencentes ontem e hoje, à Academia Amazonense de Letras.
Os estudos sobre a formação do pensamento brasileiro na Amazônia, sobre a história das idéias, sobre a vida espiritual e sobre sua própria história social e cultural são atualmente responsáveis, dentre tantos outros temas e questões, por essa aproximação. Aqui nesta noite estão presentes vários autores que vem promovendo esse novo momento do conhecimento, autores das duas academias. E aqueles que mesmo ausentes estão fortemente presentes em nossa lembrança.
A todos os que tive a chance de mencionar aqui e aos que lembrei de passagem, desejo dedicar essas palavras e que, de modo especial ,elas sejam dedicadas a Narciso Lobo e Luiz Bacelar, que já se foram, mas deixaram conosco a iluminada marca de suas passagens.
Assim comemoro esse meu ingresso na Academia. Obrigado a todos.