Discurso de Carlos Castello Branco na Academia Piauiense de Letras, em 26 de setembro de 1984

Sr. Presidente da Academia Piauiense de Letras Srs. Acadêmicos,

Honra-me certamente, e me desvanece, o voto com o qual acolhestes minha pretensão de assumir a cadeira nº 15, cujo patrono é Antonio Borges Leal Castello Branco e cujo primeiro titular foi Nogueira Tapety, que não chegou a ocupá-la, morto prematuramente, e sucedido por Cristino Castello Branco. Mas, suceder a meu pai nesta Academia não me parece acontecimento alheio ao curso natural da minha vida. Explico-me.

É que entre acadêmicos me criei nesta cidade de Teresina, onde nasci. A casa de meu pai, as de meus tios e primos eram uma extensão desta Academia, cujos fundadores conheci quase todos e com a maioria deles convivi na intimidade da família, nas aulas do Liceu Piauiense e nas primeiras sortidas boêmias nos bares da Praça Rio Branco.

Esta casa chama-se Casa de Lucídio Freitas, em homenagem a seu principal fundador. Lucídio, primo de meu pai, fundou-a com o estímulo dos meus tios Clodoaldo Freitas, seu pai, de Fenelon Ferreira Castello Branco e dos grandes homens da terra naquele final do ano de 1917. Releio a Ata da primeira reunião da Academia, a 30 de dezembro de 17, no Conselho Municipal, na Praça Marechal Deodoro. Com exceção de um, conheci pessoalmente todos os signatários. De alguns a imagem esfuma-se na memória, como Lucídio e Clodoaldo. Os outros se desenham nítidos por entre as lembranças do menino e do adolescente. Higino Cunha, de quem guardo as aulas espontâneas sobre a hierarquia dos vinhos e licores. João Pinheiro, meu professor de português e introdutor em Luis de Camões. Edison Cunha, que morava na Parnaíba mas costumava aparecer em Teresina. O poeta Antonio Chaves, gerindo sua livraria, seus sonhos e suas suaves filhas, minhas colegas de ginásio. Benedito Aurélio de Freitas, o Baurélio Mangabeira, que fazia o jornal "A Jornada", "ex-ambulante com edições definitivas em Teresina". Celso Pinheiro, a ingressar sem bilhetes nos cinemas sob a senha bradada - Imprensa! De outros fundadores e acadêmicos fui e sou amigo e admirador.

Minhas primeiras leituras literárias foram feitas na Revista da Academia Piauiense de Letras, cujos onze primeiros números guardo como uma relíquia em dois tomos encadernados. Poemas, contos, crônicas e discursos ali publicados me desvendaram a existência e o espírito da literatura. A essa leitura somavam-se os recitativos domésticos de meu pai, cuja extraordinária memória repetia de cor versos de tantos poetas, os da terra, os da sua geração, os de seus amigos e companheiros como Da Costa e Silva, e os dos grandes da poesia brasileira e portuguesa. Ele sabia de cor quase tudo dos primos Alcides e Lucídio Freitas, de Da Costa e Silva, de Celso Pinheiro, de Bilac, de Raimundo Correia, de Augusto dos Anjos, de Antonio Nobre e trechos de Camões, de Bocage, de Guerra Junqueira. Ao lado do incentivo recebido nessas lições domésticas, a convivência com as letras se ampliava e aprofundava na freqüência à biblioteca paterna, tudo me induzindo a crer na inevitabilidade da minha vocação e do meu ingresso nesta Academia. Uma pretensão que vem, portanto, da infância.

A Academia confundia-se de certo modo com minha família e com meu pai. Em discurso publicado na Revista, lembrava meu pai os "três meninos letrados que juntos passaram a infância e os dias fogosos da puberdade". Esses três meninos eram ele próprio, Alcides e Lucídio Freitas, inseparáveis. A eles juntavam-se outros dois primos, Oscar e Mário Couto, aos quais a vida abriria outros caminhos. Lembro-me da evocação de um carnaval com que meu pai nos divertia. Os cinco primos fantasiaram-se e partiram da rua da Glória para a Praça Rio Branco, centro vivo da cidade. Ao chegarem em frente à Botica do Povo, de dona Lili, foram des-mascarados: "lá vêm os cinco, o Cristino, o Alcides, o Lucídio; o Oscar e o Mário". Meu pai guardou a vida toda admiração e carinho por esses primos e pelos tios Clodoaldo e Fenelon, guias morais e espirituais e personalidades ricas, exuberantes cada um a seu modo, tão semelhantes e diferentes eram ao mesmo tempo.

A identificação da Academia com minha família salta aos olhos de qualquer um que conheça a sua história e a sua composição, mesmo a atual. Seis Castello Branco figuram entre os patronos: Hermínio, o poeta da "Lira Sertaneja", o padre Joaquim Sampaio, Teodoro, que lutou na guerra do Paraguai, na qual morreram onze membros da família, Antonio Borges Leal, Miguel de Souza Borges Leal, meu tetravô e o primeiro piauiense a formar-se em Direito na Faculdade de Coimbra, e Heitor. Entre os titulares serei a partir de hoje o oitavo. Os outros chamam-se Fenalon, Cristino, Arimatéia Tito, pai e filho, que amputaram o sobre- nome por desavenças familiares dos seus avós, Maria Nerina, Emilia e Emilia Leite Castello Branco, filha e mãe.

A estes não posso deixar de associar, entre patronos e titulares, o meu tio Clodoaldo, meus primos Alcides e Lucídio, Antonio Alves de Noronha e Deolindo Couto, ambos primos de meu pai, oriundo por sua mãe da família Noronha Couto, que viera de Caxias entre os primeiros povoadores da nova capital do Piauí. Esses Noronha Couto deixaram no Estado seu toque de inteligência, nas pessoas de meu pai, do seu tio Henrique Couto, desembargador e secretário de Estado no Maranhão, pai de Deolindo Couto, da Academia Brasileira de Letras, da Academia Nacional de Medicina e da Aca-demia Piauiense de Letras. Antônio Alves de Noronha, professor da Faculdade Nacional de Engenharia, mestre do cálculo, era filho do comerciante Quincas Noronha, que morava em casa assobrada na rua Grande e era primo Irmão da minha avó. Como vêem, é natural que me sinta nesta Academia, malgrado a longa espera e a pretensão implícita na minha destinação acadêmica, como em minha casa.

Não se pode falar, contudo, na Academia Piauiense de Letras sem mencionar as figuras ilustres, de projeção nacional, nascidas aqui ou não, mas vinculadas à nossa terra pela vivência, o amor e o trabalho. Dentre eles há pelo menos um grande poeta de renome nacional, como Da Costa e Silva. Há dois grandes jornalistas e poetas - Félix Pacheco e Odylo Costa Filho, o primeiro diretor do "Jornal do Comércio", Ministro de Estado e senador da República, nascido na vila do Poty Velho; o segundo, maranhense oriundo de família piauiense. Ambos pertenceram também à Academia Brasileira de Letras.

Tivemos ainda parlamentares e políticos que se distinguiram lá fora, como os senadores Matias Olímpio e Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves, Cláudio Pacheco, mestre de Direito, autor de uma obra monumental de comentários à Constituição de 1946 e por muito tempo diretor do Banco do Brasil. Clidenor Freitas teve um papel de liderança na Câmara dos Deputados e o Ministro João Paulo Reis Veloso, por quase dez anos Ministro do Planejamento, é notável servidor do nosso Estado.

Finalmente devo mencionar a grande honra para nossa Academia de ter nos seus quadros o Cardeal Avelar Brandão Vilela, arcebispo da Bahia e primaz do Brasil, uma das presenças mais distintas na alta hierarquia da Igreja Católica no Brasil.

Tendo falado da Academia e da sua história, permitam-me que fale também da minha família, pois, fazendo-o, ajudarei a que se entenda a história do Piauí e a vocação intelectual dos velhos troncos familiares que já alcancei em processo de decadência econômica e social.

Os Castello Branco instalaram-se no Piauí no primeiro ano do século XVIII, 1701. Francisco da Cunha Castello Branco e Silva, segundo irmão do sexto conde de Pombeiros, viera na última década do século XVII para o Brasil à busca do destino que as leis e a tradição não reservavam senão aos morgados. Passa-dos alguns anos no Recife, recebeu uma sesmaria em Santo Antonio do Seroby de Campo Maior, no Piauí. Com a família e seus haveres, embarcou no Recife com destino a Tutóia, mas a embarcação naufragou com terra à vista. Ele perdeu no desastre a mulher e todos os bens, salvando-se com três filhas menores - Ana, Maria e Clara - das quais descendemos, na grande maioria, os Castello Branco que hoje, do Acre ao Rio Grande do Sul, se espalham pelo país. No Piauí eles se concentraram em Campo Maior, Livramento, Barras, União, Miguel Alves e Teresina. Nessa área ficavam suas fazendas de gado. Ana e Maria casaram-se, em núpcias sucessivas, com João Gomes do Rego Barros, e Clara, com Manuel Carvalho de Almeida, fidalgo português da vila de Linhares. A família prosperou e com ela o nome. Já em 1765 os netos assinavam-me Dom Francisco da Cunha e Silva Castello Branco, Dom Belchior Castello Branco e Dom Manuel de Almeida, capitães de cavalos no Regimento sediado no Piauí e se apresentavam em juízo para obter carta de justificação "de fidalguia e nobreza" por ar tratarem "com cavalos na estrebaria, pagens e escravos " Distinguiram-se também, segundo alegavam, na luta contra os gentios desde as cabeceiras do Piauí à barra do Parnaíba e daí, pelo Maranhão, na luta contra a nação do Príncipe Mandú-Ladino.

A prosperidade da família manteve-se pelo menos até o melado do século XIX, quando um dos meus tetravós - Livio Lopes Castello Branco - armou pequeno exército e se envolveu na Balaiada, perdendo homens, cavalos e bens. Uma neta do caudilho, irmã de minha avó, contava-me quando menino que, segundo a tradição familiar, Lívio fazia passear, nos fins de tarde, seus filhinhos com sapatos bordados a fio de ouro nos braços de mucamas vestidas de cetim amarelo. Possivelmente lenda, mas que assinalava a saudade pelos perdidos dias de fausto. O fato é que a família empobreceu-se, pelo menos naquele ramo descendente de Lívio e Miguel de Souza Borges concentrados na família de Manuel Thomaz Ferreira. Restavam manchas de riquezas e fidalguia que renderam em 1870 a Augusto da Cunha Castello Branco o título de Barão de Campo Maior e a Mariano Gil o título de Barão de Castello Branco, dado no ocaso do Império. Esse último é pai de Heitor e Oscar, que mantiveram longamente o "status" financeiro da família e lideram ramo numeroso e florescente dos Castello, Branco que ainda habitam Teresina.

Mas já na segunda metade do Século XIX, segundo narra José Pires Lima Rabelo, em conferência publica-de na Revista, moças Castello Branco choravam em versos a pobreza e a mágoa pelos casamentos mestiços pouco afortunados. Os lamentos terminavam com seguintes versos:

"Quem me mandou sendo fina
que me trocasse por cobre."

Ao que a malícia popular respondia numa quadra famosa

"Prata, não sejas soberba,
Não blazones de ser nobre,
Desde o começo do mundo
Troca-se prata por cobre."

É a sucessão no tempo dos clãs econômicos, sociais e políticos. A família Castello Branco, oriunda daquelas três meninas, desdobrou-se em diversas famílias e aliou-se a outras que compuseram as primeiras camadas de habitantes prósperos do Piauí. Dentre outros vinculam-se ou descendem dos Castello Branco os Ferraz, os Pereira da Silva, os Burlamaqui, os Fortes, os Santana, os Almendra Freitas, os Cruz, a Borges Leal, os Sampaio, os Rego numa mistura que dificulta a identificação das fontes que conduzem à fonte comum. Há um livro, escrito pelo gramático Mário (Castello Branco) Barreto e outros, que é o único guia conhecido. Por esse roteiro, situo-me na décima geração, dos descendentes do primeiro Dom Francisco. O avó do poeta João Cabral de Melo Neto está lá pela 7ª. ou 8ª. geração.

Quando nasci minha família era uma família de classe média típica das pequenas cidades brasileiras da primeiras décadas deste século. Pequenos fazendeiros bacharéis, militares, professores, juízes, guarda-livros funcionários públicos, esse exército quase anônimo que se situa no escalão intermediário menos afortunado da sociedade brasileira. Meu avô, pequeno comerciante a princípio, foi secretário da Prefeitura de Teresina e só pôde formar um dos seus cinco filhos, meu pai Cristino, que estudou no Recife e lá recebeu os influxos já difusos da influência de Tobias Barreto e Sílvio Romero.

Advogado e professor, saía a cavalo para os juris no interior e, escapando a vinditas políticas, mudou-se por alguns tempos para o Maranhão, onde foi juiz em São Bernardo e no Brejo. Voltou a Teresina justo no tempo de eu aqui nascer e teve ventos mais favoráveis. Foi diretor da Instrução Pública dos governos de Matias Olímpio e Joca Pires. Esse cargo propiciava-lhe nos dias do seu aniversário a visita matutina dos alunos dos gru-pos escolares que desfilavam na porta de nossa casa ao som de dobrados tocados pela banda da Polícia Militar. A revolução de 1930 o devolveu à advocacia plena, mas já em 1931 foi nomeado desembargador, com honra mas com prejuízo financeiro. Um amigo dizia-lhe que do cargo só se aproveitava "o ronco". Mas ele o exerceu com paixão e competência até quando se aposentou, em 1940, compelido a ir para o Rio em busca de tratamento para pessoa da família.

A Teresina que nós deixamos - eu já me antecipara deslocando-me para Belo Horizonte, onde fui estudar Direito - era uma pequena cidade, com ruas sem calçamento ou com calçamento apenas iniciado, sem esgotos, com iluminação fraca, água, corrente das 7 às 11 da manhã, sem instalações internas que permitissem a construção de banheiros. Eram raros os chuveiros na cidade. Lembro-me do que havia, no fundo do quintal, na casa de "seu" Aarão Parentes e o de um pequeno hotel, que o incluía como novidade no anúncio que fazia publicar nos jornais da terra. Os limites da cidade para nós das boas famílias, como se dizia então, iam da rua da Estrela à rua São José, passando pelas ruas da Glória, do Amparo, dos Negros, do Fio, rua Grande, rua Bela e Paissandu - belos nomes que a Academia poderia fixar na memória urbana, fazendo-os inscrever em placas sem sem suprimir homenagem atual a piauienses ilustres. Bastaria inscrever aqueles nomes sob as placas atuais (antiga rua do Amparo, por exemplo) para que renascesse um sopro de poesia vindo das funduras do passado. Havia a Praça Rio Branco, freqüentada no começo da noite pelo governador e seus áulicos e onde se realizava duas vezes por semana o "footing" familiar. Dois cinemas e um Teatro que raramente tinha função divertiam a cidade, além dos circos e mafuás dos arrabaldes. Dos edifícios distinguia-se pela elegância a Igreja de São Benedito.
A cidade tinha seus personagens, desde o austero e cáustico Eurípedes Aguiar, mais tarde chamado o Euripão, até o Joel Oliveira, que puxava os "assaltos" de véspera de carnaval, no qual luzia, com seu leque, um cidadão que assinava crônicas com o pseudônimo de Carlos Borromeu e tinha o apelido de João Senhora. Havia o Dr. Higino Cunha, o desembargador Simplício, o João Carvalho, da rica Casa Carvalho, o desembargador Heli que tomava cerveja no Bar Carvalho ou no Bar Avenida. A minha tia Corina, que morreu aos 94 anos depois de ter enterrado o marido e oito filhos, estes entre os 20 e os 30 anos. Havia o intelectual dis-tinto, Martins Napoleão e o professor convicto, Clemente H. P. Fortes. Para o gosto popular, para as brincadeiras de estudante, havia a Maria Sapatão, desfrutável mas trabalhadora, que todas as manhãs fornecia cuscuz de milho e arroz às familias da sua vizinhança.

A cidade era alegre, o povo atencioso, simples e divertido, poucas brigas, escassa crônica policial e, entre as pessoas de situação havia veneração pela inteligência e a valorização dos homens que sabiam coisas, como médicos, engenheiros e poetas. Meu pai guardara da convivência com os tios e os primos letrados o amor das le-tras, mas o casamento aos 21 anos com a prima Dulcila, ainda hoje, para alegria minha, viva, e a prole que veio logo, ao todo nove filhos, o prendeu à intensidade da banca de advogado e das aulas no Liceu e na Escola Normal. Em espírito, era um poeta, um sonhador. A infância ficou-lhe presente na alma como o símbolo de felicidade que o recompunha interiormente nos momentos difíceis. Era seu terreno indevassado que lhe permitiu segurar-se e manter-se de pé ainda quando sentiu a correr-lhe a espinha "o fio da desgraça", como escreveu num de seus livros. Nos seus sonetos episódicos ele parte da infância como do paraíso para chegar ao purgatório da idade madura:

"Se eu pudesse voltar a ser menino
Com a mesma alma feliz dos outros dias..."

Em outro relembra, com emoção:

"Revejo-me montado no carneiro
Que era assim a delícia dos meus dias..."

A infância, a história dos pais, dos avós, dos tios, dos primos mortos e vivos foram, aliás, o tema constante do seu diálogo em casa, casa ampla onde abrigava a mulher, os filhos, duas avós tortas, sempre dois ou três primos além da criadagem que a época permitia. O ramo da nossa família descendente de Manuel Thomaz Ferreira era gregário e as pessoas se freqüentavam muito. Viviam em Teresina meu avô Joaquim e seus filhos, salvo dois. A mais nova, minha tia Altina, casada com Fenelon Barros, aqui permanece, conto aqui continua a mais velha das minhas irmãs, Florisa, casada com o dr. Waldir Gonçalves; a tia Vitalina e suas filhas (as Nogueira), a tia Dona e sua descendência (os Souza); o tio Moisés e filhos e o tio Fenelon e filhos; Bárbara, que me serviu de avó. A nós eram intimamente chegados por casamento e outros laços os Santana Castello Branco, dos quais descende pelo lado paterno minha mãe, e os Fortes. Os Santana são de natureza humilde e os Fortes ostentavam algum "panache", com tios ainda ricos e parentes mais ilustrados. A esse ramo vincula-se um Castello Branco que não usa o nome, o mais poderoso construtor de imóveis do Brasil, João Fortes.

O clã a que era ligado vivia originalmente nos primeiros quarteirões da rua da Glória. Num deles moravam meu avô, meu tio Clodoaldo, Alice Couto, prima do meu pai, Sinhazinha Pedreira e o major Domingos Monteiro, Prefeito que começou a calçar as ruas da cidade. Nessa rua eu nasci mas minha casa definitiva, a do meu pai, ficava na rua do Amparo. Desse mundo meu pai jamais se desligou como nunca perdeu a dimensão da sua querida cidade, cujos limites iam do Cemitério à Vermelha. Depois do cemitério era a estrada do Por Enquanto, hoje, caminho do aeroporto. A Vermelha era o reino de dona Quequé e seu presépio visitado todos os anos por todo mundo. Até semanas antes da morte, meu pai recitava poemas sobre o Rio Parnafba, sobre as "torres cristianíssimas do Amparo", e os versos de Da Costa e Silva, que lhe ditara na remota mocidade o soneto "Saudade:" Seu mundo interior era rico e nele encontrou inspiração para suportar as agruras da vida.
Outro ramo dos Castello Branco que vivia e ainda hoje sobrevive bem na cidade eram os filhos e netos do Barão de Castello Branco. Uma vez por ano, de automóvel, o Barão ia visitar os parentes. Lembro-me da última vez em que vi meu pai envergar um fraque, às 9 horas da manhã. Ia enterrar o Barão. Hoje eles devem ser mais numerosos em Teresina do que o ramo a que me ligava e que sobrevive sem as conexões que eram feitas no meu tempo pelos tios mais velhos e suas numerosas famílias. Teresina cresceu atraindo novas ondas migratórias enquanto das velhas famílias muitos buscaram outras paragens, especialmente no sul. Na cidade devem viver hoje mais descendentes de cearenses do que rebentos dos velhos troncos como o de nossa família e o da família Souza Martins, o Visconde da Parnaíba, tão poderoso e prolífico.

Voltando a meu pai, seu espírito de sonhador preservou-o das depressões e sua força moral manteve íntegro seu compromisso com a família a que não faltou em qualquer momento. Na sua longa vida ele receberia como retribuição a submissão, a humildade e o carinho sobretudo das filhas. Em 1922, num artigo publicado na Revista da Academia, sobre temas vários, Cristino Castello Branco dizia que nunca to preocupara o problema religioso. Ele apontava contradições entre filósofos e teólogoss para refugiar-se numa mera linha ética e a-religiosa. Eram os reflexos, a que aludimos, da Escola do Recife. Na sua biblioteca havia volumes de Spencer, de Haeckel e outros pensadores do Século XIX difundidos pelo sopro renovador que perpassou pela Faculdade de Direito do Recife. Mas a fé voltou-lhe antes dos tempos de provação e esta o encontrou na prática fervorosa da religião católica, sem que lhe passasse pela cabeça a idéia de catequizar ou modificar o pensamento das gerações mais jovens que enchia sua casa.

Recordo-o no seu leito de morte, dias a fio, mãos espalmadas, missão cumprida, mas a rogar pela misericórdia divina.

Essas palavras não são o epílogo deste discurso. Retomo-o no ponto em que o deixei inscrito, em 22 de fevereiro de 1918, como membro da Academia Piauiense de Letras na vaga de Nogueira Tapety, seu colega na Faculdade do Recife; morto prematuramente. Tapety publicou em folhetos uma conferência sobre "A Luz", ao gosto da época, mas uma comissão da Academia louvou-o sobretudo pelos dois volumes de versos que deixou inéditos, até hoje não publicados. O nome de Nogueira Tapety está inscrito na minha memória através das narrativas da vida acadêmica e das repúblicas em que conviveram na capital pernambucana. Meu pai formou-se aos 19 anos. Pontes de Miranda e ele foram, até há pouco, os sobreviventes daquela turma de 1911, que inaugurou o prédio da Faculdade.

Do patrono da cadeira nº 15, certamente escolhido por seu antecessor, Antonio Borges Leal Castello Branco, provavelmente avô ou bisavó do embaixador do mesmo nome, poucas informações dele colheu meu pai, o suficiente, no entanto, para que se identificasse com o espírito do parente remoto. "O Dr. Antonio Borges Castello Branco", escreveu ele, "aparece aos olhos do meu espírito como um desses grandes, iluminados apóstolos da Justiça e das liberdades públicas no regime passado". Numa antiga coleção de jornais da terra, Cristino encontrou artigos de Antonio Borges e transcreveu de um deles a seguinte frase: "Abomino todo o jugo, toda a tirania: só admito, só quero o império da lei, o cumprimento do dever, o religioso respeito de todos os direitos e; portanto, da liberdade em todas as suas manifestações. Minha divisa é, como no passado, e espero em Deus no futuro, esta: escravo da lei para ser livre. Não me submeto ao poder senão como órgão das leis; não faço questão de pessoas e sim de idéias, mas não suporto que alguém se mascare com elas para sofismá-las, e impor sua vontade como dogma, intimidando, distribuindo favores, ameaças e proscrições. Fui e serei sempre um fraco soldado da liberdade, a que renderei fervorosos culto até o meu último suspiro."

Meu pai, como eu, não nos consideramos propriamente escritores. Eu o disse no meu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, na qual ingressei como jornalista. Ele o disse aqui na sua posse na Casa de Lucidio Freitas, com as seguintes palavras:

"Não sou, nem pretendo ser um literato, no sentido estrito do vocábulo. Arrastado pela influência poderosa do meio, tenho garatujado sobre coisas literárias, sobre assuntos de arte, porém o que deslumbra a minha inteligência, o que reclama as forças todas do meu espírito é o Direito, na sua magnitude e na sua incomparável beleza, não o Direito chicanizado pelos rábulas, o Direito dos formulários e dos termos de assentado, mas o Direito considerado como uma das maiores forças motrizes do mundo, como "a organização da vida social", o Direito, essa velha e sempre nova canção da humanidade, na frase de um jurista belga, e que tem feito a delícia de altos e equilibrados espíritos."

Pelo testemunho dos que viveram com ele no fôro ou no Tribunal de Justiça do Piauí, a cuja presidência chegou antes de aposentar-se, ele sempre se manteve fiel à qualidade intelectual e moral inerente a essa apai-xonada vivência do Direito. Professor da Faculdade de Direito do Piauí, não chegou a dar aulas por ter se afastado do Estado antes que chegasse sua vez de ocupar a cátedra para que fôra designado. Se para alguns ele tinha o espírito do advogado, para outros, como Cláudio Pacheco, ele encarnava a personalidade do juiz pela isenção e equilíbrio dos seus votos. Li diversos deles publicados na Revista Forense, escorreitos, claros, sucintos, destituídos de qualquer exibição livresca.

No Rio, quando se viu afastado da sua rotina piauiense, retomou a advocacia e durante anos representou a seção do Piauí no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Mas já lhe faltava, provinciano que era e de que se orgulhava ser, causas suficientes para sustentar um escritório regular de advocacia. Por coincidência ele descobriu a Federação das Academias de Letras do Brasil e, junto com José Auto de Abreu, nela ingressou como representante da Academia Piauiense de Letras. Ali se restabeleceu, na escala da sua formação e no pudor de homem de província, uma longa e ativa convivência literária. Tornou-se redator e editor da Revista da Federação, escrevendo em quase todos os números. Presidiu a entidade com devoção e eficiência, mantendo-lhes as atividades em meio à escassez de recursos com que lidam as instituições culturais do país. Lá também encontrou auditório para desenvolver o melhor da sua vocação literária, que era oratória.

"Rui", escreveu ele na mocidade, "é o meu grande oráculo". Foi, aliás, sobre o grande baiano que pronuncia uma conferência exemplar na Casa de Rui Barbosa, na primeira comemoração do Dia da Cultura. Suas conferências eram quase sempre transcritas no "Jornal do Comércio" e elas constituem a matéria principal de três dos quatro livros que publicou no Rio - "Homens que iluminam", "Frases e notas" e "Escritos de vários assuntos". O último é uma espécie de diário literário em que aprecia idéias e fatos cotidianos.
Embora não esquecesse seus poetas, os personagens que estudou e enalteceu em suas conferências - escritas, mas nunca lidas, pois sua memória o dispensava disso - são os grandes mestres do Direito. A melhor delas talvez seja a dedicada a Teixeira de Freitas, cuja obra foi objeto de pesquisa minuciosa e cuja influência soube distinguir com profundidade.

Pedro Leasa, Clóvis Bevilacqua, Salvador e Lúcio de Mendonça, esse último menos como fundador da Academia Brasileira do que como Ministro do Supremo Tribunal Federal, e outras notáveis expressões da cultura jurídica do país povoam seus três referidos volumes. Tobias Barreto e Sílvio Romero, também santos da sua devoção, são temas de outras conferências, simbolizavam para ele menos os reformadores literários do que o elevado grau dos estudos jurídicos do Recife.

Mas ao lado dos luminares da vida e do magistério jurídico, ele dedica atenção aos seus poetas do Piauí, Da Costa e Silva, Alcides e Lucídio Freitas e abre largo espaço à sua admiração pela poesia de Olavo Bilac, cujos versos recitava com emocionada expressão. Nabuco e Saraiva - este fundador de Teresina – foram por ele igualmente estudados em conferência para públicos diversos. Era orador tranqüilo, de dicção escorreita e clara, sóbrio na gesticulação e exato na ênfase.

Nos seus dois últimos livros - "Frases e Notas" e "Últimas Páginas", ele transcreve, como disse, observações sobre o cotidiano nacional. São anotações despretensiosas, de quem via os episódios mais do ângulo moral do que político ou filosófico, sempre preocupado em registrar uma palavra de justiça ou amizade a companheiros do passado remoto ou da sua convivência mais recente.

Cristino Castello Branco, como sonhador, imaginava na juventude viver na capital da República. O Piauí, no entanto, o imantou, jungindo-o aos seus valores mais fecundos. A adversidade mandou-o para o Rio, onde soube sobreviver por mais quarenta anos vencendo suas aflições com fé em Deus e a bondade no coração. Jamais transigiu quando se tratava do cumprimento do dever, por ele entendido de maneira plena e total. Foi o filho dedicado, o marido perfeito, o pai exemplar de filhos que, como este já velho jornalista, não lhe retribuíram na medida adequada o fogo do seu amor paterno.

Com certa pretensão, eu disse, no princípio deste discurso, que sempre esperei ingressar na Academia Piauiense de Letras. Simplício Mendes quis me trazer para cá certa vez. Não era o tempo, porém. O tempo certo é este em que, com 64 anos vividos, compareço para responder -presente! Pelo meu velho pai, que soube durante mais de noventa anos ora montar o seu carneiro de menino, ora enfrentar as procelas que a vida vai salpicando no caminho de todos nós, simples mortais.

E tive a felicidade de aqui chegar pela mão de Arimatéa Tito Filho, que reviveu no entusiasmo e no dinamismo os dias de glória da Academia. Ele a repôs no seu lugar, reabrindo-lhe física e espiritualmente o espaço da vanguarda e liderança no renascimento cultural propiciado por sua geração de poetas, ficcionistas, ensaístas, cronistas, oradores e jornalistas. Retomou-se com Arimatéa Filho o fluxo generoso da inspiração que, em 1917, fez nascer a Academia e por duas ou três décadas lhe deu preeminência na àtividade intelectual do Estado.

Arimatéa alia a vocação literária ao estofo do líder. Acrescentou ao talento o grande amor por nossa terra, revitalizando a instituição criada por Lucídio Freitas e enriquecida por nomes como Abdias Neves, Higino, Celso e João Pinheiro, Cromwell Carvalho, todos da geração pioneira cuja flama arde hoje no coração do Presidente desta Casa.
Aos meus nobres colegas da Academia Piauiense, de Letras, muito obrigado.