Academia Brasileira de Letras, 25 de maio de 1983


Lamento, Senhores Acadêmicos, não dispor da prerrogativa concedida pelo primeiro Regimento da Academia da qual se serviu o mais eminente dos meus antecessores, o Barão do Rio Branco de tomar posse mediante carta. Se tal fosse possível, isso nos pouparia o desprazer de um discurso mal lido e mal ouvido, pois me faltam o dom da oralidade e o diapasão da voz necessários à prática da oratória.
Submeto-me às normas da Casa, espero que com brevidade que torne menos monótona essa parte da cerimônia. Depois de mim, ouvireis um orador, o acadêmico José Sarney, que dará a esta festa o brilho adequado às solenidades da Casa de Machado de Assis.



Oradores, aliás, foram o patrono desta cadeira, o padre Souza Caldas, uma das grandes vozes do púlpito brasileiro, e seu primeiro ocupante, o conselheiro Pereira da Silva, que por quarenta anos freqüentou com eficiência a tribuna parlamentar do Império, de cujos pródromos foi historiador emérito.
A oratória, a historiografia, a política, a administração, a poesia, o teatro, a biografia e o jornalismo aqui por esta cadeira n° 34 passaram numa sucessão ilustre que chega ao seu momento de modéstia na pessoa de um repórter, que vem representar a parte mais humilde de uma profissão, no entanto exercida, no mais alto nível, pela maioria dos acadêmicos, a começar por Machado de Assis, o mais alto de todos.

Historiadores foram Pereira da Silva, o Barão do Rio Branco e Raimundo Magalhães Júnior, a quem tenho a honra de suceder. Políticos foram os três, no Parlamento, na direção da política externa do país e, finalmente, no exercício da vereança por dois mandatos no antigo Distrito Federal. Foi como vereador pelo Partido Socialista Brasileiro que Magalhães Júnior se empossou nesta cadeira. Mas políticos e administradores foram ainda Lauro Müller, jovem tenente republicano, que exerceu o governo de Santa Catarina e subiu depois ao plano federal, como o grande ministro da Viação de Rodrigues Alves e o sucessor, no Itamarati, do Barão do Rio Branco; e Dom Aquino Correia, arcebispo de Cuiabá, poeta de suave dicção, que pagou antes de investido na dignidade episcopal seu tributo à Política, assumindo ainda jovem o governo de Mato Grosso.
O teatro representa-se nesta cadeira por meu antecessor, que, no discurso de posse, selecionou na sua vasta bibliografia as peças teatrais para afirmar que ingressava na Casa como um “autor de pequenas comédias”.
Naquele ano de 1956, o autor de Carlota Joaquina presidia a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais e havia recebido os aplausos das platéias brasileiras pelas onze peças com que iniciou sua intensa participação na vida literária do país.


Raimundo Magalhães Júnior, nascido no Ceará a 12 de fevereiro de 1907, filho de conhecido jornalista, começou sua vida profissional também como jornalista na cidade de Campos, na Folha do Comércio, da qual foi diretor até 1930, quando veio para o Rio de Janeiro. Aqui exerceu, até a morte, aos 74 anos de idade, em jornais e revistas, a mesma profissão do pai e da adolescência. Desde 1927, no entanto, a literatura lhe invadiu a vida, impondo-se como sua atividade criadora, múltipla, numerosa, obsessiva.
Seguindo caminhos trilhados pela geração anterior, o teatro e a ficção foram a sedução da sua juventude, o núcleo da sua produção literária e o fermento de sua vida de jovem jornalista e escritor com os envolvimentos boêmios comuns a ambos os ofícios. Onze peças, escritas e representadas entre 1934 e 1945, e cinco livros de contos e novelas assinalam a primeira parte de sua bibliografia. O êxito na cena e nas narrativas curtas não o afastou da imprensa, a que permaneceu fiel. Repórter e redator, foi comentarista parlamentar e cronista de idéias gerais. Dirigiu A Noite Ilustrada, Carioca, Vamos Ler e a Revista da Semana e manteve colunas assinadas na A Noite, de que era redator, na Folha Carioca, no Diário de Notícias, na A Tribuna, de Santos, na Ultima Hora, e na Folha da Noite, de São Paulo. Encerraria sua atividade jornalística como redator da Manchete, à porta de cujo prédio, numa idade em que é rara a aplicação profissional, foi colhido por um carro ao descer de outro que o levava cotidianamente à banca de trabalho. As circunstâncias da sua morte testemunham a natureza inquieta, inconformada, e o temperamento ativo de quem já atingira o ponto culminante da carreira e da vida, mas infatigável no gosto de trabalhar e de viver.
Foi já na década de 50 que Raimundo Magalhães Júnior, provavelmente induzido por sua alma de repórter, enveredou pela pesquisa histórica e biográfica, à qual dedicou o melhor de seu talento e onde se revelou a mais preciosa das suas vocações. A maturidade o alcançaria nos arquivos e nas bibliotecas, tudo lendo, tudo observando. Suas pesquisas centram-se principalmente na vida política, literária, teatral, jornalística e boêmia da segunda metade do século XIX, estendendo-se às duas primeiras décadas deste século. A elas chegou municiado, como autodidata, de vasto conhecimento da literatura ocidental e da versatilidade que o levava a cotejar citações e informações na bibliografia do seu tempo.
Disse-me Francisco de Assis Barbosa, não sei se por ciência própria ou por informação de terceiros, que Magalhães exercia uma espécie de pesquisa múltipla, anotando nos seus cadernos tudo quanto lhe despertava interesse e curiosidade nos cartapácios que folheava ou nas pesadas coleções de jornais e revistas sobre que se debruçava. A interrelação da vida da maioria dos seus personagens, além do estímulo natural do seu temperamento, torna provável essa versão, ainda mais porque, ao longo dos seus livros, se repetem ou se apresentam sob ângulos diferentes notícias sobre a época que estudou e sobre a vida e a obra das pessoas que a representaram.
A paixão pelo teatro persistiu ao longo de exaustivo trabalho de biógrafo e historiador da literatura. Seu primeiro personagem é, sintomaticamente, Artur de Azevedo, como ele, autor de comédias, de contos, jornalista incansável, poeta e boêmio e ainda zeloso funcionário. Com poucas exceções, os escritores sobre cuja obra e vida se deteve passaram, mesmo que rapidamente, pelo teatro e, com mais constância, pela imprensa, na época estuário natural da atividade literária e tribuna inevitável das vocações políticas.
Seus poetas, quase todos, ensaiaram-se no teatro, ainda que episodicamente, como o jovem Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo e Cruz e Souza. Seus jornalistas e romancistas também, como foi o caso de José de Alencar, dos dois Patrocínios, de João do Rio e do seu personagem supremo, Machado de Assis. Além disso escreveu livros sobre Leopoldo Fróes e Martins Penna, homens de teatro e só de teatro.

Estudou ainda a vida literária de Olavo Bilac e Augusto dos Anjos. Nos seus livros sobre poetas, romancistas e jornalistas é de observar que não foi, aplicadamente, o biógrafo mas sobretudo o historiador da sua obra e da evolução das suas idéias, das suas fontes de inspiração e dos modelos que neles influíram. Estudou os meios que cada um utilizou para realizar-se e encontrar a própria maneira de ser. A ele interessava de preferência o escritor no exercício da atividade literária, no conhecimento e na indicação das fontes, na correção de erros dos estudos dos que o antecederam e na vitoriosa descoberta de textos esquecidos ou perdidos nos desvãos dos tempos. Implacável investigador, confere todas as informações, dispondo para tanto de um arsenal de leituras literárias realmente incomum.
A não ser no caso pessoal de Patrocínio Filho, em quem o seduz mais a aventura da vida do que a obra, ele pouco acrescentou à biografia de seus personagens. Peguemos um exemplo.
Augusto dos Anjos, cuja formação literária e cujas fontes inesperadas de formação poética e de informação científica ele decifra e expõe, e de quem revela tantos trabalhos inéditos e imaturos, surge do livro de Magalhães Júnior como o mesmo provinciano incolor e tímido que só pelo talento superou as limitações do pobre cenário em que se desenvolveu toda a sua vida. Pouco se acrescenta à história desse moço triste, mas entende-se que a superfetação de sua terminologia científica não deixa de ser no fundo uma projeção do espírito provinciano deslumbrado pelo contacto com modelos superiores de cultura

Machado de Assis, a quem dedicou oito volumes, culminados com os quatro tomos monumentais de Vida e Obra de Machado de Assis, continua a ter a intimidade quase tão preservada quanto no seu tempo de vida. Nenhum biógrafo do autor de Dom Casmurro, aliás, descobriu informações minuciosas sobre sua infância, a família, o pai, a mãe, a madrasta, a madrinha e sobre a transição dos primeiros anos até a adolescência. O anedotário repete-se de biógrafo a biógrafo, com algumas correções introduzidas por Magalhães Júnior. Não há provavelmente documentos mas hipóteses e versões de contemporâneos expostas mais ou menos superficialmente. Carolina é apenas a sombra que dele recebeu o afeto derradeiro e as flores arrancadas da terra que os viu passar unidos. Seus amores boêmios são alusões discretas, sobretudo o segundo já na vigência do casamento.
Em compensação, Magalhães Júnior abriu janelas que clarearam a postura mental e afetiva de Machado de Assis ante os temas e problemas do seu tempo. Ele desfez a mitologia de Dom Casmurro e nos apresentou, a partir de Machado de Assis desconhecido, um jovem tocado pelo liberalismo de sua geração, fiel às causas que emocionaram seus companheiros, leal aos sentimentos de revolta contra a escravatura e observador atento da realidade política, econômica e social do Brasil em que viveu. Na sua literatura, desde as tentativas nativistas de sua poesia até nos contos mais expressivos, mostra-se nítida a participação nos dramas contemporânea
Depois de serenada com os anos, a meditação e a leitura, a alma do jovem liberal permanece no interesse pelo que acontecia no País e na sua época. As crônicas semanais revelam o observador atento das realidades, pequenas e grandes do País, embora a postura cética, mais literária do que real, houvesse polido sua expressão.
Da afetividade de Machado de Assis, do seu fundo ético e sentimental traduzido no carinho pelos amigos, sua correspondência conhecida dá a notícia minuciosa e comovente. Essa correspondência, por sinal, é a matéria-prima do delicado ensaio de Luís Viana Filho sobre o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

O estudo de Machado foi a principal obsessão literária da maturidade de Magalhães Júnior. Além dos oito volumes sobre sua obra, vida e atividades, organizou sete volumes de contos e crônicas, que não integravam as edições de suas obras completas. Trata-se de contribuição exaustiva e preciosa para levantar o legado literário do autor.


A esse propósito, gostaria de registrar que me parece imprópria a decomposição da obra de um escritor tão cuidadoso na organização de suas coletâneas de contos e variedades quanto o era o maior autor brasileiro do seu tempo. Creio que, a partir das edições Jackson, a integridade da obra original do fundador da Academia Brasileira de Letras foi violada, desmontada a armação sutil dos seus volumes em benefício de uma distribuição mais coerente, na aparência, das páginas representativas dos diversos gêneros que versou.
Penso que, respeitados os volumes construídos em vida pelo autor, a obra remanescente poderia dar lugar a outros volumes, especialmente destinados aos estudos acadêmicos e universitários. Magalhães Júnior não foge, aliás, ao debate do tema. No livro sobre Casimiro de Abreu, transcreve as seguintes palavras de Teixeira de Mello: “Sempre me pareceu perigoso para a reputação dos autores, cedo arrebatados pela morte, esse escavar em ruínas, esse prurido de acrescentar alguma coisa ao que o Autor já deixara feito.” Essa crítica veio a propósito da edição de 1884 das Obras de Casimiro de Abreu preparada por Joaquim José de Carvalho Filho. Magalhães Júnior nega justiça à censura. “Trazendo-os a público”, acrescenta, “ele permitiu que os estudiosos da obra de Casimiro de Abreu tivessem uma visão mais completa de sua produção poética. São versos que não têm interesse apenas literário, mas igualmente biográfico. “
No caso de Machado de Assis, que viveu quase 70 anos e publicou o que lhe pareceu adequado, não se trata de um “escavar em ruínas”, tal a qualidade da matéria literária remanescente que não organizou em volumes. Na verdade, porém, ele morreu deixando obra completa e acabada, a que estudiosos e admiradores acrescentaram, para efeito biográfico, a copiosa literatura que ele despejou em revistas, jornais e até em álbuns de família.
A contribuição de Magalhães Júnior ao conhecimento da vida e obra de Machado é a mais completa e minuciosa que já se fez.
Trouxe à luz todos os elementos disponíveis a partir dos quais os críticos, na permanente sucessão das doutrinas e das exegeses literárias, irão refazer os grandes painéis que sempre terão por pano de fundo a extraordinária biografia literária e os numerosos acrescentamentos do que fez e escreveu e de como viveu o mestre da literatura brasileira.
Não me alongarei na análise de outras obras do gênero, nem mesmo do notável livro sobre José de Alencar. Prometi ser breve, e há outros pontos a abordar.


Como historiador, a principal obra de Magalhães Júnior é Deodoro, a espada do Império, onde está a história da fundação e dos primórdios da República e a história dos seus heróis. Dos heróis que a pregaram, dos heróis que a proclamaram e dos heróis que a realizaram nos primeiros anos. Nela também estão as origens da intervenção militar na vida política do País, precedida da ação pioneira do Duque de Caxias, primeira expressão política dum Exército que se organizara e consolidara ao longo da guerra do Paraguai. Deodoro é a expressão continuada desse Exército, forjado naquela guerra, com os sentimentos de honra e de solidariedade de corpo alimentados no fragor das batalhas.
A transformação do herói da guerra no herói da República, a espada do Império que se voltou contra o Império, está corretamente narrada com todas as peripécias que caracterizaram a época e consumaram o declínio do Segundo Reinado, sob a inspiração de políticos desiludidos, de senhores de escravos frustrados e do ímpeto duma juventude militar que soube mobilizar seus velhos comandantes para a tarefa dos novos tempos. Tal é a história exemplar dum processo político que se desenvolveria até nossos dias.
Se a narrativa histórica, pioneira, é completa, se o retrato profissional e moral do Marechal Deodoro da Fonseca, irretocável, a Magalhães Júnior, como aconteceu no relato da vida literária dos principais autores da segunda metade do século XIX, também não interessa a intimidade do personagem, cuja vida doméstica, exceção das referências ao heroísmo da mãe de tantos heróis numa mesma prole, é quase uma página em branco nesse livro tão rico de história. Nele se apreende o momento culminante em que se afirmou a interferência militar na política nacional realizada por um general solitário.

Raimundo Magalhães júnior classificou entre suas obras de história o livro em que buscou expurgar, na personalidade de Rui Barbosa, o mito do homem, consagrado por contemporâneos e pósteros. O livro ocupa, no entanto, um lugar à parte. O pesquisador, farejador de informações inéditas, o esmiuçador dos fatos é o mesmo. O espírito desse trabalho não traz todavia a marca generosa com que essa grande figura da Academia acompanhou a vida dos seus personagens.
Veja-se quão diferente é sua atitude diante das fraquezas de José do Patrocínio, a que não deixa de aludir, mas a quem desculpa tudo. O biógrafo do abolicionista não é, na alma, o mesmo que investigou a trajetória tão complexa de Rui Barbosa. Aqui optou por questionar a essência dos atos do grande baiano, deixando de lado a narrativa coerente da sua vida e do seu trabalho.
Rui Barbosa, tão intensamente dedicado à vida pública, é, no entanto, basicamente um advogado; logo um profissional que recorre ao manancial da ciência jurídica e da jurisprudência à procura de argumentos com que defender seus clientes. Essa é a contingência do advogado e sua servidão, a que não pode escapar até mesmo por imposição ética. Defender quem o procura é, para o advogado, rotineiramente, obrigação. As razões de defesa são recolhidas num manancial comum, variado e contraditório.
Como político, há a considerar que Rui dedicou cinqüenta anos de sua vida a essa atividade. Quem o fez tão longamente sem acumular contradições e incoerências? Magalhães Júnior oferece ao estudo e ao debate aspectos curiosos e importantes da vida pública de Rui Barbosa, sobre cuja lisura suscita as dúvidas que justifica. É, a seu modo, uma contribuição valiosa ao exame da ação de um brasileiro que, por cima de fraquezas e erros, legou à nação noções de civismo, e combatividade, e respeito à consciência do cidadão e à ordem constitucional da República que se incorporaram ao patrimônio das gerações seguintes. A legenda é sempre sujeita a revisões, mas, com as dúvidas e certezas que propôs, Magalhães Júnior não chegou a eliminar da imagem de Rui Barbosa o mito que a emoldura.


É vasta e importante a obra de Magalhães Júnior, sobretudo no que ela acrescenta ao conhecimento duma época singular da vida brasileira e da obra de tantos dos seus expoentes. Gostaria, porém, de fixar um pouco os traços que me aproximam desse jornalista, com quem raras vezes estive pessoalmente. Sei dele o suficiente para identificar o traço de honestidade que dominou não só sua atividade intelectual como sua atividade profissional. Sucedendo-o, parece-me adequado apontar alguns pontos que diferenciam hoje o exercício da profissão de jornalista do jornalismo que se fez historicamente no Brasil e transparece nos seus estudos biográficos. Magalhães Júnior é como um traço de união entre as antigas e as novas gerações de jornalistas.
A princípio, a imprensa era, antes de mais nada, tribuna política e tribuna literária. Aos partidos, aos chefes políticos, às facções era indispensável dispor de instrumento de comunicação suficiente para atender seus objetivos, assegurando-se uma faixa mais ampla de leitores. É por isso que os grandes jornalistas do passado, desde a Independência, foram políticos ou vocações a que, não sendo dado acesso à direção do País, se tornavam necessárias à execução do trabalho jornalístico a que nem sempre chefes podiam atender.
Ao lado de uns e de outros, a imprensa era o depositário indispensável da literatura da época e oferecia a escritores pobres, além da possibilidade de divulgar seus escritos, o ganha-pão adicional, indispensável à sua sobrevivência, em troca da elaboração da matéria noticiosa e da crítica de amenidades. Todos os escritores de que trata Magalhães Júnior, todos, ensaiaram a reportagem e recorreram aos jornais em busca da evidência literária e da, pequena, retribuição pecuniária. A margem de políticos e escritores vegetava escassa fauna de repórteres e boêmios a se esforçarem por alcançar o status de escritor, nem sempre com êxito.
Cumpria-se a famosa predição do escritor francês segundo o qual “le journalisme est une excellente école de vie, à condition d’en sortir”.
Da servidão do jornalismo à política Magalhães Júnior dá-nos documento pungente no relato de um episódio que envolveu Justiniano José da Rocha, “o maior’ jornalista do seu tempo”, segundo avaliação do Barão do Rio Branco. Mulato e pobre, como grande parte da galeria pintada por Magalhães, tornou-se o defensor da política de conciliação do Marquês de Paraná, Honório Hermeto de Carneiro Leão. Em dado momento, ele foi inserido pelo Partido Conservador na representação de Minas Gerais. Deputado, sentiu-se inesperadamente um igual do grande e orgulhoso Marquês e teve seu espírito crítico despertado o suficiente para ver que os fatos não correspondiam à pintura deles.
O episódio é narrado por Magalhães Júnior no pequeno livro Três panfletários do Segundo Reinado onde transcreve as principais peças dos grandes jornalistas da época.
A de Justiniano José da Rocha chama-se Ação; Reação; Transação e é uma límpida defesa da política de conciliação. Era um panfleto a favor. Na Câmara, Justiniano animou-se a romper a unanimidade da casa e pronunciou discurso de crítica ao chefe de Gabinete, abordando a política externa mas denunciando principalmente a concentração de todo o poder nas mãos de um só homem, a tal ponto que o Gabinete avizinhava-se do absolutismo.
Honório Hermeto não veio imediatamente ao revide. Deixou o assunto para o final da sessão, e, em rápidas palavras, anotou a contradição entre o que dizia antes o jornalista e o que ousara dizer o deputado. Dispensou-se de justificar o governo sob a alegação de que ao deputado é que cabia explicar-se. Foi tal o efeito da mordacidade do Marquês, conta Magalhães Júnior, que, na sessão seguinte, Justiniano se julgou na obrigação de voltar à tribuna. “Foi então que proferiu, entre lágrimas e soluços, um discurso sem paralelo nos anais parlamentares do Império.”



Vamos transcrever Magalhães Júnior: “Fez o jornalista conservador uma confissão dramática das vicissitudes que lhe afligiam a existência de foliculário governamental. Entre outras Justiniano José da Rocha mostra com a maior franqueza como se procedia à distribuição de escravos apreendidos às figuras da alta administração e, ainda, aos jornalistas. Assim revela, sem rebuços, essa forma de suborno, espontaneamente oferecido, não só a ele próprio mas aos seus dois companheiros de redação. “Nós três abundávamos nas idéias dos Ministérios, sustentávamos a luta na imprensa, e nesse tempo nenhum favor ministerial me foi feito, nem nós pensávamos em favores materiais. E, senhores, já que eu falo nisso, vá uma pequena revelação. Distribuíam-se africanos, e eu estava conversando com o ministro que os distribuía, e S. Excia. me disse:
- Então, Sr. Rocha, não quer algum africano?
- Um africano me fazia conta - respondi-lhe.
- Se V. Excia. quer por que não o pede?
- Se V. Excia. quer, dê-me um para mim e um para cada um dos meus colegas...”

A essa altura um largo riso se fez ouvir no recinto da Câmara. Imperturbável, no entanto, Justiniano José da Rocha continuou:
“Disse S. Excia:
- Lance na lista um africano para o Sr. Rocha, um para o Sr. Fulano e outro para o Sr. Beltrano... “

O ministro, segundo o historiador, era Bernardo Pereira de Vasconcelos. Rocha, justificando-se, disse que era casado com esposa sem dote, nascendo-lhe um filho a cada ano. Não bajulava poderosos nem freqüentava gabinetes de ministros. Nas épocas de revolução expusera a si e a família a represálias. Com a ascensão dos conservadores, em 1842, ia às vezes à casa do Visconde do Uruguai, ministro da justiça, de quem recebia instruções e pequenos auxílios pecuniários. A esta altura a emoção o domina e ele derrama:
“O Sr. Paulino se entendia com a tipografia para a publicação, a administração e distribuição da folha. Nós nada disso sabíamos nem queríamos saber. Escrevíamos e mandávamos nossos artigos à tipografia. As vezes, senhores, eu que tenho família, e família n¬merosa (o orador começa a soluçar), pois, além de ter Deus abençoado o meu consórcio com numerosa prole, também a desgraça veio pairar sobre a minha família, levando-me meu pai... (voz do orador fica suspensa pela comoção, e vário srs., deputados lhe dirigem palavras consoladoras). Então, o Sr. Paulino, em remuneração do trabalho insano de sustentação de um periódico, dava-me de vez em quando um papel dobrado e nele algumas notas de 200$000 (o orador continua em pranto).
E, senhores, (com força) eu vivia com família numerosíssima, e digo esta verdade que não me pode ficar mal.
Há mais. Mas a cena exemplar se basta a si mesma.


Perdoai-me a extensa transcrição. Chego à Academia como jornalista. Foi essa a condição que me deu notoriedade e abriu-me caminhos nos vossos corações. Magalhães Júnior também o era, mas optou pela condição de autor de comédias. Como os Senhores sabem, a imprensa evoluiu e, se, para bem de todos, continua a ser o veículo pelo qual nossos grandes escritores se comunicam com a nação, hoje é sobretudo uma empresa montada em moldes econômicos, e o jornalista, um profissional que desfruta os privilégios da lei, embora não se exima das imposições decorrentes do quadro econômico e social em que vivemos.
Seduzido pelas letras na adolescência, a vida empurrou-me para o jornal. Repórter de polícia percorri todos os trâmites de uma longa profissão. Minha geração de jornalistas, como a vossa de escritores, viveu momentos difíceis na vida do País. Atravessamos dois períodos ditatoriais. Sei que na Academia não se fala de política, tal a comunhão mais elevada dos seus membros e o respeito às convicções de cada um. Alceu Amoroso Lima, quando me candidatei pela primeira vez, identificando motivação política na pretensão, advertiu-me: “Na Academia só se entra pelas razões da Academia, jamais por outras quaisquer.” Mas devo res¬saltar que, em determinado momento da vida profis¬sional, quiseram os fados que fosse o intérprete mais ostensivo de sentimentos que não se podiam então exprimir. A sociedade ansiava por informações; e coube-me abrir, graças ao apoio do jornal do Brasil, um canal de mensagens cifradas mediante as quais atendia a expectativas tão amplas quanto frustradas.
Sei que não trabalhei em vão, e é muito em função disso que me acolheis aqui, independentemente dos sentimentos políticos de cada qual. Eis talvez a razão por que um repórter chega pela primeira vez, como tal, a ocupar uma cadeira nesta Casa de expoentes da vida brasileira. Mas aqui terei a companhia de repórteres a cujo lado trabalhei, como Otto Lara Resende e Francisco de Assis Barbosa, que noutros tempos luziam como repórteres de primeira linha e continuam ainda a escrever em jornais, mais como escritores do que como jornalistas.
A Academia é presidida por mestre Austregésilo de Athayde, jornalista a vida toda e meu diretor por mais de vinte anos. Barbosa Lima Sobrinho, redator e diretor de jornal, preside a Associação Brasileira de Imprensa. José Sarney foi repórter em São Luís do Maranhão. Mauro Mota, repórter e diretor do Diário de Pernambuco. José Cândido de Carvalho, colunista em diversos jornais. Luís Viana Filho, jornalista na sua Bahia. Afonso Arinos foi diretor da Folha de Minas, e são presenças periódicas e constantes na grande imprensa brasileira Tristão de Athayde, há dezenas de anos, Barbosa Lima, Josué Montello, Rachel de Queiroz, Adonias Filho, Dom Marcos Barbosa, Genolino Amado, hoje recolhido, Otto Lara Resende e José Guilherme Merquior. Mantém-se assim uma tradição da vida brasileira, tradição que ainda uma vez nesta casa tem Machado de Assis como seu predecessor mais ilustre.
Todos nós, repórteres, redatores, editorialistas, articulistas, comentaristas, temos conhecimento e consciência do quanto se valorizou na escala ética e na exigência intelectual a profissão de jornalista. Não ignoramos que continuam a existir “foliculários governamentais” mas a verdade é que nenhum dos que chegamos à Academia vindos das redações de jornais tivemos o constrangimento de receber um dia um africano. Aqui dentro, portanto, como em nossos locais de trabalho, podemos bater-nos com honra por nossas convicções liberais e defender os direitos humanos, respeitando os ideais que a cada um de nós pareçam mais adequados à preservação dos valores nacionais.
Mas falei da sedução pelas letras do adolescente que fui. Na literatura imaginava estar o meu destino, que brotava do convívio do menino com o pai apaixonado pela poesia e pela expressão literária de um modo geral. Desde menino, ouvi-o recitar os poetas da terra. De da Costa e Silva, seu companheiro de estudos no Recife, de quem tomara por ditado alguns sonetos, aos grandes poetas da época, Bilac, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira. Em sua biblioteca descobri os volumes de poesia e prosa de Cruz e Souza e nela me deslumbrei com os romances de Eça de Queiroz. A Academia integrava seu universo literário. Lia no jornal do Comércio os relatos das reuniões acadêmicas e os discursos de posse dos novos membros desta Casa. Em casa dos tios, com a cooperação de parentes, inclusive de meu pai, fundou-se a Academia Piauiense de Letras, a que se dedicaria Cristino Castello Branco até o recente fim da sua vida.
Na derradeira visita que lhe fiz, aos noventa anos de idade, ainda me recitou versos dum velho poeta piauiense, Baurélio Mangabeira, o qual, residindo nas proximidades do cemitério, publicara no jornal que sozinho escrevia, compunha e imprimia, um soneto que assim terminava: ‘‘Quanta gente a passar pro cemitério
e eu caladinho faço mais um ano... “

Essas recordações ressurgem nesta hora solene em que aqui ingresso como o terceiro filho do Piauí, berço de poetas sertanejos e de modestos visionários tocados pela poesia do Parnaíba, velho monge... Antes de mim, nascidos na mesma cidade, vieram Félix Pacheco, poeta e jornalista, e o grande mestre da Medicina, professor Deolindo Couto, ainda vigoroso nos seus gloriosos oitenta anos.



Meus Senhores,
Ao fim dessa divagação sentimental, espero não agredir vossa sensibilidade ao mencionar a fala de Machado de Assis, reeleito presidente da Academia, na sessão de encerramento dos trabalhos de 1907. Nela, concitou seus companheiros a prosseguir nos trabalhos de elaboração do Dicionário Crítico de Brasileirismos e das diferenças de modos de escrever e de falar dos dois povos. Disse tratar-se de “pesquisa grande e compassada”, “matéria de útil e porfiado trabalho-. E acrescentou: “Com os elementos que existem esparsos, e os que se organizarem, far-se-á qualquer coisa que no próximo século se irá emendando e completando. Não temamos falar no século; é o mesmo que dizer daqui a três anos...”
Precedido dessa advertência, ouso colocar um tema que haverá de horrorizar a quantos, neste recinto, compõem e ilustram a Academia Brasileira de Letras. Acaso já terá ocorrido a alguns dos presentes que, dado o caráter nacional desta instituição, seu destino seja trasladar-se um dia para a capital da República? Claro que não. Brasília, jamais. Mas fica aí o lembrete. Se a idéia entrar aqui em alguma cabeça, pode ser que no próximo século ela ‘‘se irá emendando e completando. Não temamos falar no século, é o mesmo que dizer daqui a três anos...”